O problema da construção do discurso judicial e da crise do Direito já era uma preocupação de Piero Calamandrei na primeira metade do século XX[1]. Naquele momento, Calamandrei já questionava se o jurista seria, realmente, um lógico puro, estimulando que os estudantes verificassem “se é verdade que a sentença se esgota na pura lógica, no denominado ‘silogismo judicial’, ou se, pelo contrário, o elemento determinante, ainda que invisível, não é com bastante frequência o sentimento”[2].
Para ilustrar a questão exposta, Calamandrei fez uso da referência a um processo judicial no qual havia pessoalmente atuado, o qual, pela sua peculiaridade, vale a pena ser registrado. No caso, discutia-se o vício redibitório relativo à compra e venda de um cavalo de corrida. O comprador pretendia a anulação do negócio, argumentando que o cavalo tinha o vício oculto de ser mordedor. O trecho peculiar registrado por Calamandrei refere-se à manifestação do Ministério Público italiano em sua exposição oral, no julgamento do recurso do comprador:
“Sei, por experiência, quão perigosos são os cavalos mordedores: faz muitos anos, enquanto subia com meu filhinho em uma carruagem de aluguel, o cavalo lhe cravou os dentes em um braço deixando-o meio desmaiado de dor e de medo. A lei deve ser rigorosíssima contra os cavalos mordedores!”[3]
Este trecho anedótico de Calamandrei revela uma característica da experiência humana que não pode ser desconsiderada. As pessoas, e, portanto, os julgadores e demais praticantes do Direito, tendem a avaliar o mundo conforme as suas experiências pessoais. A simples referência ao “cavalo mordedor” foi suficiente para relembrar uma experiência pessoal bastante negativa, o que fez o membro do Ministério Público italiano a concluir que, no caso, a lei deveria ser aplicada de forma rigorosíssima, o que quer que isso signifique, mesmo sem considerar que quem estava em julgamento não era o “cavalo mordedor”. Como as experiências pessoais são absolutamente distintas, um sistema judicial que se baseie no que os julgadores sabem “por experiência” está fadado a ser contraditório. Por tal razão, os praticantes do Direito necessitam de referenciais teóricos que permitam uma análise menos pessoal e emotiva dos casos que lhes são submetidos, sem os quais a aplicação do Direito tende à arbitrariedade e aleatoriedade.
No momento atual, ante a crescente inadequação do modelo teórico individualista-formalista-normativista, que era predominante na prática judicial brasileira até a segunda metade do século XX, parece-nos que os praticantes do Direito se veem carentes de referenciais teóricos contemporâneos que lhes auxiliem na análise dos novos problemas que lhes são apresentados. Por tal razão, postulamos a existência, nas últimas décadas, de uma possível crise do Direito. A crise, nesta acepção, não é no sentido de absoluta inoperância, pois o Direito continua sendo um modelo institucional apto a dar algum tipo de solução formal a conflitos sociais. Referimo-nos a crise no seu sentido khuniano, para expressar um período de mudança e de questionamento de um paradigma. Usamos o termo paradigma na definição proposta por Thomas Kuhn, expressando o conjunto “[d]as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”[4].
Horácio Rodrigues também discute a crise do paradigma epistemológico na área do Direito e de seu ensino. Segundo Rodrigues, o ensino do Direito se daria na exposição de uma suposta dualidade entre jusnaturalismo e positivismo. Todavia, para o autor, ambas as visões de mundo seriam insuficientes para fundamentar uma verdadeira práxis jurídica no mundo contemporâneo, a qual não pode ser solucionada nem pela exclusiva aplicação de normas legais, nem pela busca de ideais transcendentes e metafísicos. Desta forma, o positivismo e o jusnaturalismo estariam dando os “últimos suspiros” como forma explicativa da realidade social[5].
Ao comentar sobre a possível prevalência do ideal positivista, Rodrigues aponta que os avanços da teoria da linguagem demonstram a impossibilidade de uma unidade de leitura das próprias normas estatais. Segundo o autor, a própria psicanálise corrobora a influência do inconsciente na leitura e interpretação jurídicas, inviabilizando a pretensão a um mundo jurídico de leis unívocas[6]. Devemos destacar o seguinte trecho de Rodrigues, o qual, pela sua importância, merece a reprodução:
“Na área jurídica há ainda um idealismo primário. Analisando-se a produção existente pode-se constatar que mesmo o que se chama de positivismo não possui bases empíricas efetivas, pois fala apenas em nome de dogmas legais, muitas vezes sem legitimidade e eficácia sociais. Toda a lógica do direito vigente e seu conhecimento estão assentados nos pré-conceitos (ou preconceitos) do liberalismo e do cientificismo nascidos no século XVIII[7].” [grifos do original]
Lenio Streck também concorda que há uma crise de paradigma do Direito e da dogmática jurídica, a qual atinge diretamente o Judiciário e outras instâncias de administração da justiça. Streck registra a existência de um hiato entre a concepção de Direito do Estado Liberal e do modelo que busca a sua superação, problema este que seria agravado em países que entraram tardiamente no modelo do Estado Democrático de Direito. A consequência seria a crise do paradigma liberal-individualista-normativista. Para Streck, a dogmática jurídica lida com os problemas contemporâneos através do que ele designa por “fetichização do discurso jurídico”, ou seja, pelo uso de um discurso dogmático para a ocultação das condições de produção do sentido do discurso. A lei passa a ser vista como uma “lei-em-si”, abstraída das condições de produção que a engendraram[8].
Ainda segundo Streck, o discurso jurídico seria, então, produzido como um discurso universal, natural e óbvio, um discurso-lei que não é percebido como lei. Este discurso seria baseado numa ideosfera, composta de ideias-frases e de argumentos-fórmulas, a qual ignora todo o argumento à margem como se fossem desvios. A formação deste senso comum teórico, para Streck, estaria relacionada, entre outros fatores, ao processo de aprendizagem das faculdades de Direito, o qual simplifica o ensino jurídico a partir da construção de standards e de lugares comuns, repetidos nas salas de aula e, posteriormente, reforçados nos cursos de preparação para os concursos públicos[9].
Em sentido similar, Roberto Freitas Filho sustenta que a realidade jurídica atual possui semelhanças a uma situação de superação paradigmática. Para o autor, o Direito vive um momento no qual as anomalias estão constantemente presentes, de forma crônica, reveladoras da incapacidade do saber hegemônico de dar respostas satisfatórias a determinados problemas contemporâneos. Assim, a realidade para a qual são preparados os atores jurídicos parece não existir. A tradição do pensamento jurídico ocidental foi conformada para uma realidade sócio-econômica de matriz liberal. Todavia, o ator jurídico se depara com uma realidade distinta da que é descrita pela tradição jurídica, com o enfrentamento de problemas como questões macroeconômicas, novos direitos, globalização econômica e a perda da capacidade normativa do Estado-nação[10].
Para Roberto Freitas, a crise do Direito estaria associada à crise do Estado, sendo apresentada pela “progressiva deterioração da organicidade do sistema jurídico”. Esta crise se manifestaria através da instabilidade do Direito Positivo, da insegurança jurídica e da perda de confiança nas soluções normativas, o que acabaria expressando a perda da legitimidade do próprio Direito[11].
Concordamos com os autores acima, no sentido que o paradigma hoje estabelecido na cultura jurídica apresenta sinais de exaustão, possivelmente aproximando-se de um momento de superação em um processo similar à revolução científica descrita por Khun. Entendemos, ainda, que a pretensa dualidade entre positivismo e jusnaturalismo não mais consegue apresentar estruturas teóricas aptas a explicar os problemas verificados na prática jurídica.
Aquiescemos, também, que a cultura jurídica hoje reproduzida está arraigada em conceitos liberais do século XVIII, tentando resolver problemas pós-modernos através do uso de categorias de pensamento que antecedem à revolução industrial. Não é de se estranhar, portanto, a dificuldade da prática jurídica de solucionar os problemas contemporâneos dentro destas categorias jurídicas, as quais foram pensadas para uma sociedade liberal, individualista e elitista e que não mais correspondem aos valores da sociedade contemporânea. É possível que esta distância entre teoria e prática explique o motivo pelo qual os textos doutrinários jurídicos vêm se tornando cada vez menos relevantes na formação das decisões judiciais e das soluções jurídicas. Postulamos, por fim, que apesar da inadequação dos modelos gerais hoje estabelecidos, parece-nos ainda não haver nos praticantes do Direito um consenso mínimo que permita o surgimento de um novo paradigma, capaz de lidar com os problemas contemporâneos.
A falta deste referencial teórico implica em aceitarmos que as decisões judiciais e pareceres jurídicos afastem-se dos modelos analíticos e se aproximem cada vem mais de textos argumentativos. Na falta de um consenso teórico mínimo, o discurso jurídico se vê obrigado a defender um determinado ponto de vista através do uso da retórica[12]. Ainda que se reconheça o valor da retórica na formação do pensamento jurídico, esta posição tende a esvaziar o conteúdo do Direito como um saber científico, transformando-o num simples discurso político, baseado nas experiências, ideologias, emoções e idiossincrasias de seus praticantes.
Não defendemos que o praticante do Direito, ao examinar problemas jurídicos, atenha-se exclusivamente a operações lógicas, como se o Direito pudesse ser restringido a fórmulas matemáticas, a processos exatos ou a uma linguagem unívoca. Não postulamos tampouco a noção da existência de uma única decisão jurídica “correta”. Todavia, opinamos, de forma modesta, ser possível a formulação de uma contribuição teórica que permita que o praticante do Direito enfrente as questões contemporâneas dentro de categorias jurídicas mais atualizadas, que sejam mais próximas dos problemas atuais, em substituição às categorias do pensamento liberal-individualista do século XVIII.
REFERÊNCIAS
CALAMANDREI, Piero. A Crise da Justiça. Belo Horizonte: Líder, 2003.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
FREITAS FILHO, Roberto. Crise do Direito e Juspositivismo: A Exaustão de um Paradigma. Brasília: Brasília Jurídica, 2003.
MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O Direito Errado que se Conhece e Ensina: A Crise do Paradigma Epistemológico na Área do Direito e seu Ensino in FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila (org.). A Crise do Conhecimento Jurídico: Perspectivas e Tendências do Direito Contemporâneo. Brasília: OAB Editora, 2004. p. 93-107.
STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
Notas
[1] CALAMANDREI, Piero. A Crise da Justiça. Belo Horizonte: Líder, 2003.
[2] CALAMANDREI, op. cit., p. 15.
[3] CALAMANDREI, op. cit., p. 17.
[4] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 13.
[5] RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O Direito Errado que se Conhece e Ensina: A Crise do Paradigma Epistemológico na Área do Direito e seu Ensino in FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila (org.). A Crise do Conhecimento Jurídico: Perspectivas e Tendências do Direito Contemporâneo. Brasília: OAB Editora, 2004. p. 93-107.
[6] RODRIGUES, op. cit., p. 108.
[7] RODRIGUES, op. cit., p. 109.
[8] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 111-113.
[9] STRECK, op. cit, p. 95-97.
[10] FREITAS FILHO, Roberto. Crise do Direito e Juspositivismo: A Exaustão de um Paradigma. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 44-47.
[11] FREITAS FILHO, op. cit., p. 47-48.
[12] Cf. PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 141-181.