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Fato jurídico: plano da existência

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19/08/2012 às 17:44
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4 Algumas questões envolvendo o Plano da Existência

4.1 Casamento inexistente

O estudo do casamento inexistente teve seu início com Zacharie, partindo-se de uma discussão do Código Civil Francês de 1804, que, em seu artigo, 146, estabelece que a ausência absoluta de consentimento obsta à formação do casamento, e que, “por isso, passou-se a defender que, nessa hipótese, deveria ser proclamada a inexistência e não a nulidade do casamento. Adotou-se o princípio de que não há nulidade sem texto legal (pas de nullité sans texte). (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR; 2010, p. 151).

Diante de referido princípio, como não há previsão normativa para o casamento inexistente, a doutrina desenvolveu a teoria do casamento inexistente.

Neste sentido, a doutrina apresenta três hipóteses de casamento inexistente: a) identidade de sexos; b) ausência de consentimento; c) ausência de celebração.

Tendo em vista que não poderia ser declarado nulo o casamento se a nulidade não estivesse prevista em lei, a teoria do casamento inexistente permite que, naquelas hipóteses, a inexistência do matrimônio seja judicialmente declarada.

a) Identidade de sexos

A primeira hipótese de inexistência de casamento foi, até pouco tempo, verdadeiro óbice para a legitimação de uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Ainda assim, renomada doutrina defendia a possibilidade da realização do casamento civil entre pares homossexuais.

Atualmente, porém, a situação foi alterada, pois, em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que devia haver a equiparação entre as uniões entre pessoas do mesmo sexo e as uniões estáveis, “para todos os efeitos, inclusive, para a conversão em casamento, aplicando-se o artigo 1726 do CC/02” (TARTUCE; 2011, p. 1016).

Em virtude disso, já houve decisão judicial admitindo a conversão de união homoafetiva em casamento.

Neste sentido, há quem sustente que esta hipótese de casamento inexistente “deve desaparecer do sistema civil.” (TARTUCE; 2011, p. 1016).

Por outro lado, a situação não se encontra pacífica, pois, há quem discorde, alegando não haver amparo legal para a conversão da união homossexual em casamento.

É o que aconteceu no Estado de São Paulo, na cidade de São Carlos, no mês de agosto de 2011. O Juiz de Direito desta Comarca proferiu sua sentença negando a conversão da união estável homoafetiva dos requerentes em casamento, alegando que tal não poderia acontecer enquanto não houvesse alteração legislativa, sem com isso, deixar de reconhecer a qualidade de entidade familiar da união e reconhecendo, também, que lhes fossem aplicáveis as regras e efeitos jurídicos da união estável, que fossem compatíveis.

b) Ausência de consentimento

A manifestação de vontade é elemento constitutivo do negócio jurídico. Em sua falta, não há que se falar que o ato se realizou.

Assim, casamento sem manifestação expressa do nubente não existe.

Poderá, também, ser inexistente o casamento celebrado mediante procuração em inobservância ao artigo 1542, §3º, do CC/02, ou seja, estabelecido o mandato, se o casamento for celebrado após o prazo de 90 dias (§3º), será tido por inexistente, devido a perda de eficácia do mandato.

Outra hipótese de ausência de consentimento refere-se ao casamento realizado mediante procuração. Tal hipótese foi ilustrada por Lima e Sá (2011, p. 672).

Ilustram as autoras o caso de uma pessoa que constitui procurador para representá-la no dia de seu casamento, em virtude de uma viagem para o exterior já agendada. Ocorre que, entre a outorga e a celebração do casamento, a pessoa que estabeleceu o mandato sofre um acidente que a leva ao estado de coma profundo.

Perguntam as professoras: poderia o casamento ser realizado, ainda assim? O elemento constitutivo vontade estaria presente? (LIMA; SÁ; 2011, p. 672).

Em virtude do estado de incapacidade absoluta em que se encontra, conforme o artigo 3º, III do CC/02, a resposta é não.

Ainda que o representante legal do absolutamente incapaz possa praticar atos para proteger o próprio incapaz e ao seu patrimônio, não lhe seria possível “praticar atos de natureza personalíssima como o reconhecimento de filiação, a adoção e casamento. (LIMA; SÁ; 2011, p. 672).

Caso o casamento seja celebrado, ainda assim, deverá ser declarado inexistente, pois não se realiza mediante a vontade do nubente, mas, sim, pela vontade “de quem já não tem o poder especial de representação” faltando o requisito do consentimento para a realização do casamento, pois, neste momento, o nubente não teria condições de elaborar ou de expressar sua vontade. (LIMA; SÁ; 2011, p. 673).

Mais duas hipóteses de casamento inexistente podem ser apresentadas.

Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça declarou inexistente um “casamento” realizado mediante fraude no Estado do Rio Grande do Sul. A vítima, uma mineira, surpreendeu-se ao dar entrada dos documentos para contrair matrimônio e descobrir que havia se casado no Rio Grande do Sul com um homem que jamais conhecera. Provado o golpe, falsificação da assinatura da vítima, o TJMG declarou a inexistência do matrimônio. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR; 2010, p. 152-153). (MINAS GERAIS, TJMG - Proc. Nº 1.0000.00.150701-1/000(1) – Rel. Carreira Machado – Data da publicação: 04/04/00).

Outra declaração de inexistência se deu no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que se reconheceu a ausência de vontade, considerando que “o nubente se apresentava em situação de debilidade emocional quando da celebração do casamento” (TARTUCE; 2011, p. 1016-1017). (TJRJ, Acórdão 4091/1995, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Ligiero, j. 24.09.1996).

c) Ausência de celebração

O casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria é considerado inexistente.

Assim, não seria casamento se fosse realizado por Juiz de Direito, Promotor, Delegado ou um cidadão qualquer.

Para que exista, o casamento deve ser celebrado conforme previsão legal.

No entanto, em defesa da boa-fé, é possível subsistir um casamento celebrado por pessoa que não tenha a competência exigida em lei, mas que exerça publicamente as funções de juiz de casamento e, nessa qualidade, tiver registrado o ato no Registro Civil, conforme asseveram Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2010, p. 153).

Segundo Flávio Tartuce (2011, p. 1217), tem-se reconhecido na jurisprudência que a inexistência do casamento pode ser conhecida de ofício pelo juiz, como nas hipóteses de casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria (TJMG, Acórdão 1.0223.99.031856-8/001, Divinópolis, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula, j. 14.06.2006, DJMG 11.07.2006).


5 CONCLUSÃO

A constatação da relevância e da repercussão de determinado fato e sua posterior entrada no mundo jurídico, definidas como nomogênese e juridicização, respectivamente, representam um dos mais importantes temas de estudo na área do direito.

A discussão do fato qualificado como jurídico não é de imediata compreensão e, tampouco, apresenta uma única concepção; ao contrário, várias são as concepções e interpretações do fenômeno jurídico; a exemplo do negócio jurídico, que, além das correntes voluntaritas e objetivas, pode ser definido a partir de sua estrutura ou composição.

Neste trabalho, analisou-se o fato jurídico sob o plano da existência, sem a pretensão de esgotar o tema. Para tanto, inicialmente, partiu-se da sua categoria mais ampla, o fato jurídico lato sensu, abrangendo suas espécies, até chegar ao negócio jurídico, a respeito do qual se verifica maior atenção doutrinária.

Em seguida, foram analisados os elementos que constituem o negócio jurídico e discutida a questão da sua inexistência, tema que, mais uma vez, divide opiniões doutrinárias.

Verificou-se que, apesar de não haver previsão legal, o problema da inexistência do negócio jurídico não deixa de ser debatido pela doutrina.

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Constatou-se, por fim, que, a despeito de consideráveis opiniões da doutrina brasileira, nos casos de “aparência de fato” ou de negócio inexistente, é necessária uma declaração judicial a fim de proteger a boa-fé dos envolvidos ou de terceiros, desfazendo a aparência de juridicidade do ato.

Reconhece-se que, devido à importância e à extensão do tema, muitos assuntos não puderam ser devidamente abordados, mas, espera-se ter lançado luzes em direção ao estudo da existência do fato jurídico, tema imprescindível em qualquer ramo do direito.


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ABSTRACT: The present article presents an analysis from the existence plane of the juridical fact lato sensu. In this analysis will be developed the concepts of  the sorts of juridical facts, with emphasis in the juridical act and in his constitutive elements to, at last, to reflect about the inexistent acts’s theory and reflect about some questions that involve the existence plane.

Key words: Juridical fact, existence plane, juridical inexistent acts.

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Sobre o autor
Aluisio Santos de Oliveira

Advogado, Professor de Direito Civil II (Atos, Fatos e Negócios Jurídicos). Pós-graduado em Direito Privado pela Universidade Gama Filho (2008). Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (Fachi).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Aluisio Santos. Fato jurídico: plano da existência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3336, 19 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22426. Acesso em: 24 abr. 2024.

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