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A inconstitucionalidade da vedação do uso de ação rescisória no âmbito dos juizados especiais cíveis

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29/08/2012 às 14:29
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5 A inconstitucionalidade [19] da vedação do uso de ação rescisória nos Juizados Especiais

A coisa julgada, como vimos, visa tornar a decisão judicial imutável quando passada em julgado. A deliberação no que toca à finalização do conflito social com a coisa julgada parte da opção feita pelo legislador em cada ordenamento jurídico, com o desígnio de fazer preponderar a segurança jurídica nas relações sociais face à justiça material, já que, como também foi dito, a coisa julgada não está comprometida – necessariamente – com a verdade ou a justiça das decisões.

Vimos também que em certos casos excepcionais o jurisdicionado pode se valer de meio previsto em lei para superar a coisa julgada, autorizando sua desconstituição.

Entretanto, embora seja excelente remédio previsto para garantir a segurança jurídica aos julgados, nas situações excepcionais que a própria lei assim define (frise-se!), o legislador ordinário, norteado pelo princípio da celeridade na prestação da atividade jurisdicional no âmbito dos Juizados, inviabilizou o manejo da ação rescisória nesse microssistema, conforme se verifica no art. 59 da Lei n 9.099/95, senão vejamos:

Lei nº 9.099, de 21 de setembro de 1995 – Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.

(...)

Considerações finais

(...)

Art. 59. Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei.

Para a sua vedação, o legislador levou em consideração o valor da celeridade em face à segurança jurídica, já que, ao permitir a rescindibilidade da coisa julgada no âmbito dos Juizados Especiais, haveria (pasme!) um expressivo atraso na conclusão da prestação judicial, fugindo do escopo original que levou à instituição desse microssistema.

Muito embora a mens legis possa ter sido a melhor possível, frise-se, contudo, que os princípios que norteiam os Juizados Especiais devem estar em consenso com os princípios constitucionais, sobretudo àqueles referentes ao devido processo legal e acesso à justiça, cujo liame se encontram na plenitude do direito de ação como a garantia constitucional de todos os jurisdicionados se socorrerem ao Poder Judiciário, órgão último no tocante à interpretação do direito, utilizando-se dos meios e recursos inerentes ao seu acesso à justiça.

O dispositivo que veda a utilização da ação rescisória na seara dos Juizados Especiais afronta o direito fundamental à inviolabilidade do direito à segurança do jurisdicionado, valor e postulado imprescindível para a concepção de Estado Democrático de Direito, [20] tornando-a, por afronta a esse postulado e princípio, inconstitucional nesse particular.

Sem embargo, além da violação explícita à segurança, entendemos haver afronta, também, aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia entre os jurisdicionados e do pleno acesso à justiça, na medida em que os Juizados Especiais foram instituídos para privilegiar a classe mais desfavorecida financeiramente, garantindo-lhes uma melhora no acesso a ordem jurídica justa, através do Poder Judiciário, com um microssistema que permitisse resolver os conflitos sociais sem as formalidades de praxe dos processos cíveis comuns e com toque de celeridade na atividade jurisdicional.

Pois bem. Permitir a desconstituição da coisa julgada no processo comum e impedir o seu manejo em sede de Juizado Especial é privilegiar, com a “chancela” de um Estado de se diz Democrático de Direito, a classe mais favorecida financeiramente em detrimento da outra.

Como se deixou claro em linhas anteriores, as hipóteses de cabimento da ação rescisória são excepcionais que, não sendo consideradas, impedirão a eficácia do pleno acesso à justiça aos menos favorecidos.

Permitir a imutabilidade da coisa julgada, exempli gratia, de uma sentença transitada em julgado por prevaricação, concussão ou corrupção do magistrado, tão-somente porque foi proferida em sede de Juizado Especial, é violar flagrantemente a Constituição, afrontando o devido processo legal, o acesso à justiça, a isonomia processual e a dignidade humana.

Em suma, acompanhando lição de José Joaquim Calmon de Passos, dispensar ou restringir qualquer dessas garantias implica não apenas simplificar, deformalizar e agilizar o procedimento privilegiando a efetividade da tutela, mas de favorecer a disparidade e o arbítrio criado pelo próprio Estado em benefício do alívio de juízos e tribunais. Favorece-se o poder, e não os cidadãos; dilata o espaço dos governantes e restringe o dos governados, afigurando a mais escancarada antidemocracia que se possa conceber. [21]


6 Os mecanismos processuais encontrados pela jurisprudência como sucedâneo da ação rescisória nos Juizados Especiais

Segundo verificamos anteriormente, em certos casos excepcionais o sistema jurídico permite a desconstituição da coisa julgada, prevendo mecanismos votados à sua superação, autorizando sua reapreciação que, em regra, tornará a decisão judicial imutável. Discorremos, ainda que de modo sucinto, já que o estudo em referência não visa detalhar o instituto, sobre o remédio da ação rescisória como meio destinado desconstituição da coisa julgada, conferindo segurança jurídica aos jurisdicionados, nos excepcionalíssimos casos que a própria legislação define (art. 485 do CPC).

Embora não seja permitido nos Juizados Especiais o uso da ação rescisória, cumpre observar, porém, que a legislação não proibiu outros mecanismos voltados à revisão da coisa julgada, como a querela nullitatis, a impugnação com base na existência de erro material, a impugnação da sentença inconstitucional e, também, a possibilidade da denúncia por violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, formulada diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos. [22]

Por outro lado, ainda que haja esses meios de revisão da coisa julgada, frise-se que todas elas possuem campo de incidência limitada, diferenciando-se, nesse particular, da ação rescisória, visto que as hipóteses de seu cabimento, embora excepcionais, são mais largas.

A querela nullitatis é o meio de impugnação de decisão com “vício transrescisório”, que subsiste quando a decisão for proferida em face do réu em processo que correu à revelia por ausência de citação, ou por ter a decisão sido proferido em desfavor do réu em processo que correu à revelia por ter sido a citação defeituosa (art. 475-L, I e art. 741, I, ambos do CPC), diferenciando-se da rescisória, além de ser as hipóteses de cabimento mais restritas, por ser imprescritível, já que não se submete ao prazo decadencial de dois anos. [23]

A impugnação com base na existência de erro material consiste na possibilidade de alteração da sentença para correção de erro/equivoco meramente material, ou para retificar erros de cálculo, encontrando guarida no art. 463, I do CPC, pressupondo que a sentença tenha oficialmente sido publicada (logo, tornou-se imodificável, em tese).

A impugnação da sentença inconstitucional consiste no meio usado para ver afastado o título executivo judicial que se fundou em lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou quando fundada em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tido também pelo Tribunal como incompatíveis com a Constituição (art. 475-L, § 1º do CPC).

Por fim, a denúncia da coisa julgada por afronta à Convenção Americana de Direitos Humanos, do qual observam Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, seria o mecanismo “externo” de revisão da coisa julgada, já que realizado por tribunal internacional, cuja jurisdição transcende a pátria, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, admitido em nossa ordem (art. 5º, §§ 2º e 3º da Constituição), visto que o Brasil é signatário da citada Convenção (Pacto de San José da Costa Rica) e se submete ao sistema americano de proteção aos direitos do homem. [24]

Por tendência jurisprudencial, sobremaneira de julgados do Superior Tribunal de Justiça, se entende que o mandado de segurança é meio de impugnação à coisa julgada, em que pese haver entendimento solidificado no Supremo Tribunal Federal (Súmula 268) sobre o impedimento de seu uso após o trânsito em julgado, orientação essa que, aliás, foi convertida em texto legal (art. 5º, III da Lei nº 12.016/09).

O mandado de segurança constitui remédio de ordem constitucional posto a serviço de indivíduo titular de direito líquido e certo, [25] que sofreu lesão ou ameaça de lesão por ato comissivo ou omissivo de autoridade pública, ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Atualmente, está pacífico no Tribunal da Cidadania [26] que cabe aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios o controle externo dos atos dos Juizados Especiais, [27] ainda que a Lei nº 9.099/95 tenha impedido – com inconstitucionalidade! – o uso da ação rescisória.

A melhor orientação que se compatibiliza com a ordem constitucional brasileira é a que se deve admitir a utilização do mandado de segurança frente aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para controle dos Juizados Especiais, “ainda que a decisão a ser anulada já tenha transitado em julgado, sob pena de se inviabilizar ou, ao menos, limitar, esse controle, que nos processos não submetidos ao Juizado Especial se faz possível por intermédio da ação rescisória”, [28] já que é direito fundamental do jurisdicionado utilizar de todos os meios e recursos inerentes à ampla defesa (art. 5º, LV da Constituição).

Há que se referir, por conseguinte, que caso haja proibição da utilização do mandado de segurança como meio de controle dos Juizados Especiais, entendemos que deve ser considerada inconstitucional, na medida em que o citado mecanismo se configura garantia conferida em sede de Constituição, não podendo permitir que sua incidência seja atenuada por lei infraconstitucional (art. 5º, III da Lei nº 12.016/09), de grau inferior, sobretudo se o writ for o único meio capaz de conferir tutela adequada ao jurisdicionado.


7 Considerações finais: proposta de lege ferenda

O acesso à justiça, inicialmente concebido como acesso formal aos tribunais, passou por evolução histórica, tornando-o direito humano e indispensável à própria configuração do Estado, na medida em que não se pode pensar na vida social harmônica, com proibição da justiça privada, sem a existência de viabilidade a todos os jurisdicionados do efetivo acesso a uma ordem jurídica justa, com garantia dos demais direitos.

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Diante de uma sociedade complexa, o processo comum se mostrou ineficiente para a tutela de determinados interesses, encontrando o Estado no Juizado Especial a saída adequada para proporcionar melhora na prestação jurisdicional, sobretudo às pessoas desfavorecidas financeiramente, onde sua instituição reclamou informalidade, simplicidade, economia e celeridade, facilitando, assim, o acesso à justiça a todos os jurisdicionados.

Embora tenha o microssistema dos Juizados Especiais cumprido com os objetivos apregoados pela Constituição, no sentido de garantir a celeridade na prestação jurisdicional, a Lei nº 9.099/95, ao vedar o uso da ação rescisória em seu âmbito, violou e afrontou princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica, a igualdade entre o tratamento dos jurisdicionados, o devido processo legal e a próprio ideia de acesso à justiça, postulados que se tornaram imprescindíveis para a noção de Estado Democrático de Direito.

Sem embargo, permitir a rescindibilidade da coisa julgada em processo comum e impedir a sua desconstituição, através da ação rescisória nos Juizados Especiais, mesmo que em afronta aos princípios constitucionais, privilegia, com a chancela do Estado Democrático, a classe mais abastada financeiramente da sociedade em detrimento da mais pobre, já que, como veremos, os Juizados Especiais foram criados para atender a classe social desprovida de recursos, facilitando seu acesso à justiça, com consecução de seus direitos.

Como se abordou anteriormente, as hipóteses de cabimento da ação rescisória são excepcionalíssimas e sequer haveria problema na celeridade da prestação jurisdicional. Por outro lado, impedir a rescisão da coisa julgada nos Juizados Especiais, tornando intangível uma decisão mesmo diante de circunstância gravosa para a ordem jurídica, a harmonia social e os princípios constitucionais, sem sombra de dúvidas, só impedirá o eficaz e pleno acesso à ordem jurídica justa.

Não se pode permitir a violação de postulados caros do Estado Democrático de Direito, tais como a segurança jurídica, a dignidade humana, a igualdade, o devido processo legal, em nome e tão-somente da celeridade processual, sobretudo com a permissão do Estado.

Desse modo, visto a existência de possível vício rescindível (hipóteses de cabimento da ação rescisória) nas decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais, sobretudo por não ser permitida a interposição de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (Súmula 203 do STJ), órgão de uniformização do entendimento de lei federal no país, seria de todo modo conveniente que o art. 59 da Lei nº 9.099/95 fosse alterado, permitindo o uso de ação rescisória nos excepcionais casos previstos no Código de Processo Civil, cuja competência para apreciação seria do Tribunal de Justiça do Estado ou do Distrito Federal, reduzindo, contudo, já que se pretende manter o postulado da celeridade processual na seara dos Juizados Especiais, o prazo decadencial pela metade, de modo que passaria a ser de um ano o prazo para o manejo da ação rescisória nos Juizados.

Na pior das hipóteses, que fosse o supracitado art. 59 da Lei nº 9.099/95 extirpado da ordem jurídica vigente, assegurando aos jurisdicionados os postulados do Estado Democrático de Direito que até então tem se encontrado violados.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Tiago Mantoan Farias Nunes

Advogado. Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. Palestrante. Articulista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Tiago Mantoan Farias. A inconstitucionalidade da vedação do uso de ação rescisória no âmbito dos juizados especiais cíveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3346, 29 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22515. Acesso em: 22 nov. 2024.

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