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Infração administrativa do art. 249 do ECA por descumprimento de requisição do conselho tutelar.

Interpretação na órbita do direito da criança e do adolescente

Leia nesta página:

A interpretação de que o artigo 249 do ECA somente alcança descumprimento de requisições do conselho tutelar endereçadas aos detentores do poder familiar ignora a função social do sistema protetivo da infância e juventude e o fato de que o Poder Público deve ser alcançado pelo dever de proteção.

A pretensão do presente artigo é discutir e questionar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que restringe a aplicação do art. 249 da Lei 8.069/90 apenas aos pais ou responsáveis (ou decorrente de tutela ou guarda) que descumprem suas obrigações decorrentes do poder familiar.

Urge a mudança dessa interpretação a fim de resguardar a coercibilidade da atuação do Conselho Tutelar frente a qualquer política pública omissa, como por exemplo, quando expede requisições para o poder público de vagas em centros de educação infantis ou em escolas.


1. DA NATUREZA JURÍDICA DAS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS.

As infrações administrativas são forma de expressão do poder de polícia da Administração Pública, caracterizando-se como a interferência Estatal na esfera privada, à medida que restringem direitos individuais em nome da coletividade.

A natureza do procedimento de apuração da infração administrativa desperta divergências tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

De um lado, há a tese que defende a natureza administrativa do procedimento. Na mão oposta, os que insistem na natureza jurisdicional.

Não obstante a plausibilidade das duas correntes doutrinárias, considerando que o próprio Estatuto imputou competência à Justiça da Infância e da Juventude para a aplicação de penalidade administrativa nos casos de infração contra norma de proteção a criança e ao adolescente (art. 148, inc. VI), resta evidenciada a natureza jurisdicional do procedimento.

Conforme expõe Ramos (2007, p. 633):

A violação de um preceito normativo, caracterizando uma infração administrativa, faz nascer o direito subjetivo da sociedade de exigir o respeito à ordem jurídica vigente.

[...]

Pela sistemática do Estatuto, tal pretensão da sociedade deve ser exigida judicialmente, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Tutelar, ou através de servidores púbicos credenciados para tal, perante a Vara da Infância e da Juventude. A aplicação da penalidade pressupõe a intervenção do Poder Judiciário.

E essa intervenção não é meramente administrativa, pois é função do processo judicial compor a lide, resolver os conflitos segundo a ordem jurídica estabelecida.

Assim sendo, antes de ser iniciado o comentário das questões relativas ao procedimento de apuração de infração administrativa, é necessário falar brevemente a respeito das infrações administrativas do ECA.


2. AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS CONTRA AS NORMAS PROTETIVAS.

Como destacado acima, as infrações administrativas representam uma das formas de manifestação do poder de polícia da Administração Pública, caracterizando-se como a interferência do Poder Público na esfera particular, por meio da restrição de direitos individuais, em nome da coletividade.

Na definição proposta por Ramos (2007, p. 394):

[...] as infrações administrativas são condutas contrárias a preceitos normativos que estabelecem uma ingerência do Estado na vida do particular, seja pessoa física ou jurídica, com vistas à proteção de interesses tutelados pela sociedade, com sanções de cunho administrativo, ou seja, restritivas de direitos, mas não restritivas de liberdade, geralmente importando num pagamento de uma multa pecuniária, suspensão do programa ou da atividade, fechamento de estabelecimento, apreensão do material inadequado ou simples advertência.

[...]

Em termos de escolha legislativa, o que representa um mero ilícito administrativo hoje poderá vir a ser um ilícito penal amanhã e vice-versa. Há uma consideração valorativa feita pelo legislador quanto a certos bens jurídicos, tendo como conseqüência a cominação de penas mais leves ou mais graves aos realizadores das condutas potencialmente ofensivas.

Sendo assim, apesar de seus efeitos serem diferentes, não há uma distinção explícita entre a sanção de natureza penal e a sanção de natureza administrativa à medida que ambas decorrem da desobediência a uma norma de conduta e de controle social.


3. DA NECESSÁRIA INTERPRETAÇÃO FAVORÁVEL AO OBJETO JURÍDICO PROTEGIDO.

Os argumentos mais comuns lançados nos precedentes do STJ e de outros tribunais dizem respeito à ilegitimidade da parte, notadamente do Poder Público, para figurar no pólo passivo daquele comando normativo, eis que apenas os detentores do poder familiar, tutela ou guarda é que poderiam ser punidos pelo artigo 249 do ECA.

Observamos que o tipo administrativo em questão deve ser dividido em duas partes bem claras, in verbis:

Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar:

Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Parece claro que a expressão “bem assim” dividiu o alcance da norma em duas situações diferentes, sendo a primeira dirigida aos pais ou responsáveis e a segunda, para toda a coletividade que descumpra, dolosa ou culposamente, as determinações do Conselho Tutelar ou do juiz de direito.

Não fosse assim, estaria comprometida a eficácia da Lei 8.069/90, que pretendeu dar ao conselho tutelar e ao juiz da infância e juventude poderes para proteger, de maneira eficiente, os direitos das crianças e adolescentes em situação de risco.

Evidente que a CR/88, quando expressamente elencou dentre os princípios da administração pública o da eficiência, bem assim, quando no art. 227 determinou que caberia à sociedade e ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, buscou dar concretude às normas operacionais destinadas ao efetivo cumprimento das ordens emanadas pelas autoridades constituídas na seara de defesa, promoção e proteção do público infanto-juvenil.

Para facilitar o entendimento da matéria, entendemos pertinente colacionar a íntegra do art. 100 da Lei 8.069/90, que explicita como deve ser INTERPRETADO o Estatuto da Criança e do Adolescente, sem embargo da leitura do art. 6º, in verbis:

Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:

I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal;

II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares;

III - responsabilidade primária e solidária do poder público: a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes por esta Lei e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta expressamente ressalvados, é de responsabilidade primária e solidária das 3 (três) esferas de governo, sem prejuízo da municipalização do atendimento e da possibilidade da execução de programas por entidades não governamentais;

IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;

V - privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;

VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;

VII - intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente;

VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;

IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente;

X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta;

XI - obrigatoriedade da informação: a criança e o adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;

XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente, observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 28 desta Lei.

Como afirmado, além destes princípios, temos que ler o Estatuto à luz da CR/88 e com observância do art. 6º do ECA, in verbis:

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Logo, malgrado existam decisões jurisprudenciais no sentido de se responsabilizar apenas os pais ou responsáveis que descumpram seus deveres relacionados ao poder familiar, não nos parece justo ou adequado esse tipo de interpretação à luz da Lei 8.069/90, em cotejo com a normativa internacional e com a CR/88.

Na doutrina, existe a clara noção da necessidade de se dividir o art. 249 em duas partes, como, por exemplo, na obra de Valter Kenji Ishida:[1]

“Sujeito ativo a pessoa que detenha o pátrio poder, a tutela ou a guarda: pai, tutor oi guardião (no caso da primeira figura). São os “sujeitos ativos qualificados, dos quais se exige capacidade penal especial, são também chamados pessoas qualificadas (intranei)” (Jesus, 1991:151). Equipara-se a infração e tela aos “crimes de mão própria”, ou seja, aqueles que somente podem ser praticados pelo autor em pessoa, por exemplo: só pode descumprir o pátrio poder aquele que legitimamente o detenhas.

No caso da segunda figura (“descumprir determinação da autoridade judiciária ou conselho tutelar”), é sujeito ativo qualquer pessoa que descumpra determinação do Conselho Tutelar ou da Autoridade Judiciária. Trata referido dispositivo de alta incidência na pratica forense relacionada à infância e juventude, sendo no caso da Vara da Infância e Juventude de Itaquera, o de maior infringência.

Seria de melhor técnica que as duas figuras fossem dispostas em tipos diferentes por tratarem de tipos completamente diferentes: de um lado, tutela-se o real cumprimento das obrigações do pátrio poder e de outro, protege-se o cumprimento das determinações do Conselho Tutelar ou do Juiz da infância e da Juventude”.

Neste sentido, também lecionam Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore e Rogério Sanches Cunha[2] que o artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, apresenta duas figuras típicas. A primeira refere a uma infração própria e a segunda a qualquer pessoa que desobedeça a determinação da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar, in verbis:

“Percebe-se a existência de duas figuras típicas no mesmo artigo. A primeira se refere a uma infração própria, que somente poderá ser praticada por aqueles que possuem deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes de tutela e guarda. Na segunda figura, qualquer pessoa pode ser agente ativo, desde que desobedeça determinação da autoridade judiciária ou do conselho Tutelar.”

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A explicação possível para a existência de duas figuras típicas no mesmo dispositivo está no propósito de o ECA ter reunido no mesmo artigo o poder requisitório do Conselho Tutelar e sua consequência pecuniária. O foco do dispositivo foi sistematizar em um único artigo da lei, no capítulo referente a infrações administrativas, as conseqüências para o descumprimento das requisições do conselho tutelar. Esse poder de requisição do conselho tutelar encontra-se descrito no artigo 136, III, “a”, do ECA. O que ocorre na verdade entre esses dispositivos, levando em conta uma interpretação lógico-sistemática, é relação de complementaridade e coercibilidade entre este e aquele dispositivo.

A interpretação de que o artigo 249 do ECA somente alcança descumprimento de requisições do conselho tutelar endereçadas aos detentores do poder familiar, ignora a função social do sistema protetivo da infância e juventude e ignora que o Poder Público deve ser alcançado por esse dever de proteção.

De outro lado, é preciso registrar que o Conselho Tutelar somente poderá/deverá requisitar serviços públicos que figuram alguma espécie de medida de proteção, quando, inequivocamente, identificá-lo como existente e em funcionamento no município, à exemplo da requisição de vagas na rede pública. Se certo que realmente não existe a vaga, o problema é mais sério, sendo dever do conselho tutelar tão-somente encaminhar o caso para o Ministério Público, nos termos do artigo 220, do ECA, para o fim deste atuar na esfera extrajudicial (TAC) ou na esfera judicial (ACP, Mandado de Segurança, etc.).

Aliás, infelizmente, essa falta de vaga escolar tem sido bastante constatada na linha da Educação Infantil pelo Brasil afora, cujos municípios não têm cumprido os preceitos constitucionais e infraconstitucionais. De nada adianta o Conselho Tutelar requisitar vaga e matrícula para creche ou pré-escola inexistentes ou com déficit de vaga, pois o município não estará obrigado a cumprir requisição inquisitiva que importe em intromissão no seu erário, pois não lhe foi oportunizado o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

O legislador ordinário, ao elaborar o ECA, quando estabeleceu o poder/dever ao Conselho Tutelar para requisitar serviços públicos, bem como quando conferiu atribuição legal para aplicar medidas de proteção previstas no artigo 101, incisos I a VII, partiu da premissa que todas as políticas públicas e sociais estariam criadas e em funcionamento em prazo exíguo, conforme se observa do comando do artigo 259 e parágrafo único. A exceção seria a política de atendimento não existir ou restar insuficiente para atender a demanda. Se a expectativa legal tivesse sido cumprida por todos os entes da federação, o Conselho Tutelar teria muito maior força para atuar, pois seu poder de requisição teria manifesta efetividade, haja vista que haveria equipamento público para encaminhar as crianças, os adolescentes e seus respectivos familiares.

Entretanto, o contrário é o que prevaleceu até os dias de hoje, mesmo depois de 22 anos de vigência do ECA. Raro é encontrar nesse país um município que possua uma rede integrada de políticas públicas e sociais de atendimento à criança e ao adolescente, bem como de atendimento aos seus respectivos familiares.

Diante do caos e da inexistência de políticas de atendimento, o Conselho Tutelar deve acionar o Ministério Público (art. 220, ECA) para os fins previsto na Lei nº 8.069/90. Mas isso só não bastará, pois ele terá que atuar, através de seus membros, como agentes políticos e assessorarem o Poder Executivo na elaboração do orçamento público, nos termos do artigo 136, IX, do ECA.

Portanto, partindo da premissa que o Conselho Tutelar requisitou um serviço existente no município e que sua requisição foi sonoramente descumprida, há que se incidir a aludida infração administrativa contra o gestor omisso.

Preceitua Celso Antonio Bandeira de Mello[3]:

Evidentemente, a razão pela qual a lei qualifica comportamento como infrações administrativas, e prevê sanções para quem nelas incorra, é a de desestimular a pratica daquelas condutas censuradas ou constranger ao cumprimento das obrigatórias. Assim, o objetivo da composição das figuras infracionais e da correlata penalização é intimidar eventuais infrações, para que não pratiquem os comportamentos proibidos ou para induzir os administrados a atuarem na conformidade de regra que lhe demanda comportamento positivo. Logo, quando uma sanção é aplicada, o que se pretende com isso é tanto despertar em quem a sofreu um estimulo para que não reincida, quanto cumprir uma função exemplar para a sociedade.

A optar-se pela interpretação de que a norma não se aplica à conduta dos gestores, estar-se-ia, literalmente, a legalizar e a conceder "ares de licitude" a uma conduta por demais ofensiva a vários princípios e preceitos legais previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, como já exaustivamente declinado.

A infração administrativa tem assim uma função coercitiva e punitiva que recai ao administrador público. Essa coerção judicial pessoal sobre a atuação do administrador público visa evitar justamente eventual dano exclusivo ao erário, além de demovê-lo da vontade de resistir aos comandos decorrentes dos provimentos jurisdicionais, resgatando o próprio valor do Estado Democrático de Direito e encontra amparo também no artigo 216 do ECA, que prevê um sistema de responsabilidade diferenciado para o administrador público que omite-se em cumprir seus deveres frente aos direitos das crianças e adolescentes.

A interpretação restrita dada por alguns se revela ainda, segundo pensamos, contra legem, e despe o Conselho Tutelar de sua função fiscalizatória em face do poder público, o que em última análise anula o comando emergente do artigo 136, III, “a”, do ECA. Esse entendimento sepulcra a efetivação da proteção integral constitucional, aleija a prioridade absoluta e faz ouvidos moucos ao melhor interesse da infância e juventude.

Sem a função infracional do artigo 249 do ECA em face de representantes do Poder Público, o Conselho Tutelar perde coercibilidade, o que também atenta contra a desjudicialização dos conflitos pretendidos pela legislação estatutária.

Eventuais lesões aos direitos infanto-juvenis serão, exclusivamente, debelados pelo judiciário, o que certamente é contraproducente diante da realidade atual brasileira.

A mudança desse paradigma é urgentíssima. Conclama-se para uma interpretação que atenda a esses propósitos e princípios.

A hermenêutica pretendida é resultado da interpretação dinâmica dos fatos à luz dos valores, princípios e regras jurídicas a ser desenvolvida pela justiça, não seguindo uma lógica formal (produto de um raciocínio matemático) nem com o intuito de se criar um preceito legal casuístico e dissociado do ordenamento jurídico, mas, dentro das amplas molduras traçadas pela Constituição, permitindo uma solução mais justa e eficiente dentre as possíveis.

Foi nessa linha que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul desproveu Recurso da Secretaria de Educação de Injuí que Apelou contra sentença que condenou a Secretária Municipal ao pagamento da pena pecuniária por ter negado vaga a crianças em uma creche próximo à sua casa. Nesse entendimento o Relator Desembargador Dr. Alfredo Guilherme Englert, acompanhado unanimemente, nos brinda com uma lição:

“(...) Nesta seara, o atendimento de crianças e adolescentes deve ocorrer em primeiro plano pela Administração Pública, o que, por si apenas, já é suficiente para estabelecer a responsabilização da Secretária de Educação pela inexistência de vaga para educação infantil.”(...)

(...) “Acrescento, ainda, que, apesar da argumentação da recorrente, exsurge dos autos a não-comprovação da inexistência da vaga em tela. Ora, na medida em que havia a determinação do Conselho Tutelar, e essa não foi cumprida, a atuação da ora apelante tipificou a conduta prevista no art. 249, do ECA.(...) grifo nosso (APELAÇÃO CÍVEL. APURAÇÃO DE INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. NEGATIVA, POR PARTE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE IJUÍ, DE INCLUSÃO DE CRIANÇA EM CRECHE MUNICIPAL, APESAR DE DETERMINAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR MUNICIPAL. ATUAÇÃO QUE TIPIFICOU A HIPÓTESE PREVISTA NO ART. 249, DO ECA. RECURSO DESPROVIDO. (TJRS. 8ª C. Cív. Ap. Cív. nº 70007911084. Rel. Alfredo Guilherme Englert. J. em 04/03/2004).

Outrossim, o princípio da proteção integral esculpido no art. 227 da CR/88 não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela criança, por meio do legislador constituinte. O princípio é alicerçado pela condição peculiar da criança e adolescente de serem pessoas em desenvolvimento, ante sua fragilidade (orgânica, social, econômica, familiar, etc) de pessoa em formação.

A prioridade deve ser assegurada por todos: família, comunidade, sociedade em geral, Poder Público. A preferência de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, assegurada a crianças e adolescentes é a primeira garantia de prioridade estabelecida no parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8069/90.

Na prestação de serviços públicos e de relevância pública, crianças e jovens também gozam de prioridade.

Por sua vez, o melhor interesse, princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador da norma, determina prioridade das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, decorrentes de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras.


4. DIREITOS FUNDAMENTAIS E POSITIVOS

A ofensa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes se materializa diariamente nas constantes requisições do Conselho Tutelar desatendidas por maus gestores de todas as áreas, seja educação, saúde, serviço social, que, como consequência, negam os direitos mais básicos a tais cidadãos. Além do abandono promovido pelo Estado, verifica-se desatendimento das normas acima referidas, em especial ao art. 227 da CR/88, que não custa repetir:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 4º A LEI PUNIRÁ SEVERAMENTE O ABUSO, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente."

Observa-se que a Constituição Federal, que adentrou ao mundo jurídico nacional em 1988, claramente firmou que a sociedade brasileira deverá estar empenhada na proteção integral de crianças e adolescentes, e, para isso, postou que instrumentos seriam criados para punição dos transgressores.

Foi nessa esteira que surgiu em 1990, a Lei nº 8.069, conhecida pelo nome de Estatuto da Criança e do Adolescente.

Logo no início de sua codificação, eis um dos regramentos mestres:

"Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade."

Encontra-se clarividente na letra da lei serem as crianças e adolescentes titulares de direitos e, no caso, merecedores de atenção quanto a peculiaridade de serem pessoas em desenvolvimento, devendo receber dos pais, sociedade e poder público, respeito e dignidade, além de proteção integral (físico, mental, moral, espiritual e social).

Ocorrendo violação a esses direitos há nítida necessidade de se coibir tais ofensas, seja quem for o responsável por tal violação.


5. CONCLUSÃO

A melhor hermenêutica ao art. 249 do ECA é garantir-lhe comando coercitivo a qualquer pessoa que descumpra a requisição expedida pelo Conselho Tutelar (adequada sob a perspectiva da existência do serviço ou programa demandado), afinal, (1) a lei 8069/90 dispõe de um sistema de proteção integral à criança e ao adolescente. (2) Esse sistema impede qualquer forma de violação, ativa ou omissiva, dos direitos infanto-juvenis, seja praticada pelos pais, responsáveis, família ou Estado.

A mudança de paradigma interpretativo desse dispositivo busca resguardar a integridade e integralidade do sistema protetivo da lei 8069/90. Promove-se a prosperidade dos direitos das crianças e adolescentes, melhorando seus padrões de vida e os impulsionando ao pleno acesso a cidadania.


Notas

[1] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência. 2010. Ed. Atlas. p. 514.

[2] ROSSATO, Luciano Alves, et al., Estatuto da Criança e do Adolescente comentado, 2010, pag. 580.

[3] MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 2004, pag. 744.

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Sobre os autores
Renee do Ó Souza

Promotor de Justiça em Mato Grosso

Sidney Fiori Junior

Promotor de Justiça MP/TO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Renee Ó ; FIORI JUNIOR, Sidney. Infração administrativa do art. 249 do ECA por descumprimento de requisição do conselho tutelar.: Interpretação na órbita do direito da criança e do adolescente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3326, 9 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22357. Acesso em: 2 nov. 2024.

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