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Direitos fundamentais e relação de emprego

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25/07/2012 às 13:20
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6 A EFICÁCIA HORIZONTAL NAS RELAÇÕES DE EMPREGO

Pode-se, inicialmente, sustentar que os direitos fundamentais se encontram presentes nas relações individuais e coletivas de trabalho. Tal assertiva é verificada em razão da previsão constitucional de inúmeros direitos relacionados ao trabalhador, muitos deles voltados à proteção destes frente ao particular empregador. Neste sentido, o artigo 7º da Constituição Federal de 1988 enumera diversos direitos trabalhistas, buscando garantir uma melhoria na condição social destes trabalhadores.

Desta maneira, é necessário que haja uma reflexão acerca da inserção dos direitos fundamentais nas relações de emprego, para que então se possa compreender a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nessas relações.

Primeiramente, no tocante à aplicação dos direitos fundamentais nas relações de emprego, faz-se mister destacar que os direitos fundamentais funcionam como postulados que conformam a atuação do Estado e funcionam como vetores interpretativos da Constituição e da legislação ordinária, incluindo a legislação trabalhista[32]. Ora, tal afirmativa não poderia ser diferente, uma vez que os direitos fundamentais impregnam todo o ordenamento jurídico através de sua dimensão objetiva, de modo a garantir a dignidade humana sempre que esta se encontrar em situação de perigo.

Em verdade, a própria estrutura brasileira demanda uma atuação efetiva na proteção dos direitos fundamentais, haja vista que o país ainda sofre com os problemas relacionados à desigualdade social. Fator importante no tocante a esta desigualdade é o trabalho. Não existe emprego para todos e estes, quando existentes, não são capazes de garantir o mínimo existencial para uma vida digna.

Sarmento salienta que as instituições brasileiras ainda preservam um ranço escravocrata[33], favorecendo ainda mais as desigualdades no âmbito das relações trabalhistas. O trabalhador, muitas vezes, não contesta tal postura por parte do empregador em razão da real necessidade que este possui de estar empregado, de possuir uma renda, ainda que mínima.

A própria estrutura do contrato de trabalho demonstra necessidade de atuação dos direitos fundamentais no âmbito deste tipo de pacto, haja vista que o trabalhador, ao celebrar esse contrato, cede ao empregador sua força de trabalho, de modo a gerar uma relação de “dependência” entre estes[34].  O empregador depende da força laborativa do empregado para a realização de sua atividade enquanto o empregado depende daquele emprego para sua subsistência.

Evidentemente, esta relação encontra-se desequilibrada. No Brasil, faltam empregos e sobram pessoas que querem trabalhar. Para o empregador, a situação é bem conveniente, uma vez que este tem a opção de substituir o empregado. Já para o trabalhador, a situação é desesperadora. Este se submete a diversas ofensas aos seus direitos fundamentais em razão da necessidade do emprego.

Observa-se que, em decorrência dessa relação de “dependência”, surgem diversas limitações à liberdade pessoal do trabalhador, bem como ofensas aos seus direitos fundamentais. Contudo, tais limitações e ofensas não podem ficar à mercê da vontade do empregador, devendo ser tuteladas pelo direito do trabalho. E é a partir desta constatação que surgem:

derecho al trabajo con sus diferentes derechos especiales, tales como la libre elección de la profesión, los derechos a um puesto de trabajo, a un salario justo, a condiciones de trabajo adecuadas, a la protección para determinados grupos de personas (mujeres, adolescentes). al descanso, a un subsidio por desempleo, el derecho de coalición y de huelga, como así también el derecho de cogestión[35].

Verifica-se, portanto, que o trabalhador é titular de direitos fundamentais individuais na condição de trabalhador. Contudo, também se observa que o empregado é portador de direitos fundamentais na condição de cidadão, reconhecendo-se os direitos elencados na seara trabalhista (artigo 7º da CF), bem como aqueles direitos inerentes aos demais cidadãos previstos no texto constitucional[36].

 Dessa maneira, garante-se a dignidade do trabalhador enquanto cidadão, evitando-se que o sujeito seja tratado como mera mercadoria integrante do contrato de trabalho. O empregado é muito mais do que somente uma força laborativa, que pode ser substituída a qualquer tempo. É um ser humano e como ser humano integrante do ordenamento jurídico deve ser tratado como tal, de maneira a serem assegurados direitos inerentes à sua condição de cidadão, bem como os direitos trabalhistas.

Por conseguinte, a inserção dos direitos fundamentais nas relações de emprego funcionaria como meio de driblar as desigualdades promovidas no ordenamento brasileiro, principalmente no tocante às injustiças sociais cometidas contra o trabalhador. Este deve ser visto como sujeito de direitos trabalhistas, sem que seja esquecida sua condição de cidadão, ainda que no âmbito laboral.

Por isso, defende-se que o direito do trabalho deve ser visto como um direito fundamental num todo, permitindo que “qualquer posição jurídica, passível de ser a ele reconduzida, adquira fundamentabilidade material necessária à sua proteção contra as maiorias eventuais”[37].

Essa afirmativa ganha maior força quando se trata de contrato de trabalho, pois os sujeitos da relação trabalhista estabelecem uma relação juridicamente igual, mas faticamente desigual, pois o empregador detém o poder econômico. Este pode ser traduzido em um poder social que advém de uma supremacia capaz de interferir na autodeterminação do empregado, tanto no momento de contratar, como durante a prestação do contrato de trabalho, já que o empregado é hipossuficiente, necessitado, a qualquer custo, daquele trabalho para seu sustento e de sua família[38].

Outra justificativa para a inserção dos direitos fundamentais nas relações de emprego é a existência de subordinação jurídica como elemento da relação de emprego, de modo a conferir ao empregador certos poderes para alcançar os fins desejados no âmbito da relação de emprego.[39]

O artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – confere ao empregador poder diretivo, fiscalizador e sancionador. Estes poderes representam o conjunto de prerrogativas concentradas no empregador dirigidas à organização e estruturação empresarial, incluindo o processo de trabalho adotado na empresa, com estabelecimento de regras e orientações no tocante às condutas dos empregados dentro do estabelecimento[40].

Em síntese, o poder diretivo é o poder que o empregador tem de dar ordem de serviço ao empregado. Contudo, essas ordens devem obedecer os limites morais, legais e contratuais. Essas ordens devem ser fiscalizadas, de maneira a ensejar o poder fiscalizador. O poder de punir, por fim, é conferido ao empregador para que este estabeleça sanções diante de determinadas condutas praticadas pelo empregado.

O exercício desses poderes, aparentemente, não traria malefício algum ao empregado. Contudo, as formas de controle e fiscalização, o modo como essas são exercidas e o estabelecimento de certas punições de caráter vexatório ou ilegal podem extrapolar a proporcionalidade esperada, de modo a atentar ou violar direitos fundamentais.

É pelas razões expostas que se verifica que os direitos fundamentais têm incidência nas relações trabalhistas. A grande celeuma, no entanto, consubstancia-se na eficácia que estes devem possuir em relação ao particular empregador. Seria o caso de vinculação do empregador aos direitos fundamentais?

Entende-se que esta é a melhor hipótese. Partindo-se da premissa de que o direito do trabalho é ramo do direito privado, o contrato de trabalho estaria respaldado pela autonomia privada. As partes deste contrato possuem ingerência nas normas a serem estabelecidas durante o vínculo empregatício. No entanto, essas normas não podem ficar à vontade do empregador, uma vez que a relação empregatícia é marcada pela hipossuficiência de uma das partes.  Nas palavras de Ingo Sarlet:

Há que se partir da premissa de que os direitos fundamentais geram efeitos tanto no plano verticalizado das relações entre particulares e o poder estatal, quanto no plano (igualmente verticalizado) das relações entre particulares que não são detentores de um efetivo poder social e outros que detém parcelas expressivas de poder social, bem como das relações entre particulares em situação de tendencial igualdade fática, ainda que não se possa aplicar, de modo geral e de modo igual, as mesmas categorias dogmáticos-argumentativas, por conta de um maior impacto da autonomia privada[41].

Observa-se, portanto, que o contrato de trabalho é marcado por uma relação aparentemente horizontal, pois, em verdade, os sujeitos desta relação encontram-se em situação de desigualdade fática, onde o empregador é detentor do poder social. Essa afirmação justificaria, por si só, a vinculação do empregador aos direitos fundamentais, uma vez que a incidência destes promoveria um equilíbrio na relação contratual estabelecida.

Contudo, ainda que não se tratasse de uma relação desequilibrada, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais seria possível, uma vez que a autonomia privada não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias fundamentais de terceiros.

O direito do trabalho não pode ignorar a existência dos poderes privados como detentores de poderes sociais em relação aos trabalhadores. Deve-se combater, portanto, o uso indiscriminado da autonomia privada como justificadora de condutas atentatórias ou ofensivas aos direitos fundamentais da parte hipossuficiente.

E, se tratando de uma relação que nasce desigual, a melhor forma de combater tal desproporcionalidade seria através de uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações de emprego.

O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, em alguns acórdãos, a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas, ainda que não utilize o termo eficácia direta ou imediata.

No Recurso Extraordinário n. 160222-8- RJ, datado de 11 de abril de 1995, a questão foi abordada pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, de maneira indireta. O recurso foi proposto no bojo da ação penal que o Ministério Público propôs em face do Diretor da Empresa Millus S.A, fabricante de peças íntimas, por crime de constrangimento ilegal, ao submeter as operárias da empresa à revista íntima, sob ameaça de dispensa. O Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro absolveu o acusado, sob o argumento de que as empregadas assinaram contrato de trabalho, sendo este lei entre as partes. Interposto Recurso Extraordinário, o STF não pode adentrar no mérito em razão da ocorrência de prescrição. Contudo, vale registrar passagem do voto do Ministro Sepúlveda Pertence sobre a questão:

lamento que a irreversibilidade do tempo decorrido faça impossível enfrentar a relevante questão de direitos fundamentais da pessoa humana que o caso suscita, e que a radical contraposição de perspectivas entre a sentença e o recurso, de um lado e o exacerbado privalismo do acórdão, de outro, tornaria fascinante[42].

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Logo depois o Supremo Tribunal Federal enfrentou nova questão relacionada à vinculação dos particulares a direitos fundamentais, no Recurso Extraordinário n. 161243-6, do Distrito Federal. O caso diz respeito a um funcionário brasileiro da Air France, ao qual não tinham sido estendidos alguns benefícios que o plano de carreira da empresa previa, pois esse plano diferenciava franceses e não-franceses. O STF decidiu que o princípio da igualdade deve ser respeitado em qualquer relação particular, como demonstra a ementa do julgado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido[43].

Percebe-se, pela interpretação do julgado, que os direitos fundamentais estão presentes nas relações trabalhistas, inclusive no tocante à inserção de direitos dos cidadãos nesta relação, com é o caso do direito à igualdade.

Em razão de tais peculiaridades, entende-se que a melhor forma de proteção dos direitos fundamentais nas relações de emprego seria através da eficácia imediata, de modo que estes direitos devam incidir diretamente nestas relações.

Os direitos fundamentais trabalhistas e os direitos do cidadão devem sempre ser respeitados, de modo que a autonomia privada só incida se não caracterizar limitação ou ofensa a esses direitos.

Tratando-se de uma relação marcada pela desigualdade, as teorias da eficácia mediata e deveres de proteção estatal não seriam suficientes para coibir as condutas desenfreadas dos empregadores. Isto se dá pois uma atuação legislativa por parte do Poder Público não é suficientemente forte para impedir que o empregador aja em afronta aos direitos fundamentais. Deve-se sempre lembrar que ele é o detentor do poder social. É o empregador que decide se o empregado continua trabalhando para ele ou não. E o empregado, enquanto parte hipossuficiente, não pode abrir mão do emprego que garante o seu sustento e de sua família.

Na prática, mesmo com adoção de medidas legislativas e atuação judiciária na interpretação de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas em favor do trabalhador, o empregador não deixaria de se utilizar deste poder social que possui. Somente uma eficácia direta, imediata conseguiria coibir práticas atentatórias a direitos fundamentais, pois não haveria ao empregador escusa na sua conduta, já que esta violaria o texto constitucional. Dessa maneira, entende-se que a vinculação direta é a solução mais plausível diante da desigualdade marcante que ronda o contrato de trabalho.

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Sobre a autora
Adriana Wyzykowski

Mestranda em Direito Privado – Relações Sociais e Novos Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito. Professora Substituta da disciplina Legislação Social e Direito do Trabalho da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WYZYKOWSKI, Adriana. Direitos fundamentais e relação de emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3311, 25 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22266. Acesso em: 25 abr. 2024.

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