6 A RELAÇÃO ENTRE A EXIGIBILIDADE DA MULTA PREVISTA NO ARTIGO 461 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O RESULTADO FINAL DA DEMANDA NO ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
A disciplina legal da multa coercitiva prevista em nosso atual Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), não responde inúmeras questões acerca de sua aplicabilidade, constatação que foi uma das razões da realização da presente pesquisa.
De modo a aprimorar e otimizar o Processo Civil Brasileiro, foi instituída, pelo Senado Federal, uma Comissão de Juristas encarregada de editar um novo Código de Processo Civil, o qual, como veremos, dá novos contornos à multa coercitiva e define questões que antes restavam silentes (AMARAL, 2004).
Pois bem. A alteração significativa das características da multa consegue ser percebida a partir do artigo 503 do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2010). Vejamos a redação proposta:
Artigo 503. A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na sentença ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 1º A multa fixada liminarmente ou na sentença se aplica na execução provisória, devendo ser depositada em juízo, permitido o seu levantamento após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo contra decisão denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.
§ 2º O requerimento de execução da multa abrange aquelas que se vencerem ao longo do processo, enquanto não cumprida pelo réu a decisão que a cominou.
§ 3º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou
a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:
I – se tornou insuficiente ou excessiva;
II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.
§ 4º A multa periódica incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.
§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer
o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será integralmente devida ao credor.
§ 8º Sempre que o descumprimento da obrigação pelo réu puder prejudicar diretamente a saúde, a liberdade ou a vida, poderá o juiz conceder, em decisão fundamentada, providência de caráter mandamental, cujo descumprimento será considerado crime de desobediência. (grifei)
Primeiramente, nota-se que o legislador foi suficientemente atencioso no artigo 503, parágrafo 1º, para deixar claro que o levantamento das astreintes se dá após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo da decisão denegatória de recurso especial ou extraordinário.
Crê-se, a partir disso, que: (a) sua executoriedade é imediata, passado o prazo de cumprimento espontâneo da obrigação pelo demandado, motivo pelo qual a instauração da execução provisória é cabível; (b) o percebimento dos valores a título de multa depende do trânsito em julgado, o que, por mais que não há expressamente tal regra, pode levantar interpretação semelhante ao atual Código (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), no sentido de que, no caso de improcedência, inexigível seria a multa.
O artigo 503, parágrafo 5º do Anteprojeto (BRASIL, 2010) dispõe que o valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente ao Estado, exceto se o devedor for a própria Fazenda Pública, caso em que a verba será integralmente devida ao credor (parágrafo 7º).
E por fim, o parágrafo 8º, do artigo 503 do Anteprojeto, estabelece a aplicação de sanção pelo descumprimento da ordem mandamental emanada, o que pode corroborar a interpretação proposta acima quanto ao parágrafo 1º, do mesmo artigo, no sentido de que a medida coercitiva vinculada ao cumprimento das decisões judiciais se comunica com essa modalidade de coerção, através da ameaça de instauração de procedimento criminal.
Nota-se que o legislador buscou superar questões que atualmente, na prática, são polêmicas, a exemplo da executoriedade imediata e exigibilidade a partir do trânsito em julgado, bem como em relação ao destinatário do montante arrecadado a tal título.
Ainda assim, tem-se que é necessária maior reflexão quanto a tais textos, visto que a solução ali adotada poderia gerar pouca ou nenhuma efetividade, a exemplo da necessidade de o Estado executar o seu montante da multa revertido, o que geraria mais uma parte litigando em novo incidente apenso àquele originário.
Conclui-se que a proposta de modificação do texto legal a esse respeito, tanto quanto a aplicação atual, demonstra que os operadores do Direito possuem muitas duvidas e indagações sobre o instituto, embora seja inegável sua importância para a busca da efetividade do processo.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscava investigar se (a) a obrigação de pagar a multa fixada dependia da prolação de sentença de procedência ou se era decorrente apenas da desobediência à ordem judicial e; (b) qual o reflexo da exigibilidade para a efetividade do processo.
Da análise de todas as reflexões apostas nesse trabalho, concluiu-se, de modo a responder, tocante ao primeiro problema e em oposição ao entendimento adotado em sede doutrinária e jurisprudencial, pela exigibilidade da multa coercitiva independentemente do resultado final da demanda.
Como visto, ao Processo Civil, atualmente inserto numa perspectiva constitucional, notadamente quanto ao direito de ação (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal do Brasil, BRASIL, 1988), é atribuída a responsabilidade de, além de ser instrumento para o alcance do direito material garantido, prestar a tutela jurisdicional de modo tempestivo e adequado. Tal situação é consideravelmente agravada quando se está a tratar de prestações jurisdicionais sob a forma de antecipações de tutela, visto ser intrínseco de sua concessão o caráter de urgência da medida.
Para tanto, é inegável que, para se alcançar plenamente a tempestividade e adequação da tutela pretendida, sob outros fatores, é necessário o afastamento da resistência e do descumprimento das decisões judiciais pelas partes.
Não sendo esse o panorama quotidiano, o legislador municiou o magistrado de meios de coerção, sendo a multa figurando como principal, a fim de que haja a ação incisiva sobre a vontade do demandado, capaz de fazer com que cumpra sua obrigação.
Vem a calhar que, para a multa ser fixada, a concessão da tutela que a acompanha observou os requisitos obrigatórios para seu deferimento (contidos no art. 273 do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), estabelecendo-a em motivação inequívoca naquele momento, não obstante tratar-se de uma cognição superficial e temporária. A decisão, nesse ponto, é encarada como uma procedência temporária do pedido. A vinculação da multa, no caso, se dá com a necessidade de autonomia e autoridade de tal preceito no mundo dos fatos, em nada se relacionando com o fundo meritório da decisão.
Em outras palavras, no momento da concessão da tutela antecipada a ser efetivada com o auxílio da multa coercitiva, havia a prova inequívoca, bem como a verossimilhança da alegação do autor, não se cogitando eventual ilegalidade ou injustiça da medida, como sustentado por doutrinadores que descartam a desvinculação da multa ao mérito da demanda.
Ademais, imaginando-se ter havido a suposta injustiça e/ou ilegalidade, não se priva, na hipótese, o demandado do seu direito recursal (conclusão que atende ao princípio da ampla defesa), através do qual, caso tenha razão em se insurgir quanto ao cumprimento da tutela antecipada sob pena de multa, poderá comprovar sua tese perante novo grau de jurisdição.
Em outro aspecto, sendo a multa mecanismo para o cumprimento das decisões, entendeu-se que a elas está vinculada, e não ao mérito propriamente dito, conforme salientado. Considera-se a multa tende à proteção da autoridade da jurisdição no momento em que esta, ao analisar o pedido do autor, emana decisão mandamental com carga de urgência e obrigatoriedade, devendo ser, portanto, de pronto atendida.
A multa coercitiva, nesse viés, possui a evidente função de realizar a efetividade do processo, e por tal motivo, é interpretada como mecanismo processual de coerção. Outra interpretação não se tem quando suficientemente especificado em nossa legislação a sua fixação sem prejuízo da eventual indenização por perdas e danos, e portanto, pelo raciocínio de que um mesmo fato não pode gerar mais de uma indenização.
Ou seja, compartilhando do entendimento de Arenhart (2000), entendeu-se que a coerção exercida sobre o direito material se estabelece na forma da ameaça quanto à possível condenação na indenização por perdas e danos, enquanto que a ameaça quanto ao descumprimento ou resistência à ordem judicial, se materializa na imposição da multa coercitiva.
Dito isso, não se ignoram as razões de grande parte da doutrina quanto a ser equivocada a atribuição à multa coercitiva de finalidade semelhante àquela insculpida na multa que trata o artigo 14, inciso V, do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), advinda do contempt of court.
Entretanto, para responder essa questão, é preciso ter presente a distinção entre as naturezas jurídicas de uma e de outra. A multa prevista no artigo 14, inciso V, como visto, tem natureza punitiva. Sua pretensão é penalizar a parte ou todos aqueles que de alguma forma atuam no processo, que acabam por descumprir ou embaraçar o cumprimento da ordem judicial.
A multa do artigo 461, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), por outro lado, tem o precípuo fim de atuar sobre a vontade do réu, fazendo com que este cumpra a ordem judicial. Sua finalidade é coercitiva. Fortalece esse entendimento o fato de que, reconhecidamente pela jurisprudência e doutrina, a incidência cumulada de ambas as multas é possível.
Conclui-se, assim, pela exigibilidade da multa condicionada apenas ao descumprimento ou à resistência do réu, é necessário pontuar quanto ao destinatário do valor.
Compulsando o arcabouço de entendimentos sobre a questão do destinatário da multa, inclusive tema sob a análise do e. Superior Tribunal de Justiça, bem como o que propõe o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2010), concluiu-se que a multa deveria ser revertida ao Estado. Acompanha-se, neste ponto, o entendimento preconizado por Arenhart (2000).
Isto porque, partindo-se da premissa de que a multa é mecanismo processual hábil a conceder o maior respeito e observância às decisões judiciais, tem-se que a resistência do réu, não obstante a sua fixação, concebe a ausência de credibilidade da própria jurisdição, a qual deverá ser afastada de modo consistente, o que invariavelmente, demandará certa dose de violência (no caso, patrimonial).
O resultado disso é de que a lesão ao descumprimento de uma decisão judicial afeta primeiramente ao Estado, possuindo o autor da ação, se for o caso, os mecanismos hábeis para a reparação da demora ou do descumprimento (a exemplo da anteriormente citada indenização por perdas e danos, cumulável com a multa).
Sob essa perspectiva, em sendo o valor revertido ao Estado, igualmente filia-se à corrente proposta por Arenhart (2000), ao se convencer de que é desnecessária a instauração de nova fase, agora de cumprimento de sentença, para a instrumentalização da sua exigibilidade. É possível que os atos expropriatórios sigam na mesma fase de conhecimento onde houve a fixação da multa, por impulso oficial.
Ainda, no tocante à imputação da multa coercitiva em face de entes públicos, conclui-se, a exemplo do modelo francês, pela destinação do valor a instituições de caridade, por medida de maior justiça.
Embora o contido no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2010) tenha acompanhado em parte o que ora se defende, nota-se que sob certo aspecto, a interpretação aqui refletida impulsionou o Poder Legislativo às alterações dos dispositivos que disciplinam o tema.
Concorda-se em parte com a sugestão legislativa, notadamente quanto à destinação da multa ao Estado (mesmo que parcialmente), discordando-se, data venia, apenas quanto à destinação de parte do valor da multa ao autor, pelos motivos já expostos, bem como com o condicionamento do percebimento do montante ao trânsito em julgado do processo.
Por fim, no que toca ao questionamento acerca do reflexo da exigibilidade da multa na perspectiva da efetividade do Processo Civil, acredita-se que, com os delineamentos anteriormente realizados quanto à exigibilidade, é possível se aproximar do chamado direito fundamental à tutela jurisdicional tempestiva e adequada.
Isto porque se pretende a eficiência da jurisdição, através de mecanismos processuais hábeis a perfectibilizar o direito material assegurado. Através do proposto quanto à exigibilidade da multa coercitiva, se estaria concebendo um Processo Civil impulsionado tanto pelo interesse do autor na resolução do conflito posto a apreciação, quanto pelo interesse da jurisdição em prestar de forma tempestiva e efetiva a tutela que lhe cabe.
Dessa maneira, entende-se que é através da exigibilidade imediata da multa, quando configurada a resistência ou descumprimento da decisão judicial pelo réu, a ser revertida ao Estado, que se estará delineando os novos contornos de coerção necessários à efetividade das decisões, e da própria jurisdição, por consequência. Soma-se a isso a ideia de que a multa, em sendo integralmente destinada ao Estado, dispensa a instauração de procedimento executivo para sua cobrança, bastando o impulso oficial na própria fase de conhecimento.
Acredita-se, com isso, que a almejada efetividade seja alcançada, ou no mínimo, seja o seu alcance facilitado, sem possibilitar o descumprimento ou resistência das decisões judicial pelo réu que acredita ter razão ao final do processo.
Enquanto que não há uma reeducação social no sentido de que o cumprimento de suas obrigações, bem como das determinações da autoridade estatal são impositivas, o poder da jurisdição deverá ser municiado com formas de influenciar na vontade da parte, fazendo com que ela prefira cumprir o seu dever, ao invés de arcar com a incidência de multa.