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A cientificidade do direito, a ponderação de princípios e a argumentação jurídica sob a perspectiva da filosofia de Karl Popper

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5. Do papel da falseabilidade dentro da argumentação jurídica

Como se pôde vislumbrar da exposição realizada, o uso da falseabilidade não é incompatível, mas antes necessária na argumentação jurídica, tanto assim que a obrigação de reconhecer e tentar afastar os argumentos contrários faz parte das teorias acima abordadas (com exceção da tópica, que talvez se aproxime mais de uma técnica argumentativa do que de uma teoria geral da argumentação).

George Marmelstein também entende que a contribuição de Popper pode ser aproveitada no Direito. Afirma que o jurista deveria tentar conjecturar a resposta mais justa para o problema apresentado e em seguida adotar uma postura crítica em relação ao seu ponto de vista, tentando refutá-lo com o rigor de um cientista. Ao juiz em particular caberia descobrir a solução mais justa possível para o caso concreto mesmo que não se ajuste ao seu sentimento pessoal de justiça conjecturado num momento inicial.[36]

Um aspecto prático relevante da atividade do jurista popperiano é que ele não estaria tão preocupado em encontrar argumentos que possam reforçar a sua solução. O mais importante, na ótica de Popper, seria buscar argumentos contrários à solução proposta e demonstrar que esses argumentos não são suficientes para refutá-la: 'sempre que propomos uma solução para um problema, devemos tentar, tão intensamente quanto possível, pôr abaixo a mesma solução, ao invés de defendê-la. Infelizmente, poucos de nós observamos esse preceito'.

Sem dúvida, ainda existe espaço para desenvolvimento das teorias da argumentação jurídica. Mas, entende-se que seja qual for o viés adotado ou os procedimentos prescritos no objetivo de tentar conferir maior racionalidade na justificação de decisões judiciais, a noção de falseabilidade deve fazer parte dos instrumentos ou técnicas de uma teoria da argumentação.

Do ponto de vista prático, a adoção de uma postura crítica com relação às próprias hipóteses, com a explicitação do caminho que foi seguido para se chegar à conclusão, bem como com a abordagem expressa dos argumentos contrários e da fundamentação que levou a conclusão a prevalecer sobre tais argumentos, revela-se essencial. Tal postura configura tanto um importante instrumento para possibilitar um maior grau de controle das decisões judiciais, quanto um auxiliar na legitimação das decisões em que, a princípio, mais de uma solução se apresenta como razoável.


6. Conclusão

Acima foi visto que a questão da falseabilidade não passou despercebida na discussão doutrinária acerca da teoria da argumentação jurídica. Pelo contrário, foi expressamente abordada por algumas das concepções mais relevantes que já foram desenvolvidas sobre o tema, como foi visto nas condições de refutabilidade da lógica informal, ou na noção de abertura ao argumento da retórica. Também Robert Alexy fez referência à falseabilidade na fundamentação teórica de sua tese sobre a argumentação jurídica. Ademais, a análise de algumas das regras propostas em sua obra sugere uma deferência à noção de falseabilidade[37].

Assim, independentemente da concepção a que se dê preferência como uma teoria da argumentação jurídica, não se pode considerar que a mesma seja dotada de seriedade se não estabelecer para o interlocutor a obrigatoriedade de considerar e tentar refutar os argumentos contrários à hipótese que pretende defender.

No contexto atual da ciência do Direito, e partindo dos pressupostos de que se vive em um Estado Constitucional de Direito e de que o ordenamento jurídico é composto tanto de regras quanto de princípios, o desenvolvimento da teoria argumentação jurídica e, quiçá, sua normatização, se revelam como instrumentos necessários para a redução das possibilidades de arbitrariedades provenientes das decisões judiciais.

Merece especial atenção o uso pela jurisprudência do princípio da proporcionalidade, a fim de evitar que o mesmo se converta em instrumento de legitimação do decisionismo por parte do poder judiciário. Mas para que tal objetivo venha a se concretizar faz-se necessário passar da teoria para a prática com a incorporação nas decisões judiciais das regras discutidas no debate teórico acerca da argumentação jurídica, inclusive a falseabilidade.

É nesta medida que se entende que a contribuição de Karl Popper para a Filosofia da Ciência pode ser aproveitada também para a ciência do Direito, mesmo que se considere que adaptações se fazem necessárias. Naturalmente, quando o ponto (a ser justificado) em questão tratar não de um juízo de fato, mas de um juízo de valor não será possível a refutação baseada na comparação com a realidade empírica. Mas isto não impede nem afasta a necessidade de que os argumentos contrários e que são incompatíveis (seja a priori, seja definitivamente) com a hipótese defendida pela decisão sejam expressamente analisados pela mesma e, na medida do possível, que seja justificado porque a hipótese prevaleceu sobre tais argumentos.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

______. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. Malheiros: São Paulo, 2008.

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003.

______. Argumentacion Juridica y Estado Constitucional. In: Novos Estudos Jurídicos. v. 9. n.1. jan/abr. 2004.

BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Disponível na internet: <www.camara.rj.gov.br/setores/proc /revistaproc/ revproc2003/arti_histdirbras.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2010.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MARMELSTEIN, George. E se Karl Popper estivesse falando de Direito. Disponível na internet: http://direitosfundamentais.net/2009/01/12/e-se-karl-popper-estivesse-falando-do-direito/. Acesso em: 02 de junho de 2010.

POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Tradução de Sérgio Bath. 2. ed.  Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

______. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

______. A Lógica das Ciência Sociais. Tradução de Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

RODRIGUES, Horácio Wandeley. Karl Popper e a Ciência do Direito Revisitada. Disponível na internet: <http://aprenderdireito8.blogspot.com/2010/02/karl-popper-e-ciencia-do-direito.html>


Notas

[1]RODRIGUES, Horácio Wandeley. Karl Popper e a Ciência do Direito Revisitada. Disponível na internet: <http://aprenderdireito8.blogspot.com/2010/02/karl-popper-e-ciencia-do-direito.html> Acesso em 01 de junho de 2010.

[2]POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1985. p.39

[3]POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações.2a ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p.284

[4]ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003. p.18-40

[5]Popper afirma ser tanto um empirista quanto um racionalista. O rompimento que aqui se fala se refere, não aos métodos, mas à adoção do racionalismo ou do empirismo como teorias do conhecimento. Ou seja, à postura que assevera que o conhecimento deve partir da observação para a teoria (indutivismo) ou da intuição das verdades óbvias para as deduções (racionalismo cartesiano).

[6]POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p.32-33

[7]Idem. A Lógica das Ciência Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. p.16-17

[8]A questão será tangenciada adiante, mas parece haver um consenso na doutrina no sentido de que as concepções de Direito que buscaram tal afastamento, como o positivismo normativista, se revelou inadequado na medida em que possibilitava (atendidas as exigências formais) que a lei veiculasse conteúdo atentatório aos direitos humanos.

[9]Idem. Conjecturas e Refutações. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p.281-323. Ressalte-se que o autor entendia que não era possível uma demarcação nítida entre ciência e metafísica. Certas questões seriam nitidamente não científicas, mas outras se apresentariam difíceis de serem classificadas em científicas ou não-científicas.

[10]LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p.297-299.

[11] BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Disponível na internet: <www.camara.rj.gov.br/setores/proc /revistaproc/ revproc2003/arti_histdirbras.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2010.

[12] Abstém-se este texto de realizar esta análise histórica. Para tal fim remete-se o leitor, entre outras obras, p. ex.: CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional.  Salvador: Juspodium, 2008; PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed. Madrid: Tecnos, 2005.

[13] BARCELLOS. op. cit.p.11.

[14]Ibidem.p.11. O conceito de ordenamento como sistema aberto também pode ser encontrado em: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. Malheiros: São Paulo, 2008.p. 544.

[15]ATIENZA, Manuel. Argumentacion Juridica y Estado Constitucional. In: Novos Estudos Jurídicos. v. 9. n.1. jan/abr. 2004. p.13.

[16]A expressão casos difíceis, traduzida do inglês “hard cases” tem se tornado uma constante para designar aqueles casos em que uma solução judicial não é fornecida de forma simples pelo ordenamento jurídico. É utilizada principalmente quando o mero processo de subsunção de um fato a uma norma não se mostra possível ou apto a solucionar o caso de forma justa, exigindo-se um processo de ponderação entre normas cuja fundamentação de forma objetiva é difícil ou até impossível.

[17] Reflita-se, por exemplo, em quão grave é a questão de uma decisão inválida e injustificada que se consubstanciou em uma súmula vinculante ou mesmo em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

[18]ATIENZA, Manuel. Argumentacion Juridica y Estado Constitucional. In: Novos Estudos Jurídicos. v. 9. n.1. jan/abr. 2004. p.11

[19]Ibidem. p.13.

[20]Na verdade este esquema trata-se de uma simplificação que não reflete integralmente as dificuldades observadas na aplicação do direito num contexto positivista. A própria decisão sobre a norma a ser aplicada, assim como aquela sobre se os fatos se adequam ou não à previsão normativa já envolve valorações que na maioria das vezes não podia ser reduzida a uma fundamentação totalmente objetiva. Mas o fato é que, num contexto pós-positivista a discricionariedade do juiz para a realização de valorações cresce significativamente. Assim, cresce também o anseio por uma justificação das decisões judiciais, sob pena de vivenciamento tanto de uma hipertrofia do poder judiciário em detrimento da função legislativa (democraticamente legitimada), quanto de uma maior insegurança jurídica, já que o Direito perde parte de sua capacidade na função de orientar a conduta humana.

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[21]O leitor que se interessar sobre o tema pode começar pelas seguintes obras, ambas fornecem uma visão panorâmica sobre o assunto a partir da qual o pesquisador poderá se aprofundar sobre os aspectos do tema que ache mais interessante. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

[22]ATIENZA. Op. Cit. p. 49

[23]Ibidem. loc. cit.

[24]Ibidem. p.59-92.

[25]Na verdade tópica teria sido englobada pela retórica que passou a constituir um de seus aspectos. O auditório seria  caracterizado  pela maneira como hierarquiza os valores que admite. Uma forma de justificar uma hierarquia (ou um valor) seria o recurso a premissas de ordem muito geral, isto é, aos lugares-comuns ou tópicos.A tópica constituiria, pois, na teoria de Perelman, um aspecto da retórica. (Cf. Atienza. op. cit. p.64). Aqui, entretanto, discorda-se de tal posicionamento. Embora a tópica seja compatível com a retórica e possa configurar uma de suas técnicas de argumentação, não se vislumbra que, isoladamente, atenda à finalidade de hierarquizar valores. É justamente por isto que se entende que, por si só, não é capaz de resolver o problema da justificação racional da ponderação de princípios.

[26] ATIENZA. op. cit. p.79.

[27]Ibidem. p.93-94.

[28]Ibidem. p.96-97.

[29]Ibidem.p.98

[30]ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. Malheiros: São Paulo, 2008.

[31]Neste sentido: ATIENZA. op. cit. p.160.

[32]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p.17-22; 218-225. Isto não significa que a argumentação jurídica se limita aos casos que envolvem decisões judiciais, não é este o sentido do termo “julgamento” utilizado por Alexy. Julgamento significa nada mais do que uma tomada de posição com relação a uma determinada proposição, ou pelo menos foi este o sentido aqui inferido da leitura da obra.

[33]Ibidem. p. 275.

[34]Ibidem. p. 272. Interessante notar que esta concepção de cientificidade se assemelha àquela que é exposta por Karl Popper. Este, como visto, afirma o caráter provisório das “verdades” científicas que somente se sustenta durante o tempo que permanecem sem refutação, mas jamais descartando a possibilidade de, eventualmente, tal refutação ocorrer diante da constatação de um fato que não se adequa à teoria.

[35]Ibidem. p.116.

[36] MARMELSTEIN, George. E se Karl Popper estivesse falando de Direito. Disponível na internet: http://direitosfundamentais.net/2009/01/12/e-se-karl-popper-estivesse-falando-do-direito/. Acesso em: 02 de junho de 2010.

[37] A teoria da argumentação de Neil MacCormick, que também é abordada no livro de Manuel Atienza, mas que não foi referida no presente trabalho por ausência de espaço, também faz referência à falseabilidade no seguinte trecho: “Também aqui há uma analogia com o que significa, na ciência, explicar um acontecimento. Uma hipótese científica, com efeito, precisa ter sentido em relação ao corpo de conhecimento científico existente e em relação ao que ocorre no mundo. E embora nenhuma teoria possa ser concludentemente provada como verdadeira, mediante um processo de experimentação, se uma teoria é corroborada, enquanto a(s) teoria(s) rival(is) é(são) falsa(s), isso significa adotar a primeira e descartar a segunda (cf. MacCormick, 1978, pág. 102). De modo semelhante, as decisões jurídicas precisam ter sentido tanto em relação ao sistema jurídico de que se trate quanto em relação ao mundo (o que significa em relação às conseqüências das decisões). E embora a justificação de uma decisão jurídica seja sempre uma questão aberta (no sentido de que os argumentos conseqüencialistas - como veremos - implicam necessariamente elementos avaliativos e, portanto, subjetivos), contudo, também aqui, é possível falar de uma certa objetividade na hora de preferir uma ou outra norma, umas ou outras conseqüências (cf. MacCormick, 1987, págs. 103 e seguintes)”. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003. p.128.

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Sobre o autor
Luciano Roberto Bandeira Santos

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Luciano Roberto Bandeira. A cientificidade do direito, a ponderação de princípios e a argumentação jurídica sob a perspectiva da filosofia de Karl Popper. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3309, 23 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22260. Acesso em: 2 nov. 2024.

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