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Responsabilidade civil do estado: análise histórica

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14/07/2012 às 10:58
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5. PONDERAÇÕES FINAIS

A partir da contextualização histórica das teorias expostas ao longo desse trabalho, fica facilitada a tarefa de criticar a aplicação de suas reminiscências a determinados setores estatais, geralmente com o fito de limitar a responsabilidade civil do Estado por seus atos.

De logo, observa-se que os óbices costumeiramente levantados contra a responsabilização por atos jurisdicionais e legislativos não distam nada dos antigos fundamentos das teorias da irresponsabilidade, que repousavam, sobretudo, em concepções autoritárias de poder.

O argumento medieval fundado no conceito de universitas, que, fundado em ideias feudais de soberanos e vassalos, confundia a individualidade dos vassalos no todo da coletividade, apresenta-se ainda hoje como fundamento remoto da imunização do Estado à responsabilidade civil por atos legislativos: se quem causa dano foram parlamentares legitimamente eleitos para representar o povo, os danos causados o seriam em nome do próprio povo.

Carvalho Filho adota expressamente essa ideação, ao afirmar que “parece-nos incoerente, de fato, responsabilizar civilmente o Estado, quando as leis, regularmente editadas, provêm do órgão próprio, integrado exatamente por aqueles que a própria sociedade elegeu (2012, p. 565)”. Gasparini, a seu turno, afirma expressamente que “os administrados não podem responsabilizar o Estado por atos dos parlamentares que elegem (2007, p. 981)”.

Já as teorias absolutistas são ainda hoje bastante festejadas no afastamento da responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. É nessa linha que segue Carvalho Filho: “[os atos jurisdicionais] são protegidos por dois princípios básicos: o primeiro é o da soberania do Estado: sendo atos que traduzem uma das funções estruturais do Estado, refletem o próprio exercício da soberania [...]”. Na mesma esteira, segue Moreira Neto, ao aduzir que “o magistrado, agindo no desempenho da função jurisdicional, exerce, concreta, direta e imediatamente, um poder soberano do Estado, de modo que, os danos causados a jurisdicionados serão meros prejuízos de fato, insuscetíveis de serem indenizados (2009, p. 660)”. Gasparini, a seu turno, afirmou que a sentença “é ato da essência da soberania (2007, p. 981-982)” Nessa linha de pensamento, se antes o soberano, incontrastável e infalível, era o príncipe, hoje quem gozaria dessas qualidades seriam os magistrados.

Acerca desse aspecto, cabe lembrar que a Constituição, ao lado de estabelecer os objetivos fundamentais do Estado, estabelece a forma pela qual o seu poder deve ser exercido. O poder do Estado, expressão institucionalizada do poder político, é, assim, uno e indivisível, expressão da soberania do próprio Estado. Disto decorre que todos os atos estatais se revestem e emanam do mesmo poder (FANICK, 1986, p. 440-441). Assim, se atos jurisdicionais são atos de soberania, também os administrativos, que derivam do mesmo poder (constituinte originário), também o seriam, de modo que não se justifica logicamente separar o poder estatal em classes distintas.

Melhor sorte não merecem os entendimentos que pregam que o art. 133 do Código de Processo Civil presta-se a tornar exclusivamente pessoal a responsabilidade do juiz faltoso, que agira com dolo, fraude, ou retardamento indevido, excluindo a do Estado. Veja-se como o fundamento aqui é rigorosamente idêntico à teoria oitocentista que defendia que o Estado não responde por atos ilícitos de seus agentes, pois o Estado só os credenciava a praticar atos lícitos.

Se ninguém, hoje, de boa fé, defende que o Estado, apesar de ser o criador formal do Direito, está acima dele, não se concebe a razão pela qual ainda se pretenda defender que tal ideação não se aplica ao Estado-juiz ou ao Estado-legislador[11]. Todos os argumentos citados ao longo desse artigo no sentido da superação das velhas teorias da irresponsabilidade são aplicáveis também nesses casos.

Por fim, observa-se também que teorias lastreadas na culpa, ainda que anônima, têm encontrado plena ressonância nas cortes quando se discute a responsabilidade do Estado por omissões estatais, como, por exemplo, defende Bandeira de Mello (1981, p. 13), fundamentando-se numa estreita noção física, naturalística, de causalidade. Ora, se o fundamento da responsabilidade, atualmente mais desenvolvido, é o risco, esse risco deve derivar de toda a atuação estatal, seja ativa ou omissiva. Assim, a concepção de nexo causal é a jurídica, no bojo da qual a omissão pose ser, sim, causa efetiva de um dano, quando esperável que o Estado aja para impedi-lo. Ambas trazem o risco, e muitas vezes é a omissão a conduta que traz o maior proveito ao interesse do Estado. Esse risco, assim, deve ser integralmente assumido pelo Estado.

Ante o exposto, conclui-se que é chegado o momento de superar ranços históricos, a fim de entender a teoria do risco para todos os quadrantes da atuação estatal.  Como dito alhures, o poder estatal é único, sendo a sua distribuição em funções, atribuída a Poderes – em sentido orgânico – diversos, uma mera especialização de funções. Em todos os poderes, manifesta-se a totalidade do poder estatal, cabendo a cada um deles, por assim dizer, frações-ideais desse poder. Assim, nenhuma razão existe para que haja uma distinção entre o regime da responsabilidade estatal por ações e o das por omissões, nem entre o dos atos administrativos e o dos atos praticados no exercício dos demais poderes.

Fica, aqui, pois, a exortação para que, na análise da variada casuística da responsabilidade civil do Estado, não se deixem os juristas levar por preconceitos arraigados, fundados em concepções de poder superadas e desarmônicas com o atual quadro constitucional.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Observe-se que tais situações podem fazer parecer que tais juristas deveriam figurar entre os adeptos das teorias civilistas da responsabilidade, na vertente que distingue a atuação estatal em dois grandes domínios – jus imperii e jus gestionis. Contudo, o que lhes garante um lugar nesta seção é o fato de que eles ainda defendem que a irresponsabilidade é a regra geral, sendo a responsabilidade uma exceção. Como adiante se abordará, os partidários da teoria civilista defendem que a regra é a plena responsabilidade do estado, afastando-a excepcionalmente, menos por questões afeitas à personalidade jurídica do que por questões ligadas à atividade desempenhada.

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[2] “Article 75. - Les agents du Gouvernement, autres que les ministres, ne peuvent être poursuivis pour des faits relatifs à leurs fonctions, qu'en vertu d'une décision du Conseil d'Etat : en ce cas, la poursuite a lieu devant les tribunaux ordinaires” (In.: FRANÇA. Conseil Constitutionnel. Constitution du 22 Frimaire An VIII. Paris: Conseil Constitutionnel, 1799. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-du-22-frimaire-an-viii.5087.html>. Acesso em: 01 jun. 2012).

[3] Obviamente, aqui não se considera o período colonial, quando ainda não existia um direito brasileiro. Nessa época, predominava a irresponsabilidade do Estado de Portugal, coerentemente com o regime despótico de antanho.

[4] “Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.

[5] A Regência era um instituto que previa que, caso o imperador ao assumir tivesse menos  de dezoito anos, o Império seria governado pelo parente mais próximo que contasse com mais de vinte e cinco anos – o Regente – ou, não existindo, por um ajunta de três membros nomeada pela Assembleia Geral – a Regência. V. arts. 121 a 124 da Constituição em referência.

[6] FRANÇA. Tribunal de Conflitos. Arrêté de conflit nº 00012. Recorrente: Adolphe Z. Recorrido: Jean Y. Relator: M. Mercier. Paris, 8 fev. 1873. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?idTexte=CETATEXT000007605886&dateTexte=>. Acesso em: 02 maio 2012.

[7] Article XIII - Pour l’entretien de la force publique, et pour les dépenses d’administration, une contribution commune est indispensable. Elle doit être également répartie entre tous les Citoyens, en raison de leurs facultés.

[8] No Brasil, prevalece que a responsabilidade civil do Estado por danos nucleares, forte no art. 21, XXIII, da CF/88, funda-se no risco integral, apesar de naquele dispositivo isto não estar expresso. Outra hipótese é a responsabilidade da União por danos a bens e pessoas provocados por atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo, nos termos do art. 1º da Lei 10.774/2003.

[9] Não se olvida que, antes da Constituição de 1946, o direto positivo já havia consagrado, em alguns casos específicos, a responsabilidade civil do Estado segundo a teoria do risco administrativo, a exemplo do Decreto nº 2.681/1912, que disciplinava a responsabilidade civil das Estradas de Ferro. Segundo o art. 26 desse diploma, “as estradas de ferro responderão por todos os danos que a exploração das suas linhas causar aos proprietários marginais”, somente podendo se furtar à tal responsabilidade se provada a culpa exclusiva da vítima, in verbis, “Cessará porém, a responsabilidade si o fato danoso for conseqüência direta da infração, por parte do proprietário, de alguma disposição legal ou regulamentar relativa a edificações, plantações, escavações, depósito de materiais ou guarda de gado à beira das estradas de ferro” – não admitindo, pois, a ausência de culpa como impedimento à responsabilização.

[10] Muito embora já houvesse, desde antes, vozes que deixavam entrever a adoção da teoria do risco, por exemplo: “O Estado impõe o serviço, não o propõe. Cerca de embaraços a actividade do cidadão; elege, ampara e prestigia os seus funcionários. Todos supportam ônus em proveito commum. Verificado o damno desnecessário, illegitimo, resarcivel, tem acção o prejudicado contra quem escolheu mandatário ou agente violento ou inepto” (MAXIMILIANO, Carlos. Commentarios à Constituição brasileira. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1923. p. 738).

[11] O qual, apesar de ter o poder de “criar” o Direito, está, nessa tarefa, sujeito a limitações jurídicas, formais e materiais. Desse modo, poder-se-ia até defender uma responsabilidade em termos mais restrito, mas não uma irresponsabilidade geral e ampla.

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Sobre o autor
Lucas Hayne Dantas Barreto

Procurador Federal. Professor de Direito Administrativo na Faculdade Ruy Barbosa. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito do Estado. Membro do Instituto de Direito Administrativo da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARRETO, Lucas Hayne Dantas. Responsabilidade civil do estado: análise histórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3300, 14 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22187. Acesso em: 26 abr. 2024.

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