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Fato jurídico: plano da existência

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19/08/2012 às 17:44
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3 O Plano da Existência

O primeiro degrau da “escada ponteana” cuida da análise dos elementos constitutivos do negócio jurídico, cuja inobservância implica na inexistência do negócio.

Ainda que a doutrina possa se valer de variadas expressões para se referir aos elementos que compõem o plano da existência, adotar-se-á, neste trabalho, a expressão elementos constitutivos, sem que isso signifique nenhuma crítica às demais expressões, a seguir exemplificadas:

E a divergência começa na própria nomenclatura adotada para caracterizar os elementos existenciais do negócio jurídico: elementos essenciais e elementos particulares (Washington de Barros Monteiro), elementos constitutivos (Sílvio Rodrigues), elementos necessários para a configuração existencial do negócio (Junqueira de Azevedo), elementos do negócio jurídico (Sílvio Venosa), requisitos do ato jurídico (Carnelutti) e requisitos do negócio jurídico (Orlando Gomes). (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 368).

Assim, quais seriam os elementos que constituem o negócio jurídico?

3.1 Elementos constitutivos do negócio jurídico

Cumpre esclarecer que o Código Civil de 2002 não estabeleceu os elementos constitutivos do negócio jurídico, fixando, logo de início, os requisitos de validade no artigo 104.

Talvez seja por esse motivo que não existe um consenso doutrinário na apresentação de tais elementos, o que não é novidade no direito.

Assim, há autores que apresentam quatro elementos, autores que apresentam três elementos e autores que deles não se ocupam, partindo para os requisitos legais do artigo 104 do Código Civil.

Neste trabalho, serão tratados quatro elementos necessários para a configuração do negócio jurídico, quais sejam:

a)      Manifestação ou declaração de vontade;

b)     Agente emissor da vontade;

c)      Objeto

d)     Forma

3.1.1 Manifestação ou declaração de vontade

“A vontade é pressuposto básico do negócio jurídico e é imprescindível que se exteriorize (GONÇALVES; 2010, p. 348). Assim, a declaração ou manifestação de vontade torna-se fundamental para a celebração do negócio jurídico.

Segundo Marcos Bernardes de Mello (1998, p. 120), “do ponto de vista do direito, somente vontade que se exterioriza é considerada suficiente para compor o suporte fático do ato jurídico.”

Como pode ser feita a manifestação de vontade?

A manifestação de vontade pode ser expressa, quando o agente a evidencia de maneira clara, ou pode decorrer do comportamento do agente.

Expressa é a que se realiza por meio da palavra, falada ou escrita, e de gestos e sinais ou mímicas, de modo explícito, possibilitando o conhecimento de imediato da intenção do agente. (GONÇALVES; 2010, p. 349). Exemplos: contratos verbais ou escritos, gestos e mímicas utilizados por surdos-mudos, ou nos pregões das bolsas de valores.

A manifestação tácita decorre do comportamento do agente. A conduta da pessoa pode levar a crer que ela tem a intenção de celebrar determinado negócio jurídico. Pode ser visualizada nos casos de aceitação da herança deduzida pelo comportamento da pessoa que pratica atos próprios de herdeiro, conforme o artigo 1805 do CC/02. Também se verifica nos casos de aquisição de propriedade móvel pela ocupação, conforme o artigo 1263 do CC/02.

Deve-se lembrar que, nos contratos, a manifestação de vontade só pode ser tácita quando a lei não exigir que seja expressa.

A manifestação presumida, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 349), “é a declaração não realizada expressamente, mas que a lei deduz de certos comportamentos do agente”. Exemplifica esta forma de aceitação a presunção de aceitação de herança, quando o herdeiro for notificado a se pronunciar sobre ela em prazo não maior de trinta dias e não o fizer, conforme o artigo 1807 do CC/02 e a presunção de aceitação de doação, quando o doador fixar prazo ao donatário para declarar se aceita ou não a liberalidade e este se omitir, conforme o artigo 539 do Código Civil de 2002. (GONÇALVES; 2010, p. 349).

Carlos Roberto Gonçalves difere a manifestação tácita da presumida proclamando que:

Difere a manifestação tácita da vontade da presumida porque esta é estabelecida pela lei, enquanto aquela é deduzida do comportamento do agente pelo destinatário. As presunções legais são juris tantum, ou seja, admitem prova em contrário. Destarte, pode o agente elidi-las, provando não ter tido a vontade que a lei presume. (GONÇALVES; 2010, p. 349-350).

As declarações de vontade também podem ser classificadas em receptícias ou não receptícias.

São receptícias de vontade as manifestações que precisam chegar ao conhecimento da outra parte para surtir efeitos, por exemplo: a revogação do mandato.

Já as não-receptícias são aquelas que produzem efeitos independentemente de recepção e de qualquer declaração de outra pessoa, por exemplo: promessa de recompensa, elaboração e revogação de testamento, estando, neste caso, o testador ainda vivo.

Deve-se observar que não se considera manifestada a vontade em casos de coação física ou de hipnose. Nestes casos, a manifestação de vontade seria neutralizada; o agente não emitiria sua vontade conscientemente, portanto, o negócio jurídico seria inexistente.

Dentro da manifestação de vontade, duas questões precisam ser discutidas: o silêncio e a reserva mental.

a) a questão do silêncio

O silêncio pode ser aceito como manifestação de vontade?

Segundo a doutrina de Vicente Ráo (1997, p. 124), o silêncio produziria efeitos jurídicos quando, em razão das circunstâncias, a atitude omissiva e voluntária de quem assim permanecesse pudesse induzir a outra parte, como a qualquer outra pessoa, à convicção de que o silente tenha expressado uma vontade que fosse incompatível com a expressão de uma vontade contrária.

Verifica-se, assim, que, em regra, o silêncio não é manifestação de vontade. Depende, pois, das circunstâncias e do fato de o silêncio ter sido suficiente para convencer a outra parte, ou a qualquer outra pessoa, de que o silente tenha demonstrado uma vontade incompatível com a vontade oposta.

 Assim, há situações em que a abstenção do agente ganha juridicidade (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 369).

Excepcionalmente, o silêncio pode produzir efeitos, conforme prescreve o artigo 111 do CC/02:

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

O silêncio, também, pode ser considerado manifestação de vontade conforme o artigo 432 do Código Civil:

Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa.

É o que Sebastião José de Assis Neto (2009, p. 167) chama de efeito vinculante do silêncio ou o que Francisco Amaral (2003, p. 405) denomina silêncio circunstanciado.

b) a reserva mental

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 351), “ocorre reserva mental quando um dos declarantes oculta a sua verdadeira intenção, isto é, quando não quer um efeito jurídico que declara querer.” O objetivo é enganar o outro contratante ou declaratário.

A reserva, que não foi tratada pelo Código Civil de 1916, está disciplinada no artigo 110 do atual Código:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

A reserva desconhecida de outra pessoa é irrelevante para o direito. A vontade declarada produzirá os seus efeitos normalmente. Porém, se o declaratário conhecer a reserva, a solução é outra. Nesse caso, a declaração será inexistente e, em consequência, não se forma o negócio jurídico.

3.1.2 Agente emissor da vontade

Não haveria negócio jurídico se não houvesse a pessoa para manifestar sua vontade.

A participação do sujeito, pessoa natural ou jurídica, é indispensável para a configuração do negócio jurídico.

Há parcela da doutrina que trata este elemento juntamente com o anterior, formando um só elemento, denominado manifestação ou declaração de vontade ou, apenas, vontade.

Ressalte-se que o fato de haver, neste trabalho, separação desses elementos não significa ruptura com a doutrina que não o faz; reflete, apenas, a tentativa de uma abordagem mais didática.

3.1.3 Objeto

Não há que se falar de negócio jurídico sem objeto, pois “todo negócio jurídico pressupõe a existência de um objeto – utilidade física ou ideal – em razão do qual giram os interesses das partes” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 370).

 Há que se ressaltar que não se pode reduzir o objeto a um bem material, pois há negócios que não se baseiam apenas em bens materiais, mas visam à prestação de alguma atividade, como, por exemplo: o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços.

No casamento, por exemplo, o objeto pode ser a formação de uma vida em comum, ou uma união de ideais e sentimentos.

Ao analisar o objeto, Sebastião José de Assis Neto (2009, p. 167) observa que o conteúdo das obrigações contraídas pelas partes também está englobado no objeto. Segundo ele:

Daí que se deve observar que o objeto do negócio engloba não só um bem especificamente descrito na declaração de vontade, mas também o conteúdo das obrigações contraídas pelas partes. Veja-se que, mesmo quando existe uma coisa sobre a qual incide a prestação, o conteúdo do negócio vai além da sua simples existência. Voltemos, por exemplo, à compra e venda: o conteúdo do negócio não é apenas a coisa a ser vendida, mas, também a criação da obrigação de sua entrega para o alienante e do pagamento do preço pelo adquirente. (ASSIS NETO; 2009, p. 167).

3.1.4 Forma

Antônio Junqueira de Azevedo (2002, p. 126) concebe a forma como sendo “o meio através do qual o agente expressa sua vontade.  A forma poderá ser oral, escrita, mímica, consistir no próprio silêncio, ou, ainda, em atos dos quais se deduz a declaração de vontade.”

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2010, p. 371) advertem que, embora “guardem íntima conexão, a manifestação de vontade e a forma não podem ser confundidas, pois a forma deve ser entendida “simplesmente como o revestimento externo da manifestação volitiva. Tal manifestação, por sua vez, inicia-se internamente, no plano psicológico, com a reflexão do agente, até se revelar como uma declaração exterior.”

Não se pode confundir, também, a forma como se exterioriza a declaração, que é elemento constitutivo, com a forma legalmente prescrita, que é requisito de validade.

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Assim, é possível que um negócio exista, mas não atenda ao requisito da forma legalmente prescrita, o que poderia torna-lo inválido, embora existente.

3.2 A inexistência do ato ou negócio jurídico

Como se verificou, elementos constitutivos dão existência aos negócios jurídicos.

Assim, todos devem estar presentes para que o ato se realize; do contrário, será considerado inexistente.

Ocorre que, como o ordenamento jurídico não estabeleceu os pressupostos existenciais do negócio jurídico, tratando diretamente da validade, o estudo da inexistência do negócio jurídico ficou a cargo da doutrina, o que dá margem a muitas divergências.

Nascida do raciocínio de Zacchariae, a propósito da ineficácia do casamento devido à falta de consentimento, a teoria do ato inexistente é, por alguns, aceita, mas, por muitos, criticada. (PEREIRA; 2009).

É verdade que esta teoria da inexistência, que também ingressou no campo dos negócios jurídicos, foi concebida, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 471), “para contornar, em matéria de casamento, o princípio de que não há nulidade sem texto legal”, porque “as hipóteses de identidade de sexo, falta de celebração e de ausência de consentimento não estão catalogadas expressamente nos casos de nulidade”.

Embora muitos critiquem a expressão ato ou negócio inexistente, julgando-a absurda ou ambígua, alegando que seria impossível reputar inexistente algo que foi praticado, Orlando Gomes (2010) explica que a verdadeira intenção da locução é demonstrar que o ato, embora praticado, não existe para o mundo jurídico:

A denominação é ambígua. Objeta-se com a impossibilidade lógica afirmando-se que, se ato foi praticado, existe. Mas o que se quer exprimir com tal locução é que, embora existente porque realizado, o ato não possui substantividade jurídica. O que se quer dizer é, em suma, que não se formou para o Direito. (GOMES; 2010, p. 364). (Grifou-se).

Diferenciando ato inexistente de ato anulável, Caio Mário (2009, p. 553) propõe que “o ato inexistente não passa de mera aparência de ato, insuscetível de quaisquer efeitos, plenamente afastável com a demonstração de sua não realização”.

A par dessas considerações, surge a dúvida: partindo-se de tais premissas, qual seria o devido procedimento diante de um negócio jurídico evidentemente inexistente? Haveria a necessidade de um pronunciamento judicial no sentido de declarar sua inexistência?

A doutrina também diverge quanto a esse aspecto.

No entendimento de Cezar Fiuza (2011, p. 673), não haveria necessidade de manifestação judicial, pois, do contrário, o ato não seria inexistente, mas, sim, defeituoso.

Por outro lado, Taisa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2011, p. 674) defendem “que há necessidade de pronunciamento judicial para declarar a inexistência do ato jurídico, destruindo, assim, a mera aparência de juridicidade. Tal medida garantirá a proteção dos terceiros de boa-fé e, sobretudo, do incapaz”.

Nas lições de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 471), seria justificável a propositura da ação para discutir e declarar a inexistência do ato, sendo que, a seu ver, os efeitos práticos de tal declaração teria as mesmas consequências da declaração de nulidade.

Nesse sentido é o magistério de Orlando Gomes (2010, p. 365-366) ao defender que essa “aparência de ato” (o ato inexistente) precisa ser desfeita, através de pronunciamento judicial, equivalendo, sob o aspecto prático, o negócio inexistente ao negócio nulo.

Por fim, Caio Mário (2009, p. 554-555) não discorda que seja necessário um pronunciamento judicial para apontar a inexistência do ato, mas, não crê que isso induza à equivalência entre a nulidade e a inexistência, havendo, na prática, diferença entre os efeitos. Em suas palavras:

No campo do direito de família, que foi onde nasceu a figura do ato inexistente, é mais flagrante a diferenciação. Será nulo o matrimônio celebrado por juiz incompetente, nulidade que fica, entretanto, sanada pelo decurso de dois anos. Se os nubentes fizeram uma farsa de casamento, perante pessoa que é incompetente ex ratione materiae (por exemplo, o presidente de uma sociedade anônima ou um delegado de polícia), nem há casamento que possa produzir qualquer efeito, nem o decurso de dois anos pode convalidá-lo, transformando uma pantomima em ato gerador de consequências jurídicas. (PEREIRA; 2009, p. 555).

 

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Sobre o autor
Aluisio Santos de Oliveira

Advogado, Professor de Direito Civil II (Atos, Fatos e Negócios Jurídicos). Pós-graduado em Direito Privado pela Universidade Gama Filho (2008). Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (Fachi).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Aluisio Santos. Fato jurídico: plano da existência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3336, 19 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22426. Acesso em: 19 abr. 2024.

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