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A (não) configuração do crime de estelionato diante da fraude ou torpeza bilateral

19/08/2012 às 18:01
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Má-fé recíproca exclui tipicidade no delito de estelionato?

Bem se sabe que os estelionatários além de astutos são, acima de tudo, grandes sedutores. Com boa aparência e exímio vocabulário, utilizam-se de argumentos capazes de convencer pessoas das mais diversas idades, níveis de escolaridade e grupos sociais. Porém não agem sozinhos. Para que se configure o crime de estelionato, deve haver a entrega espontânea da vantagem pela vítima. Se assim não fosse, estar-se-ia diante de outros crimes, como de roubo ou extorsão.

Nota-se, dessa forma, que há a participação ativa da vítima para a configuração do crime. No entanto, salienta-se que, muitas vezes, o fim pretendido pela vítima é ilícito, imoral, e é aí que se encontra o ponto inicial do problema em estudo. Diante desse fato, no caso de a vítima também agir com má-fé, tanto visando um fim ilícito, quanto querendo enganar o próprio estelionatário, observa Greco (2008), que há controvérsia doutrinária acerca da punição do agente (estelionatário). A primeira corrente afirma que persiste o crime, não importando a má-fé da vítima. Já a segunda, sustenta não haver a configuração do delito. Essa última posição tem como principal defensor o eminente penalista brasileiro Nélson Hungria.

Assim, esse trabalho tem por fim apresentar a solução a essa questão, qual seja: quando a vítima e o estelionatário tentam locupletar-se um à custa do outro, ou seja, quando há a chamada má-fé recíproca, há a exclusão da tipicidade do delito de estelionato? Para responder tal questionamento, serão analisadas as visões de diversos estudiosos, clássicos e contemporâneos, na área de Direito Penal e, ao final, manifestada qual delas entende-se a mais adequada.

Porém antes dessa análise, é preciso explicar o que é a chamada fraude ou torpeza bilateral e quais seus efeitos diante do crime de estelionato. Superado esses temas, será explanado acerca das duas posições. Ensina Noronha (1998), há muito tempo essa controvérsia é objeto de discussão entre os doutrinadores e encontra julgados que ora se posicionam contra, ora a favor.  Importante frisar que embora essa discussão tenha se originado há muitos anos é, até os dias de hoje, assunto bastante difundido e controverso entre os juristas, encontrando-se adeptos em ambas as posições.


1.1 FRAUDE BILATERAL /TORPEZA BILATERAL

Primeiramente, é mister salientar que embora muitos doutrinadores – e até mesmo a jurisprudência – referem-se aos termos torpeza e fraude bilateral como sinônimos, há quem defenda que estas expressões compreendem significados distintos.

Conforme o entendimento de Jesus (2010), há torpeza bilateral quando a suposta vítima age pretendendo um fim ilícito. Pode-se citar como exemplo o “conto da guitarra”, trazido pelo penalista Hungria (1967, p. 192), onde “o simulado falsário capta o dinheiro de outrem, a pretexto de futura entrega de cédulas falsas ou em troca de máquina para fabricá-las, vindo a verificar-se que aquelas não existem ou esta não passa de um truque”. Já na fraude bilateral, conforme, ainda, a visão de Jesus (2010), há um “engano recíproco”, ou seja, um agente pretende enganar o outro. Novamente, citando-se um exemplo apresentado por Hungria (1967, p. 192), tem-se o “conto do vigário”, onde “o vigarista consegue trocar por bom dinheiro o paco que o otário julga conter uma fortuna, de que se vai locupletar à custa da ingenuidade daquele”.

Diante disso, quando há fraude bilateral, bem como quando há torpeza bilateral, a questão que se insurge é se há ou não o dever do Estado apenar o estelionatário, aquele que efetivamente obteve a vantagem, e se a outra parte envolvida, embora se rotule como vítima, se tivesse conseguido tirar algum proveito, seria apenada juntamente com o estelionatário.

Segundo Capez (2007), para resolver esse questionamento surgem duas correntes doutrinárias: a primeira afirma que não há crime, pelos seguintes argumentos: a) somente pode ser resguardado o patrimônio utilizado para um fim legítimo, que respeita sua função econômico-social; b) conforme o disposto no artigo 883, caput, do Código Civil, só há estelionato quando a vítima é enganada em sua boa-fé, uma vez que “Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei”;

Já para a segunda corrente (posição majoritária), subsiste o crime de estelionato pelas seguintes razões: a) o autor apresenta maior temibilidade; b) não há compensação de condutas no Direito Penal, assim, se a vítima eventualmente cometer algum crime, deverá ser punida; c) a boa-fé não constitui elemento subjetivo do tipo; d) o dolo do agente independe da intenção da vítima, não podendo ser eliminado.

A seguir, serão analisadas as duas teorias separadamente e apresentado os argumentos utilizados por ambas para verificar se há ou não a configuração do crime de estelionato diante da fraude/torpeza recíproca.


1.2 A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE ESTELIONATO DIANTE DA FRAUDE OU TORPEZA BILATERAL

A grande maioria dos estudiosos do Direito Penal afirma que o delito de estelionato subsiste “ainda que a vítima não se tenha havido com grande lisura” (NORONHA, 1998b, p. 371). Asseguram que havendo redução do patrimônio da vítima, ou seja, havendo um prejuízo alheio, o Estado não pode deixar de apenar o agente. Nesse título serão apresentados os argumentos utilizados pelos doutrinadores e pela jurisprudência para defender essa corrente.

Para Prado (2002) a proteção da propriedade antes de ser tutelada pelo Direito privado, é uma garantia protegida pela Constituição Federal. Afirma que, preliminarmente, é mais importante verificar se houve afronta ao bem tutelado, ou seja, se houve a existência de uma lesão ao patrimônio, do que a identificação do ofendido. Assim, como o fato ilícito desejado pela vítima não passou de pura intenção, a qual não chegou a se concretizar, há tão-somente conduta imoral. Adita Noronha (1998b) que essa intenção da vítima nunca passará do projeto, visto a impossibilidade material de sua realização diante do erro, resultado da fraude do agente.

Para Noronha (1998b), adepto a segunda posição e um dos estudiosos clássicos que mais discorre sobre o assunto, a controvérsia que rodeia essa situação fática é compreensível ante o crédito que a ética e a moral possuem perante o Direito. No entanto, sustenta que subsiste o crime ainda que a vítima tenha agido com má-fé. Garante que os que defendem a exclusão do crime fazem apreciação unilateral. Preocupam-se mais com o comportamento da vítima do que o do próprio estelionatário. Aduz que a má-fé do estelionatário revela temibilidade acentuada, uma vez que mesmo conhecendo a ilicitude do ato, dela tira proveito.

Estefam (2010b) acrescenta que o agente, consciente que a vítima visa um fim ilícito, aproveita-se dessa situação para aplicar-lhe o golpe, já antevendo que o ofendido não procurará a autoridade policial para comunicar o fato, visto o caráter ilícito de sua intenção.

Por outro lado, afirma Noronha (1998b) que diante do bem jurídico tutelado e, mormente, tendo em vista ser a vítima titular desse bem, não há como negar que essa teve seu patrimônio lesado, diminuído. Ademais, esclarece ainda o ilustre autor que somente a intenção da vítima não é capaz de configurar qualquer tipo de crime. Por outro lado, se essa exteriorizar a sua intenção em atos e chegar a cometer um delito, deverá ser punida pelo crime que cometeu, visto que “um crime não justifica ou dirime outro”, ou seja, não há compensação de condutas no Direito Penal. A conduta da vítima somente poderia influir se “destruísse ou anulasse um dos elementos constitutivos do estelionato”. (NORONHA, 1998b, p. 386).

Outro argumento trazido pelo eminente penalista Noronha (1998b) para comprovar que o fato ilícito praticado pela vítima não afasta a configuração do delito, é exemplificado com a prática do crime de induzimento à especulação, estabelecido pelo artigo 174 do Código Penal, que assim aduz: “Abusar, em proveito próprio ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade mental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa”. No delito apresentado, ainda que o agente tenha induzido a vítima à prática do jogo vedado pela lei, ressalta-se que esta não se livrará da penalização pela prática da contravenção penal prevista no artigo 58, parágrafo único, do Decreto-Lei n. 3.688, de 03 de outubro de 1941 – Lei das Contravenções Penais. Conclui afirmando: “se a lei penal admite crime, quando o sujeito passivo comete também delito ou contravenção, não há razão para se excluir o estelionato, por ocorrer má-fé do iludido”.

A maciça jurisprudência também se posiciona a favor dessa corrente. Como exemplo cita-se um caso julgado pelo Egrégio Tribunal Catarinense conhecido como o “conto da guitarra”, no qual os agentes apresentaram à vítima uma máquina que, supostamente, fabricaria dinheiro e esta, no anseio de obter lucro fácil, acabou entregando quantia considerável aos golpistas. A defesa alegou que não houve conduta típica, diante da torpeza das vítimas, argumento não aceito por aquela corte. Cita-se um trecho da decisão:

Ao contrário da tese aventada, a má-fé das vítimas, estampada na tentativa de obter vantagem por meio de um negócio ilícito, envolvendo moeda falsa, não afasta a ocorrência do crime do art. 171, caput, do Código Penal, até porque aquelas foram enganadas pelo acusado, que se beneficiou, e sofreram prejuízo patrimonial. Ademais, a boa-fé daquele que é enganado não constitui elemento do tipo.

Acrescenta Noronha (1998b), citando o mesmo golpe, que a vítima aceitando a oferta do agente e sabendo trata-se de ato ilícito, em momento algum tenta enganar o agente, ao passo que o agente, mesmo sabendo da ilicitude do ato, dela tira proveito. Ainda, afirma que ao deixar de penalizar o estelionatário asseverando que a vítima igualmente incutiu-se de má-fé, está-se penalizando o próprio fraudado, aquele que efetivamente sofreu prejuízo patrimonial. Nesse sentido, obtêm-se do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (2008): “A identificação da chamada torpeza bilateral não elide o estelionato, pois o entendimento contrário, na verdade, teria o condão de premiar o estelionatário e punir, exclusivamente, sua vítima”. Ademais, o fim ilícito da vítima não passa de mera intenção, uma conduta imoral, o que não interessa ao Direito Penal.

Afirma Manzini (apud HUNGRIA, 1967, p. 196) que o Direito Penal preocupa-se em reprimir os fatos delituosos pela criminosidade que o agente demonstra quando do cometimento da conduta e não leva em conta as qualidades morais do sujeito passivo. Dessa forma, independentemente da moralidade da vítima, não se exclui a criminosidade do agente, persistindo as razões que motivaram a intervenção da lei penal. Finaliza afirmando que havendo ou não lesão a direito subjetivo privado, o que autoriza o sujeito passivo a buscar o ressarcimento do dano sofrido por meio de ação civil, esse fato é insignificante para o Direito Penal, apenas merecendo a sua tutela jurisdicional o fato que viole a lei penal.

Leciona Noronha (1998b) que um dos argumentos mais contundentes dos que contestam a subsistência do delito de estelionato é a impossibilidade da reparação do dano na esfera civil, conforme redação dos artigos 166, inciso II e 883 do Código Civil. Manifesta sua objeção, afirmando que no primeiro caso, que considera nulo o negócio jurídico que possua objeto for ilícito ou impossível, independente disso, se houver o dano patrimonial o delito deve persistir. Já o segundo dispositivo, que impede a repetição a quem deu algo para obter um fim ilícito, imoral ou proibido pela lei, não pode ter o efeito de afastar a configuração do crime. No mesmo sentido, manifesta-se Basileu Garcia (apud NORONHA, 1998b, p. 386-387), que assevera:

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À objeção de que não havendo, em face do Direito Civil, reparação, não há crime, poder-se-á, invertendo a ordem das proposições, contrapor esta: havendo delito, segundo o Direito Criminal, cabe a reparação, visto que dispõe o Código Penal ser conseqüência obrigatória da condenação a reparação do dano.

Ainda, corroborando as afirmações, Noronha (1998b, p. 387) assegura que, além da reparação do dano não ser elemento do delito, o Direito Penal não visa, exclusivamente, proteger interesses particulares. Por isso, não é aceitável a afirmação de que a lei penal não pode proteger o desonesto, visto que “não é a moralidade do sujeito passivo que dita o fim do direito penal, mas são os interesses sociais, é a harmonia social que o impede e lhe traça os rumos”.

Outro fator a ser considerado é o tipo da ação penal. Bem se sabe que a ação penal para o crime de estelionato é pública incondicionada, dessa forma, defende Noronha (1998b) que havendo violação da ordem jurídica, a ação será processada, mesmo que o sujeito passivo a ela se oponha. Salienta que, ainda que a vítima possa dispor de seu patrimônio, esta não tem mais influência após a violação da ordem jurídica por crime de ação pública. Por esse motivo, não se pode subordinar a existência de um crime de ação pública, ao direito de reparação civil que a vítima faça jus. Assim, não se pode confundir o interesse privado com o público. Se a reparação do dano não for possível, não poderá se banir o interesse público deixando de apurar a prática delituosa.

Tolomei (apud HUNGRIA, 1967, p. 199) igualmente critica os argumentos apresentados por aqueles que defendem a inexistência do crime de estelionato diante da torpeza bilateral, afirmando que, se por um lado, quando a vítima aceita a proposta ilícita, não há crime, há um desconchavo ao admitir a tentativa do crime se a vítima não aceitar a proposta, ou seja, quando o agente logra êxito não há crime, ao passo que quando fica apenas in itinere, não alcançando seu propósito, comete crime tentado.

Já Puglia (apud HUNGRIA, 1967, p. 194) afirma que independentemente do fim almejado pelo enganado, estando presentes os elementos que definem o crime do artigo 171 do Código Penal, haverá indiscutivelmente a existência do crime de estelionato.

Por fim, o argumento mais decisivo para os que defendem a subsistência do estelionato diante da torpeza recíproca, conforme entendimento de Noronha (1998b) é a inexistência do requisito “boa-fé” no texto que define o tipo penal de estelionato. Segundo Nucci (2010, p. 810), a torpeza bilateral não afasta, em tese, o delito justamente porque “o tipo penal não exige que a vítima tenha boas intenções”. No mesmo sentido encontram-se vários julgados, dos quais cita-se jurisprudência colhida do insigne Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (2007):

TORPEZA BILATERAL. DESCARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA TIPIFICADA NO ART. 171 DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. A boa-fé da vítima não é elemento previsto no tipo do art. 171 do Código Penal, devendo ser sancionada a conduta de quem concebe a fraude. […]

A propósito, Noronha (1998b) assevera que a tipificação do delito de estelionato vem sofrendo evolução a cada código penal editado. Analisando as lei penais anteriores verifica-se que o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1890 afastou a amplitude da tipificação adotada pelo antecessor (Código Criminal do Império do Brasil de 1830), e assim passou a definir o delito de estelionato “Usar de artificios para surpehender a boa fé de outrem […]”. Ocorre que, a exemplo de outros Códigos como o italiano, o uruguaio, o chinês, o polonês, o dinamarquês e o suíço, o atual Código Penal não tem a “boa-fé” como requisito do delito de estelionato. Assim, segundo Noronha (1998b), suprimindo a expressão “boa-fé” do texto legal, os legisladores na formação desses estatutos adotaram a doutrina que admite a configuração do crime, ainda que a vítima tenha agido com má-fé, visto que a finalidade do Direito Penal é proteger os interesses da sociedade. Finaliza aduzindo que “o fim ilícito do sujeito passivo não torna lícito o do agente”. (NORONHA, 1998, p. 388). 


1.3 A NÃO CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE ESTELIONATO DIANTE DA FRAUDE OU TORPEZA BILATERAL

Exposto os argumentos defendidos pela primeira corrente, passa-se a apresentar os da segunda, a qual possui número de adeptos bem inferior, porém, ganhou arrimo de vários estudiosos influentes do Direito Penal, como Carrara, Escoberto, Manci, Pessina, Binding, Galdino Siqueira, Nélson Hungria e, atualmente, Rogério Grecco.

Assim, em sentido inverso ao apresentado anteriormente, Hungria (1967, p. 191) inicia a defesa de sua tese com a seguinte colocação: sendo o Direito Penal simplesmente receptício do Direito Civil, “onde falha a sanção civil, há de, necessariamente, falhar a sanção penal”. Desta maneira, se a lei civil denega proteção ao patrimônio, não pode intervir a lei penal, sob pena de se estar diante de um conflito de normas dentro do conjunto harmônico que é o ordenamento jurídico. Cita alguns exemplos em que acredita não merecer tutela do Direito Penal:

[…] um indivíduo, inculcando-se assassino profissional, ardilosamente obtém de outro certa quantia para matar um seu inimigo, sem que jamais tivesse o propósito de executar o crime; […]a simulado falsário capta o dinheiro de outrem, a pretexto de futura entrega de cédulas falsas ou em troca de máquina para fabricá-las, vindo a verificar-se que aquelas não existem ou esta não passa de um truque (conto da guitarra); o vigarista consegue trocar por bom dinheiro o paco que o otário julga conter uma fortuna, de que se vai locupletar à custa da ingenuidade daquele.

Nesse passo, Greco (2008, p. 259), afirma que existe um brocardo civilista que declara: “nemo auditur propriam turpitudinem allegans” ou seja, “ninguém é ouvido, alegando a própria torpeza”. Dessa forma, se o próprio Direito Civil não protege a vítima que age incutido com torpeza, conforme o disposto no artigo 883 do Código Civil, o Direito Penal seguindo a mesma linha, não pode o fazer. Para reforçar seu entendimento, cita as lições de Hungria (1967, p. 192-193):

[…] o patrimônio individual cuja lesão fraudulenta constitui o estelionato é o juridicamente protegido, e somente goza da proteção do direito o patrimônio que serve a um fim legítimo, dentro de sua função econômico-social. Desde o momento que ele é aplicado a um fim ilícito ou imoral, a lei, que é a expressão do direito como mínimo ético indispensável ao convívio social, retira-lhe o arrimo, pois, de outro modo, estaria faltando a sua própria finalidade.

Com efeito, encontram-se julgados que se posicionam a favor da exclusão do delito de estelionato diante da torpeza bilateral. Utilizando os ensinamentos desse eminente penalista, já decidiu o insigne Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (2009):

ESTELIONATO E FALSA IDENTIDADE (ARTS. 171 E 307, AMBOS DO CP). TORPEZA BILATERAL. ABSOLVIÇÃO. Acusada que, passando-se por inspetora de polícia, negocia “preço” com possíveis candidatos, prometendo-lhes vaga nos quadros da polícia civil sem que eles tenham que se submeter a concurso público.

Ao pagarem o “preço” exigido pela acusada as vítimas sabiam da absoluta ilicitude de suas pretensões, configurando se, assim, a torpeza bilateral, que torna impunível a conduta da acusada. […]

No caso apresentado, a própria Procuradora de Justiça, Dra. Simone B. Ferolla, manifestou-se pela absolvição da acusada e, por consequência, pela exclusão do delito de estelionato, acreditando que “O patrimônio das vítimas, bem juridicamente tutelado no crime de estelionato, foi dirigido à conduta ilícita, tendo todas as vítimas consciência dessa ilicitude. Não podem agora pretender qualquer proteção do direito porque não obtiveram o resultado ilícito pretendido”. As razões da douta Procuradora de Justiça foram aceitas pela 5ª Câmara Criminal que acrescentou:

Ora, se a acusada pretendia de fato cumprir sua promessa, e o modo como o faria, isso é indiferente, pois é notório que cargos públicos efetivos só são acessíveis por concurso público. Ao pagarem o “preço” exigido pela acusada as vítimas sabiam da absoluta ilicitude de suas pretensões. (Tribunal de Justiça de Rio de Janeiro, 2009)

Segundo Binding (apud HUNGRIA, 1967, p. 193), a configuração do delito de estelionato, pressupõe-se, indispensavelmente, uma lesão patrimonial alheia. No entanto, não pode ser aceitável a persistência do delito quando o enganado, induzido pelo agente, emprega seu patrimônio convicto de que receberá uma contraprestação que se revela em um ato imoral ou ilícito. Acrescenta Hungria (1967, p. 193) que “se o dominus faz incidir in re illicita o seu patrimônio, deixa este de ser um bem ou interesse juridicamente tutelado.

Sensatas são as palavras de Pessina (apud HUNGRIA, 1967, p. 193), o qual pondera: “o enganado não teria caído o embuste se houvesse obedecido à lei, ao Estado, às normas do justo e do honesto”. Ainda, afirma que a obediências às leis que impõem o Estado serve como proteção contra as armadilhas do enganador. Dessa forma, aduz “com que direito pretende invocar a proteção do Estado aquele que estava transgredindo seus mais santos ditames!”. Conclui Hungria (1967) que se o patrimônio encontrava-se empenhado em uma ilicitude ou imoralidade, não há que se falar em violação da ordem jurídica. Assim, se o próprio Direito Civil, mais rígido que o Direito Penal no que se refere à exigência do mínimo ético nas relações sociais, nega a reparação do dano, não pode ser aceitável que se considere tal situação como penalmente relevante.

A respeito, conforme Hungria (1967), preceituava o artigo 971 do Código Civil de 1916, que corresponde ao artigo 883 do vigente diploma legal: “não terá direito à reparação [repetição] aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei”. Dessa maneira, se perante a lei civil o dano causado pela imoralidade ou ilicitude recíproca é um “nada jurídico”, não pode a lei penal incriminar o agente, visto que isso poderia resultar em contraste no reconhecimento do dano patrimonial. Aduz, ainda, que “redunda num absurdo o exigir que a justiça penal tome as dores de que tencionava que outrem praticasse coisa torpe ou criminosa e castigue aquele que deixou de cometer o crime ou a torpeza”. (HUNGRIA, 1967, p. 194).

Acerca do fim ilícito visado pelo sujeito, assim defende Monteiro (apud GRECCO, 2008, p. 260):

Se alguém dá alguma coisa para alcançar objetivo imoral ou ilícito (um crime, por exemplo), jamais terá direito à repetição. A imoralidade do seu objetivo, a torpeza de sua finalidade e o desonesto de sua atitude privam-no de todo auxílio jurídico. O direito não transige com a indignidade; ao contrário, põe-se sempre de acordo com os fins éticos, que inspiram e animam a ordem jurídica. E por isso a baixeza revelada pelo solvens priva-o da tutela legal.

Considerando a afirmação acima citada, sustenta Grecco (2008) que não interessa ao Direito Civil proteger quem atua de forma torpe. Assim, conclui que se a própria lei civil não presta tutela a esses casos, como aceitar que o Direito Penal o faça? Entende o ilustre autor que não é possível a punição do sujeito do crime de estelionato, a exemplo do entendimento de Hungria, pois tal atitude resultaria em absurdo jurídico.

Além do mais, sustenta Hungria (1967, p. 195) que a “tese que não exclui a punibilidade do fraudator no caso da par turpitudo é subversiva da moral jurídica”. Defendendo esse posicionamento, não seria surpresa ver um juiz decidindo a controvérsia de ladrões acerca da partilha dos frutos da rapinagem. Ademais, adverte o citado autor: “ou a justiça penal se alheia aos casos de torpeza bilateral, ou terá de transigir com o seu indeclinável odium à imoralidade e ao crime”.

Escobedo (apud HUNGRIA, 1967, p. 195) igualmente posiciona-se a favor da exclusão do crime de estelionato, sustentando: “não pode subsistir um crime contra a propriedade sem violação de um direito patrimonial, e este inexiste quando a parte lesada não pode pretender direito ao ressarcimento do dano sofrido ou à restituição da coisa que lhe foi captada”. A respeito dessa afirmação, conclui Hungria (1967) que o dano patrimonial resultado do crime de estelionato deve ser além de material, também antijurídico. Por conseguinte, se o dano patrimonial não for ressarcível, deixa de ser antijurídico.

Ainda, em oposição ao argumento apresentado por Manzini, Hungria (1967) garante que o Direito Penal não pune um fato somente com base na criminosidade que ostenta seu autor. Explica que não é só a periculosidade social do agente suficiente para que exista um crime, mas sim deve necessariamente haver a lesão ou, ao menos, um perigo de lesão a um bem ou interesse jurídico tutelado pela lei penal.

Conclui Hungria (1967, p. 197), defendendo o ponto de vista de Manci, que se o indivíduo empenha seu dinheiro em negócio que sabe ilícito, tem ciência que está correndo risco e que pode perdê-lo, visto que tem conhecimento que não pode buscar a restituição. Prevendo a eventual perda, ainda assim, despende-se de seu bem e com isso, consente no seu advento. Finaliza asseverando que “aquele que assume o risco do próprio dano, não tem direito à reparação, se o dano vem a ocorrer”.

Com relação à ausência do requisito “boa-fé” no texto do artigo 171 do Código Penal, Hungria (1967) contesta categoricamente a posição defendida por Noronha. Segundo o respeitável doutrinador, há duas inexatidões nessa opinião. Primeiro, é equivocado assegurar que atual figura penal do estelionato excluiu a boa-fé da vítima como sua característica, visto que como exige o “induzimento de alguém em erro”, é irrefutável que para isso o agente deve iludir a boa-fé da vítima. Observa que a razão da supressão do vocábulo “boa-fé” do texto do tipo penal, tem somente uma explicação: “tal menção seria rematadamente ociosa ou supercânea” (HUNGRIA, 1967, p. 198). Em segundo lugar, segue o célebre penalista, que em momento algum defendeu que a má-fé da vítima é o que exclui o crime de estelionato, visto que:

A má-fé, no sentido de malícia, ou consciência de ilicitude, existe quanto ao fim que a vítima se propõe, mas, quanto à entrega patrimonial, na esperança de conseguir o fim ilícito, a vítima age em boa-fé, isto é, acreditando ou confiando, sinceramente, que o agente não faltará com a ajustada contraprestação. De outro modo, é claro, não assentiria em desfalcar o seu patrimônio. Se o agente procede, ab initio, para obter something for nothing, a vítima está persuadida de que vai operar o sinalagma do do ut des. (HUNGRIA, 1967, p. 198-199, grifo do autor)

Ademais, Hungria foi o autor do anteprojeto do Código Penal de 1940. Assim se a supressão da “boa-fé” fosse um empecilho para a exclusão do crime de estelionato, tal penalista não poderia mais sustentar seu entendimento com a vigência do novo estatuto repressor.

Salienta Greco (2008), ainda, que não é em todos os casos em que a vítima tenta “levar vantagem” que pode ser considerada a hipótese de torpeza bilateral. Assim, no “golpe do bilhete premiado”, o comportamento da vítima, a seu ver, não afasta a proteção do direito penal, visto que não há qualquer comportamento ilícito. Ao contrário, citando-se o exemplo trazido pelo mesmo autor, no caso de a vítima pagar por uma remessa de entorpecentes que nunca chegou, haveria a torpeza bilateral e, por conseguinte, não poderia o suposto vendedor das substâncias ser julgado pelo delito de estelionato. Dessa forma, defende que somente quando há violação do ordenamento jurídico-penal, há a configuração da torpeza bilateral.

Escobedo (apud HUNGRIA, 1967, p. 199) repudia a tese de Tolomei apresentada no título anterior, sustentando que a tentativa do crime de estelionato deve ser penalizada, não obstante não ter logrado êxito em seu intento, “pois a vítima não aderiu à proposta do agente”. Assim, percebe-se que não houve má-fé na conduta da vítima.

Por fim, cabe ressalvar que sempre quando o dano transcender o patrimônio do lesado, gerando lesão ou perigo de lesão a “legítimo interesse de terceiro”, consoante aduz Hungria (1967), o crime de estelionato de deve persistir. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, há crime de “cheque sem fundos”, ainda que o sujeito tenha emitido em pagamento de dívida de jogo, já que por ser tal título circulável, qualquer pessoa de boa-fé pode descontá-lo, sem saber que se trata de um título de origem ilícita. O mesmo ocorre quando está em perigo o interesse da Administração Pública.

Bem se sabe que o interesse público deve sempre prevalecer diante do direito privado, por esse motivo é que se penaliza tanto o funcionário que recebe o suborno, quanto o agente que solicita seus “préstimos”, no caso dos delitos capitulados nos artigos 317 e 333 do Código Penal. (HUNGRIA, 1967).

Feita essas ressalvas, conclui-se que a posição mais acertada é a defendida pelo penalista Hungria. Como já disse Grecco (2008, p. 242) certa feita, “não podemos analisar os tipos penais isoladamente, como se fossem estrelas perdidas, afastadas de qualquer constelação”. Assim, o artigo 171 do Código Penal deve ser confrontado com o artigo 883, caput, do Código Civil, pois, conforme assevera Hungria (1967, p. 200), “aquele não pode proteger o que este declara indigno de proteção”.

Ressalta-se, por derradeiro, que é pelo fato de a maioria dos doutrinadores não diferenciarem a “fraude bilateral” da “torpeza bilateral”, que se verifica a equivocada visão acerca da torpeza bilateral como excludente da tipicidade do delito de estelionato. Isso pode ser evidenciado pelo exemplo apresentado por Nucci (2010), o qual cita o “conto do bilhete premiado” como hipótese de torpeza bilateral. Ocorre, porém, que no caso apresentado pelo citado autor, há apenas a má-fé recíproca, fato que não exclui a proteção do Direito Penal, visto que a vítima não pretendia um fim ilícito.

Diante dessas duas posições, no entanto, conforme Greco (2010), hoje continua sendo majoritária a que defende a existência do delito de estelionato, pouco importando a má-fé do ofendido, ou se sua finalidade era ilegal, imoral, ou, de modo geral, torpe.


REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Andrelise Hertes

Servidora pública em São Miguel D'Oeste (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HERTES, Andrelise. A (não) configuração do crime de estelionato diante da fraude ou torpeza bilateral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3336, 19 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22442. Acesso em: 22 nov. 2024.

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