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A inconstitucionalidade da vedação do uso de ação rescisória no âmbito dos juizados especiais cíveis

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29/08/2012 às 14:29
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Além da violação explícita à segurança, afrontam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia entre os jurisdicionados e do pleno acesso à justiça, pois os Juizados Especiais foram instituídos para privilegiar a classe mais desfavorecida financeiramente.

Resumo: O presente trabalho tem por fim fomentar a discussão sobre a inconstitucionalidade do art. 59 da Lei nº 9.099/95, que impede o jurisdicionado a utilizar o mecanismo da ação rescisória para rescindir, de acordo com os casos previstos em lei, decisão judicial transitada em julgado na seara dos Juizados Especiais. A análise do estudo parte da premissa de que os Juizados Especiais são, no Brasil, a principal experiência de efetivação do acesso à justiça, sendo verdadeira via estatal como mecanismo de acesso ágil à obtenção de uma ordem justa. Apesar de buscar apaziguar a sociedade com a resolução dos conflitos de modo ágil, cumprindo com preceito constitucional, o sistema dos Juizados não está autorizado a violar os valores mais caros do Estado Democrático, como o acesso a plena ordem jurídica justa, o tratamento de igualdade entre os jurisdicionados, a segurança e a dignidade humana em prol e tão-somente da celeridade processual. O grande desafio do sistema dos Juizados Especiais, com o proibitivo legal que veda a utilização de ação rescisória, tem sido harmonizar os seus princípios regentes com os valores consagrados na Constituição. Estuda-se o histórico do acesso à justiça; a ideia dos Juizados Especiais como garantia do acesso à justiça; a coisa julgada, a segurança jurídica e a ação rescisória; e os mecanismos processuais encontrados pela jurisprudência brasileira como sucedâneo da ação rescisória no âmbito dos Juizados, a fim de suprimir a lacuna criada inconstitucionalmente pelo próprio legislador.

Palavras-chave: Processo Civil. Acesso à Justiça. Coisa Julgada. Juizado Especial. Ação Rescisória. Inconstitucionalidade. Segurança Jurídica.


Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.

Eduardo Juan Couture.


1 Introdução

A busca pelo acesso à justiça é uma preocupação não de hoje, mas uma angústia histórica entre todos os estudiosos do processo civil. Essa angústia ao efetivo acesso à justiça é que nos impulsionou para a pesquisa do estudo em voga, tendo sido influenciado ainda nos bancos da academia jurídico-científica, durante os estudos do direito processual civil.

A análise do estudo presente parte da premissa de que os Juizados Especiais são, atualmente, no Brasil, a principal experiência de pleno acesso à justiça, sendo verdadeira via criada pelo Estado como meio de acesso ágil à obtenção a uma ordem jurídica justa.

Esse microssistema foi instalado a partir de experiências internacionais anteriores, que, por intermédio de movimentos internacionais, buscaram o acesso à justiça. Entre nós, a implantação dos antigos Juizados de Pequena Causa e dos Juizados Informais de Conciliação, em alguns Estados, serviu para definir os atuais de modelos de Juizados Especiais Cíveis.

Embora os Juizados Especiais tenham sido criados para conter os conflitos sociais, através de um processo com tramitação mais célere que o convencional processo civil, dando cumprimento efetivo a preceito contido na Constituição, o microssistema deve respeito aos valores mais caros de um Estado Democrático de Direito.

Com a instituição da Lei nº 9.099/95, que prevê o regramento dos Juizados Especiais, o legislador ordinário impediu a utilização de ação rescisória com vista a tornar o processo um tanto mais ágil, porém, apesar de ter cuidado de dar maior agilidade na conclusão da prestação jurisdicional, acabou violando valores de ordem constitucional, como a segurança jurídica, o tratamento isonômico entre os jurisdicionados, o pleno acesso a ordem jurídica justa etc.

A título de exemplo, permitir a rescindibilidade da coisa julgada em processo comum e impedir a sua desconstituição, através da ação rescisória nos Juizados Especiais, mesmo que em afronta aos princípios constitucionais, privilegia, com a chancela do Estado Democrático, a classe mais abastada financeiramente da sociedade em detrimento da mais pobre, já que, como veremos, os Juizados Especiais foram criados para atender a classe social desprovida de recursos, facilitando seu acesso à justiça, com consecução de seus direitos.

O direito à tramitação célere e a conclusão ágil da atividade jurisdicional constituem, no contexto do nosso estudo, as premissas básicas do desenvolvimento do processo em nosso país, porém, cumpre destacar que tão-somente haverá o esperado desenvolvimento se houver respeito aos valores consagrados na Constituição, em especial ao tratamento isonômico entre os jurisdicionados (que optaram pela tramitação de seus processos nos Juizados Especiais) e a segurança jurídica.

Assim, situado no cerne do debate processual civil e tendo como tema central o não cabimento da ação rescisória no âmbito dos Juizados Especiais, vez a expressa previsão legal no sentido da sua proibição, o presente trabalho aborda, em síntese, a inconstitucionalidade do proibitivo que impede o cidadão de se valer da importante ação autônoma de impugnação das decisões, a ação rescisória, nos Juizados Especiais, a fim de conferir-lhe segurança jurídica.

Diante dessa perspectiva, nosso trabalho se divide em três partes: a primeira aborda a evolução histórica do acesso à justiça e a ideia dos Juizados Especiais como meio de efetivo acesso à justiça; na segunda parte, cuidamos da segurança jurídica dos jurisdicionados com o enceramento da atividade jurisdicional através da coisa julgada e o emprego da ação rescisória como mecanismo de alcançar o objeto vindicado da segurança jurídica, nos casos previstos em lei; e na terceira e última parte, cuidamos da análise da inconstitucionalidade do disposto legal que veda a utilização de ação rescisória nos Juizados Especiais, enfatizando os meios encontrados pela jurisprudência para que o jurisdicionado as utilize como sucedâneo da ação rescisória, garantindo a esses a segurança jurídica também nos Juizados Especiais, suprimindo a lacuna, por nos considerada inconstitucional, que fora criada pelo legislador ordinário.


2 Breves contornos sobre o acesso à justiça

A vida humana em sociedade requer a existência de normas cuja tarefa é a de trazer paz e harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de concretizar os valores do homem com o mínimo de desgaste e sacrifício possíveis. Desse convívio social natural que se exista inevitáveis entrechoques de interesses, daí a necessidade da intervenção do Estado a fim de garantir a manutenção da ordem, pressupostos indispensáveis à convivência harmônica.

Na medida em que o Estado se firmou e se impôs sobre a vontade do particular, tendo a sociedade percebido os males da justiça privada, se consolidou a solução dos conflitos a partir de pessoas e figuras imparciais, tarefa confiada inicialmente aos sacerdotes e aos anciões (os mais antigos). [1]

A justiça pública se solidificou com o direito romano em um momento da história que ficou conhecido de cognitio extra ordinem, fase em que o Estado, por já ter suficiente poder entre os indivíduos, passou a ditar e definir a solução para os seus conflitos, não importando mais as suas vontades, que já se encontrava totalmente submetida, e dela não podia mais se esquivar, [2] ocasião em que se garantiu ao cidadão envolvido no conflito social a possibilidade de levar sua pretensão ao Poder Judiciário. [3]

A importância do acesso à Justiça é tamanha e a experiência histórica o permitiu evoluir para qualidade de direito humano, encontrando guarida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, [4] já que por meio do seu exercício efetivo é possível a proteção de todos os demais direitos e garantias.

O acesso à Justiça alcançou novos contornos, sobremaneira no Brasil, no particular, após a Constituição de 1988, resultando na ideia de que não basta desenvolver possibilidades e facilidades de ajuizar ações no Poder Judiciário, que apesar de relevante para o exercício do direito, não torna suficiente a sua efetivação.

O art. 5º, inciso XXXV da Carta Política de 1988 consagrou o acesso ao Judiciário como direito fundamental, assegurando aos indivíduos que a lei não excluirá da apreciação do Estado, através do órgão jurisdicional competente, ameaça à lesão ou lesão propriamente dita a direitos. Da leitura do disposto constitucional, a primeira ideia do senso comum é de que o acesso se restringe apenas aos tribunais, que, muito embora incompleta, não está equivocada. Incompleta na medida em que o acesso à justiça não se esgota e se limita com a intervenção do órgão jurisdicional para solucionar o conflito social.

O acesso à justiça, inicialmente entendido como direito do cidadão ingressar apenas e formalmente nos tribunais, passou a ser entendido, a partir de um novo enfoque, como o acesso a ordem jurídica justa, [5] na qual se garanta o respeito aos princípios, especialmente o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a isonomia processual entre as partes envolvidas.

Outrossim, o acesso à justiça é visto como a garantia da tutela eficaz de todos os demais direitos, decorrendo sua importância do fato de que a inexistência de uma tutela eficaz implica a transformação dos direitos constitucionais em meras declarações políticas, tanto que “o acesso à justiça pode, pois, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar direitos de todos”. [6]

Diante da nova realidade vivenciada, já que o Estado vem adotando medidas com vista a dar efetividade na participação do cidadão, atualmente não há como se falar na falta de acesso à justiça, que não se resume na falsa ideia do comum de acesso ao Poder Judiciário, mas de obter dele um resultado equânime, pautado nos mais sagrados valores de um Estado Democrático de Direito, embora se reconheça que ainda há muito a se avançar.

Apesar de haver inúmeras formas modernas de acesso à justiça, nos ateremos, no presente estudo, a discutir o seu implemento por meio do Juizado Especial, sistema previsto constitucionalmente (art. 98, inciso I da Constituição) com o fim de dirimir os conflitos de menor complexidade – que, ressalta-se, não implica no sinônimo de menor importância, já que todo direito ofendido ou ameaçado de ofensa tem demasiada relevância, inclusive para o próprio Estado, que busca incessantemente a paz e a harmonia sociais.


3 Juizados Especiais como instrumento eficaz de acesso à justiça

Uma sociedade cada vez mais globalizada, cheia de desigualdades e complexa, gera um colossal número de conflitos de naturezas distintas, sendo o processo comum inadequado para a tutela de certos interesses. Diante disso, exige-se um sistema de justiça transformador e satisfatório, que atenda os anseios da coletividade.

A constatação de que o formalismo exacerbado nos Processos [7] se tornou ineficiente tem feito inúmeros juristas renomados repensar a instrumentalização e os procedimentos até então adotados, tanto que já se encontra em trâmite o projeto de lei do novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010), com fim específico de simplificar a prestação jurisdicional, tornando-a célere e ágil, cumprindo o processo com o seu devido escopo.

Diante desse cenário, sobretudo do antagonismo do sistema processual tradicional face à grande parcela de direitos da sociedade atual (como, v.g., as relações de consumo), reclamou-se a necessidade de um mecanismo que permitisse a eficácia do acesso à justiça, tendo encontrado o legislador ordinário a instituição de um microssistema de justiça célere, simplificada e econômica, com alcance facilitado a todos os jurisdicionados, a fim de dirimir conflitos de menor complexidade, já que o processo tradicional se mostrou incapaz para tanto.

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Problemas como o alto custo e a duração praticamente interminável do processo, além de outros, tem levado o jurisdicionado a se afastar da jurisdição, ocasionando seríssimo risco para a legitimidade do Estado no tocante ao monopólio de se dizer o direito, sem contar no descrédito do povo para com as instituições jurídicas, agravando ainda mais o problema.

A instituição dos Juizados Especiais Cíveis partiu do imperativo de se conferir maior celeridade na tramitação dos processos de menor complexidade, comumente traçados pelo perfil econômico das pessoas envolvidas nos litígios, já que em sua grande maioria as causas abrangiam pequenas montas em dinheiro. Visam oferecer um caminho de solução do conflito mais célere, informal e desburocratizado, capaz de atender aos anseios do jurisdicionado em relação ao direito vindicado.

Garantir o pleno acesso à justiça para quem não pode custear o processo comum por insuficiência de recursos financeiros ou devido ao fato de que, em certos casos, os valores ou objetos envolvidos na demanda acabavam sendo inferiores às próprias custas e/ou despesas processuais, além de ser a própria matiz para a criação desse microssistema possibilitou a democratização e desburocratização do acesso à justiça.

Aduz Adílio Oliveira Ribeiro que “a proposta de dirimir pequenos conflitos de forma ágil e com maior presteza surgiu nos Estados Unidos da América no ano de 1913, através do primeiro órgão jurisdicional com atribuição especial para cuidar das pequenas causas”, [8] tendo ganhado notoriedade com a quebra da Bolsa de Valores em 1929, modelo jurisdicional que foi experimentado nos países europeus, tendo sua grande ascensão a partir da década de 1970.

No Brasil, de início se buscou garantir o eficaz acesso à justiça por procedimentos, surgindo o rito sumaríssimo, destinado à solução de conflitos mais célere, o qual, atualmente, deu lugar ao rito sumário, que da mesma sorte – ou melhor, infelicidade – não logrou êxito para o fim que se destinava.

Outro meio utilizado para atender a necessidade da celeridade foi a medida cautelar, mas, como se desvirtuou de sua finalidade legal, até porquanto não se presta a esse fim, já que é cediço que visa assegurar o resultado prático do processo de cognição ou da execução, sendo apenas um instrumento do processo principal, também não logrou êxito.

Foi a partir de soluções informais usadas por juízes gaúchos, seguidos de baianos e paranaenses, que se criaram os Conselhos de Conciliação com o objetivo de solucionar, com maior celeridade, o conflito social, [9] culminando na criação dos Juizados de Pequenas Causas, pela Lei nº 7.244/84, que foi supervenientemente foi ab-rogada pela vigente Lei nº 9.099/95, que institui os atuais Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

Fruto da ideia que busca o pleno e efetivo acesso à justiça, principalmente à camada mais desfavorecida financeiramente da sociedade, os Juizados Especiais Cíveis representou a promessa de uma moderna Justiça, sendo um dos mecanismos de reforma do sistema judicial em nosso país com o escopo de alcançar o acesso à ordem jurídica justa de maneira célere.

Os Juizados Especiais Cíveis têm como característica principal o fato de ser popular, atendendo a todas as classes civis, sobretudo a de baixa renda, e de ter baixo custo financeiro para os seus usuários. Outro fator importante é a informalidade dos seus atos, dispensando a necessidade de advogados e das formalidades processuais que, em regra, costumam trancar o regular curso e andamento do processo. [10]

Os objetivos apregoados na Constituição da República no sentido de garantir aos jurisdicionados a segurança jurídica, a igualdade e a justiça como valores supremos fundados no comprometimento da solução pacífica das controvérsias, somado à angústia da via crucius mais dispendiosa do acesso aos órgãos do Judiciário, no processo tradicional, ganharam força e esforços empreendidos para a criação da tutela diferenciada dos Juizados Especiais, [11] já que os princípios que condicionam esse microssistema – oralidade, simplicidade, informalidade e economia – estão todos voltados para celeridade na conclusão da atividade jurisdicional (art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição).

Privilegiando a transação entre as partes, o Juizado Especial certamente se aproxima da realidade dos inúmeros litígios existentes no seio social, dado a sua gratuidade, rapidez e também informalidade, permitindo que os jurisdicionados sejam regulados por órgão estatal, legitimando a jurisdição pública e o controle da atuação do direito pelo Estado.


4 A ação rescisória como garantia constitucional de segurança jurídica dos julgados. [12]

Tendo o jurisdicionado exercido o seu direito de acesso a ordem jurídica justa, por meio da submissão à apreciação pelo Poder Judiciário de sua pretensão, a mesma deve ser examinada e decidida, acolhendo-se, ou não o pedido formulado. Sucede que é garantido às partes impugnar tal decisão judicial, preenchidos os requisitos, por meio de recurso ou outro meio de impugnação.

Em que pese nossa ordem jurídica contenha diversos recursos e “graus de jurisdição”, o seu número é limitado, daí que em dado momento a decisão judicial tornar-se irrecorrível, não se podendo mais discuti-la, surgindo o trânsito em julgado, nascendo a coisa julgada, [13] cumprindo a jurisdição com o seu escopo de pacificação social, por meio da imperatividade e da imutabilidade da resposta do Estado, sanando as invalidades intrínsecas do processo, não correndo mais a decisão o risco de ser impugnada (logo, modificada ou anulada), encontrando seu alicerce no caráter político que lhe é emprestado, já que seu intento é a preservação da paz e segurança sociais. [14]

Por mais que possa haver uma ou outra decisão judicial injusta (e aqui se abre um campo largo demais para a discussão do que venha ser, de fato, “justiça” – que, frise-se, não será tratado no trabalho), em virtude da falibilidade do homem, não se pode negar que seria bem pior, para o seio social, de modo geral, e não somente às partes envolvidas, se o resultado do processo pudesse ser sempre rediscutido, seja na mesma ou em outra demanda, sem chegar a uma conclusão. Vê-se que a coisa julgada entendida, grosso modo, como a intangibilidade da decisão judicial, é corolário do valor fundamental da segurança jurídica, um dos postulados inerentes ao Estado Democrático de Direito.

O fim da incerteza que mantinham as partes em estado de angústia, característica natural de qualquer litigante, chega a um resultado onde se confere, em regra, a um a vitória e a outro a derrota, visto que o Estado, por meio da jurisdição, pronunciou o direito entre elas pela decisão que se tornou intangível com a coisa julgada, cujo condão busca sanar todos os possíveis vícios intrínsecos do processo, em decorrência da segurança jurídica.

A segurança jurídica, importante para a vida em sociedade, se institui na estabilidade e continuidade da ordem, bem como da previsibilidade das consequências de determinadas condutas cujos efeitos repercutirão na seara jurídica, sendo indispensável para a conformação de seu conceito, decorrendo do sistema jurídico e encontrando na coisa julgada material o seu maior grau de estabilidade. [15]

Apesar de ser uma garantia, sobretudo de ordem constitucional, a coisa julgada não é absoluta, consagrando a ordem jurídica meio para impugná-la. Há casos (excepcionais) em que tornar indiscutível uma decisão judicial representa uma injustiça tão grave e tão ofensiva aos princípios que pautam o sistema que é necessário prever mecanismo de sua revisão, como, cite-se exemplo, a descoberta posterior ao trânsito em julgado da sentença que foi proferida por um juiz corrupto, outrora corrompido pela parte que venceu na demanda.

Embora em regra a coisa julgada supra todo e qualquer vício do processo operado, este defeito é tão grave que, fazer vista grossa seria altamente prejudicial à legitimidade do sistema e da prestação jurisdicional. Nesses casos, como o do exemplo citado, no momento do trânsito em julgado da decisão surge outro vício, a rescindibilidade, sendo possível suprimi-lo através meio de um remédio específico, denominado “ação rescisória”. [16]

A ação rescisória, como o próprio nome indica, é uma ação impugnativa autônoma (logo, não é recurso, já que gera nova relação processual!) na qual se pede a desconstituição da decisão judicial passada em julgado, com eventual rejulgamento da causa originária, [17] não se almejando a nulificação (ou anulação) da decisão, mas a sua rescisão. A decisão rescindível é, pois, aquela passada em julgado, que possui vício expressamente disposto em lei e capaz de autorizar a sua desconstituição e rescisão.

Por outro lado, frise-se que as hipóteses de rescindibilidade são taxativas e previstas em lei, necessitando de interpretação restritiva, não se tolerando extensão ou analogia, já que o ataque à coisa julgada deve ser excepcional. Para ser usada, o jurisdicionado deve preencher ao menos uma das hipóteses cabíveis do art. 485 do Código de Processo Civil, respeitando-se o prazo de 02 anos, cujo termo se tem início com a data do trânsito em julgado. [18]

O objetivo da ação rescisória não é o simplista de apenas reabrir a discussão da causa originária pela mera insatisfação de uma das partes litigantes, mas de obter uma sentença que desconstitua a coisa julgada, para, logo em seguida, se ainda assim for o caso, e preenchidos os requisitos de lei, promover o rejulgamento da matéria nela discutida, conferindo segurança jurídica ao julgado e às partes, a fim de reparar um vício que surgiu com o trânsito em julgado, na causa originária, daí porque sua utilização é de todo excepcional.

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Sobre o autor
Tiago Mantoan Farias Nunes

Advogado. Professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. Palestrante. Articulista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Tiago Mantoan Farias. A inconstitucionalidade da vedação do uso de ação rescisória no âmbito dos juizados especiais cíveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3346, 29 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22515. Acesso em: 20 abr. 2024.

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