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Descaminho: perdimento de mercadoria e ausência de justa causa para a ação penal

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01/09/2012 às 09:39
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4  O descaminho como um crime material

Tal como ocorre com as modalidades de sonegação fiscal tratadas no art. 1º da Lei 8.137/90, o descaminho há de ser considerado um crime material, porque exige, para a sua consumação, a efetiva ilusão, integral ou parcial, no pagamento do direito ou imposto.

A simples leitura do tipo (art. 334, caput, 2ª parte), comparando-o com o tipo do art. 1º da Lei 8.137/90, deixa transparecer que não se trata de crime formal. O núcleo "iludir o pagamento" (do art. 334) pressupõe a existência de "direito ou imposto devido", assim como o elemento "suprimir ou reduzir” (art. 1º) pressupõe a existência de "tributo".

A lei fala em iludir o pagamento e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade. Serve aqui o mesmo raciocínio já empregado pela doutrina para distinguir os crimes materiais e formais tipificados na Lei 8.137/90, assinalando que os tipos penais, nos crimes tributários formais, costumam ser construídos com expressões tais como “para”, “com o fim de”, “a fim de” etc.

Consoante salienta José Paulo Baltazar Júnior,

a diferenciação mais aceita é no sentido de que o art. 1º é um crime material por exigir a efetiva supressão ou redução do tributo, contribuição ou qualquer acessório para sua consumação. Já no art. 2º inexiste essa referência no caput, estando mencionada a supressão ou redução do tributo no próprio inciso I, antecedido da proposição para. Ora, sempre que o tipo for construído com expressões tais como para, com o fim de, a fim de, etc., a elementar que se seguir constitui elemento subjetivo do tipo. Basta que o agente tenha aquela finalidade, ou seja, não é preciso que o que está descrito depois da preposição efetivamente se concretize para consumar o crime. Desse modo, se o contribuinte é autuado pela fiscalização tributária após ter cometido a falsidade tendente a reduzir o valor do tributo, estará consumado o delito do art. 2º, I, ainda que não tenha vencido o prazo para o recolhimento (Seixas Filho: 426). Daí resulta que o inciso I do art. 2º é a forma tentada do art. 1º. Assim, em vez de utilizar o art.14 do CP, para fazer a adequação típica da tentativa, utiliza-se o inciso I do art. 2º.[11]

E ainda que se discorde da aplicação desse raciocínio ao tipo do descaminho, entendendo-se que o verbo iludir remeteria apenas à conduta fraudulenta[12], é preciso atentar que a aplicação do princípio da insignificância, tal como veio sendo acolhida pelo STF, acabou atribuindo importância substancial ao resultado naturalístico, aspecto que soa incompatível com uma mera tipificação formal.

É lição preliminar do Direito Penal a de que, enquanto nos tipos materiais, o resultado é elemento necessário, sem o qual o crime não se consuma, nos tipos formais, eventual resultado, apesar de possível em momento posterior, é indiferente à consumação. Ora, na medida em que, ao aplicar o princípio da insignificância, a Corte Suprema vem levando em conta um resultado necessário e consistente em determinado valor mínimo do tributo que deixou de ser recolhido, é inevitável a conclusão de que o descaminho passou a ser tratado como um crime material, não se consumando sem a efetiva ocorrência desse resultado significativo. Fosse um crime formal, esse dado seria irrelevante, ou, ao menos, não teria tamanha importância na tipificação.

Em suma, ao considerar o montante equivalente do tributo sonegado como um dos elementos integrantes do tipo penal, o STF acabou condicionando a consumação do crime ao seu resultado, atestando com isso o caráter material do descaminho. Logo, na linha de entendimento daquela mesma Corte, a justa causa para a ação penal por descaminho também deve depender da existência de crédito tributário lançado em definitivo ("direito ou imposto devido"), conforme abordaremos no tópico seguinte.


5  Necessidade de prévio processo administrativo-fiscal na hipótese de descaminho

Antes de adentrarmos especificamente no tema da justa causa para a ação penal no crime de descaminho, cumpre-nos abordar, ainda que ligeiramente, alguns aspectos da fenomenologia dos crimes contra a ordem tributária, segundo o atual posicionamento jurisprudencial.

O recente entendimento do STF acerca do processamento dos crimes fiscais, tal como veio a ser consolidado na Súmula Vinculante 24, pode ser considerado um divisor de águas para a compreensão da incidência das normas penais que tratam dos tipos tributários formais e materiais, notadamente quanto à análise do iter criminis e o momento da consumação do delito, nas situações envolvendo tributos sujeitos a lançamento por homologação, em que, como se sabe, o contribuinte antecipa o pagamento (CTN, art. 150).

Urge perceber que apesar de haver concluído pela ausência de justa causa para a ação penal nos crimes tributários materiais antes do lançamento definitivo do tributo, o Pretório Excelso não avançou de modo conclusivo na discussão teórica subjacente, que havia sido levantada desde o HC 81.611/DF, sobre tratar-se (o tributo definitivamente constituído) de um elemento do tipo penal ou de uma condição objetiva de punibilidade.

Do que restou consignado na ementa daquele julgado (relator Min. Sepúlveda Pertence), o plenário limitou-se a ponderar que uma ou outra solução em nada alteraria o resultado ali proclamado, quando se concluiu que

falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo.

Não obstante, o texto da Súmula Vinculante 24, ao falar que o crime “não se tipifica”, parece haver adotado a linha de que seria um elemento objetivo do tipo.

Pois bem, antes desses novos ventos que sopraram sobre a Corte Suprema, apontava-se que a consumação dos crimes fiscais materiais (art. 1º da Lei 8.137/90) se dava no momento em que o contribuinte deixasse de recolher o tributo devido ou o recolhesse à menor, valendo-se de conduta fraudulenta. Sendo assim, nas situações envolvendo tributos sujeitos a lançamento por homologação, os tipos dos crimes tributários formais (art. 2º, I, da Lei 8.137/90) somente incidiriam quando a fraude tivesse sido detectada antes de efetuado o recolhimento à menor ou quando ainda não esgotado o prazo para o devido recolhimento, porque após isso já estaria consumado o crime material.

Em outras palavras, no campo tributário, os crimes formais sempre foram tratados como tentativas de cometimento dos crimes materiais, já que o legislador, ao invés de remeter a situação à regra geral de tentativa do art. 14 do CP, optou por criar tipos penais específicos, de natureza formal. Assim, por exemplo, ao falsificar um documento com potencialidade para propiciar futura redução ou supressão de tributo, o contribuinte já estaria incidindo na situação tipificada no art. 2º, I, sendo que tal incidência perdurava até o momento do recolhimento a menor ou do final do prazo para recolhimento. Se o contribuinte fosse flagrado pela fiscalização antes de efetuar qualquer recolhimento e ainda havendo prazo para tanto, estaria incurso na pena do art. 2º, I (crime formal). Quando, porém, o contribuinte fosse além, antecipando-se em recolher tributo a menor ou deixando de recolher qualquer valor no prazo legal, a situação passava a ser tipificada no art. 1º (crime material).

Nessa exegese, até então perfeitamente coerente com os institutos da teoria geral do crime, não havia solução de continuidade entre os momentos consumativos dos crimes tributários formais e materiais. O crime formal se exauria exatamente no momento em que operada a consumação do crime material, com absorção daquele por este.

Ocorre que tudo isso parece haver mudado com o atual entendimento do STF, sobretudo como extraído do texto da Súmula Vinculante 24, que ao falar em "tipicidade", terminou por criar um verdadeiro "limbo" entre os momentos consumativos dos crimes formais e materiais. Na linha defendida pelo ministro Cezar Peluso, o crime tributário material "não se tipifica" antes do lançamento definitivo do tributo, ou seja, enquanto não esgotado o processo administrativo fiscal, ainda que o contribuinte tenha recolhido valor a menor ou nada tenha recolhido no prazo legal, lembrando que nos tributos sujeitos a lançamento por homologação a antecipação de pagamento pelo próprio sujeito passivo ocorre sem prévio exame da autoridade fazendária.

Partindo dessa nova orientação, passou-se a defender que a expressão "tributo", como elemento do tipo penal, teria o mesmo significado de crédito tributário, ou seja, tributo definitivamente constituído e passível de cobrança.

Levado ao extremo esse entendimento, pode-se cair no absurdo de considerar que nenhuma das condutas anteriores ao final do processo fiscal teria repercussão criminal, o que praticamente acabaria com qualquer possibilidade de incidência dos tipos tributários formais, já que também dependeriam do esgotamento do processo fiscal para fins de aferição do elemento objetivo do tipo. Ou seja, o sujeito jamais poderia ser processado criminalmente enquanto não esgotada a discussão na seara administrativa.

Num outro extremo, defende-se a tese de que todas as condutas anteriores ao esgotamento do processo fiscal estariam incursas no tipo formal do art. 2º, I, já que não dependeriam do efetivo resultado, sendo que somente se consumaria o crime material no momento em que o contribuinte deixasse de recolher, no novo prazo assinalado pela autoridade fazendária, o tributo definitivamente lançado (quando suprimido) ou a sua complementação (quando reduzido). Mas essa posição entra em choque com o entendimento já consagrado na jurisprudência no sentido de que, uma vez não tendo sido efetuado o devido recolhimento pelo contribuinte no prazo legal (lançamento por homologação), a fraude que consubstanciaria o crime formal (meio) é considerada absorvida pelo crime material (fim), segundo o princípio da consunção.

Uma terceira posição exegética, menos extremada, mas igualmente desastrosa, considera que os crimes formais apenas se consumariam até o momento do recolhimento ou o transcurso do respectivo prazo, após o que já se avançaria no iter criminis dos tipos materiais, cuja consumação, entrementes, estaria na pendência do esgotamento da via administrativa. Ocorreria aí uma solução de continuidade entre o momento consumativo dos crimes formais e o dos crimes materiais, surgindo um espaço temporal em que o sujeito não estaria enquadrado em qualquer dos tipos previstos na Lei 8.137 (o aludido "limbo").

Nesse tormentoso quadro exegético e à falta de melhor opção de coerência, seria de bom alvitre ao menos seguir o entendimento esposado pelo ministro Sepúlveda Pertence em seu voto no HC 81.611, assimilando o lançamento definitivo não como um elemento do tipo, mas, sim, como uma condição objetiva de punibilidade, considerando então que a consumação do crime material dá-se em momento anterior à conclusão do processo administrativo-fiscal, ficando pendente apenas a verificação da punibilidade, que seria uma circunstância exterior ao crime, mas igualmente impeditiva da ação penal.

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Aplicando tal consideração ao delito sob estudo, tem-se que, sendo como já dito um crime material de natureza tributária, cujo núcleo do tipo está em iludir o pagamento de direito ou imposto, a punibilidade no descaminho pressupõe que a autoridade fiscal competente constitua o crédito tributário por meio de um processo administrativo fiscal em que seja assegurada a ampla defesa e o contraditório, por coerência à linha de entendimento adotada pelo STF.

Não se trata mais de apontar o desacerto do posicionamento da Corte Maior, mas, sim, tomá-lo como premissa para o raciocínio, buscando, a partir daí, prolongar o debate jurídico sob argumentos que, numa lógica sistemática, tornem forçosa a aplicação do mesmo entendimento às hipóteses de descaminho. Nesse diapasão, apesar de o texto da Súmula Vinculante 24 fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art. 1º, I, da Lei 8.137/90, defendemos que a mesma razão deve conferir idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, em homenagem ao princípio constitucional da isonomia – uma vez que a política criminal na área fiscal tem notadamente se voltado à arrecadação como fator preponderante –, bem como aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, porquanto, nos casos de descaminho que já comportem a mais pesada das sanções administrativas (o confisco), tal já se revela suficiente a inibir a prática de novos delitos, bastando, para isso, que haja a devida fiscalização pela polícia administrativa.


6 Perdimento de bens como obstáculo à incidência do tipo penal do descaminho

Segundo a legislação aduaneira no Brasil, afora as situações em se procede ao desembaraço aduaneiro em zona primária[13], o Fisco deve dar início a um procedimento confiscatório.

Verificada a hipótese de descaminho, a autoridade fiscal, após apreender a mercadoria, dá seguimento a um processo administrativo que quase sempre culmina com a pena de perdimento, uma sanção administrativa prevista em norma legal (art. 105 do DL 37/66) e em regulamento aduaneiro (art. 689 do Decreto 6.759/2009), mas que acaba por impedir o próprio lançamento fiscal. Vale dizer, ao invés de simplesmente permitir a liberação da mercadoria mediante a constituição e cobrança do crédito tributário sonegado, acrescido de penalidades pecuniárias, a legislação impõe que a Receita Federal instaure, de logo, outro processo administrativo para legitimar o confisco dos bens.

Ao assim proceder, o órgão fazendário não pode lançar o tributo quando a lei prevê a expropriação de bens, os quais inclusive poderão ser objeto de alienação ou incorporação[14], ressarcindo ao Erário o que deixou de ser recolhido. Tributar, nessa situação, configuraria até mesmo um enriquecimento sem causa por parte do Estado. De fato, a importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art. 23, I e §1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009. E o “dano ao erário”, por si só, não pode servir como hipótese de incidência tributária. Se a mercadoria importada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente[15]. Aliás, a mesma razão pela qual não se deve utilizar tributo com efeito de confisco (CF/88, art. 150, IV) justifica que não se deva fazer incidir tributo sobre bem confiscado.

Saliente-se que não se fala aí propriamente em “tributo”, quando não houve sequer prévio lançamento. O que há, nesses casos, é uma mera estimativa do valor que poderia ter sido lançado caso tivesse havido o regular desembaraço aduaneiro, ou seja, do dano que seria experimentado pelo Erário e que é compensado pelo perdimento. Daí porque o art. 776 do Regulamento Aduaneiro estabelece que, na formalização do processo administrativo fiscal, para aplicação da pena de perdimento, a autoridade poderá indicar um “montante correspondente” àquele que “seria devido” na importação regular[16]. E essa locução “seria devido”, no texto do regulamento, denota bem a idéia de que, com o confisco, nada pode ser cobrado a título de tributo.

Não por acaso que, se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que tenha adiantado ao fazer a declaração. Confira-se, nesse sentido, os seguintes trechos de julgados:

A pena de perdimento dos bens é consectário lógico da situação ora desfavorável aos agravantes, em face da reforma da sentença concessiva do mandado de segurança, segundo orientação do Excelso Pretório. Os tributos pagos, por ocasião da internação dos automóveis no País, não têm o condão de tornar legal a importação e podem ser recuperados pelos agravantes mediante ação de repetição de indébito. Precedentes. (TRF da 1ª Região, AI 01000231438, Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, 11/11/1997).

(...) 4. A insubsistência do fato tributável, com a completa supressão de seus efeitos econômicos, implica inexoravelmente a impossibilidade de exigência do tributo, porque leva ao desaparecimento do suporte fático de incidência da norma de tributação, que é o signo presuntivo de capacidade contributiva. Assim, tanto do ponto de vista da lógica jurídica formal não se pode mais falar de obrigação tributária, à míngua do fato gerador respectivo, como do ponto de vista axiológico não se pode mais falar de capacidade contributiva, que desaparece com o perdimento da riqueza sobre a qual incidiria o tributo. (TRF da 4ª Região, AC 2000.72.01.000306-5/SC, rel. Des. Fed. Maria Lúcia Luz Leiria, DJ 15/12/2004).

Como dito, o confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou, como se prefira, a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.

É o que se extrai inclusive do Regulamento Aduaneiro, que ao tratar do imposto de importação assim dispõe:

Art.71. O imposto não incide sobre: (...)

III - mercadoria estrangeira que tenha sido objeto da pena de perdimento, exceto na hipótese em que não seja localizada, tenha sido consumida ou revendida (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 1º, § 4º, inciso III, com a redação dada pela Lei nº 10.833, de 2003, art. 77).

O texto do dispositivo revela que os bens apreendidos pela Administração Fiscal e submetidos a processo administrativo de perdimento de mercadoria[17] não sofrem a incidência do imposto de importação. A tributação só seria cabível se, na hipótese de perdimento, não houvesse meios para se apreender a mercadoria e concretizar o confisco. O mesmo se diga do imposto de produtos industrializados (IPI), cujo fato gerador na importação somente ocorre com a conclusão do desembaraço aduaneiro[18], assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação.[19]

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Sobre o autor
Durval Carneiro Neto

Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor de Direito Administrativo na UFBA. Juiz Federal na Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO NETO, Durval. Descaminho: perdimento de mercadoria e ausência de justa causa para a ação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3349, 1 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22532. Acesso em: 16 abr. 2024.

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