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Faltas não relacionadas ao trabalho: violação à privacidade e intimidade do empregado

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15/10/2012 às 15:01
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4- Restrições ao Direito à Intimidade e à Privacidade:

Nenhum direito é absoluto, e, como tal, há situações específicas em que poderá a empresa intervir na vida pessoal do empregado, desde que a sua natureza de sua atividade a justifique, devendo, todavia, as restrições serem proporcionais aos objetivos que se persegue.

Guilherme Machado Dray entende que a noção do direito anglo-saxônico do right to be alone não pode ser aplicada na esfera trabalhista, pois esta é fundada na mútua colaboração, que extravasa a mera esfera contratual e, assim, se determinados acontecimentos da vida profissional interferem na vida pessoal do empregado, o inverso também pode ocorrer (DRAY 2001, 57).

De acordo com mencionado autor, o right to be alone pode ser conceituado como um direito ao isolamento, tratando-se de uma construção norte-americana, sem qualquer conteúdo ético e baseado unicamente em concepções individualistas. A partir do right to be alone, o direito de personalidade passa a ser visto como um direito ao anonimato, ao isolamento, sem que se considere qualquer valor de solidariedade e de mútua colaboração (DRAY 2001, 49).

Entretanto, para Guilherme Machado Dray, apesar de não ser absoluto, o direito à privacidade e à intimidade devem ser interpretados como regra, e ser excepcionado somente em situações que possam afetar o bom nome ou a honorabilidade da empresa (DRAY 2001, 58).

O próprio Evaristo de Moraes Filho, apesar de concluir que a vida privada do empregado é inviolável, já ressalvava que em algumas situações a conduta do empregado poderia ser sujeita ao poder disciplinar da empresa, mas somente quando aquela tivesse reflexos inequívocos no contrato de trabalho ou no seu patrimônio imaterial (MORAES FILHO 1996, 159).

No mesmo sentido, Luisa Riva Sanseverino, citada por Evaristo de Moraes Filho:

“Também a conduta do prestador de serviços fora da empresa e, assim, fora das suas relações contratuais com o respectivo empregador, pode, se bem em casos excepcionais, ser investigada e dar eventualmente lugar à despedida brusca (como, em casos menos graves, a outras sanções disciplinares), quando têm repercussões relevantes, sobretudo em relação ao denominado patrimônio imaterial da empresa interessada.” (MORAES FILHO 1996, 154)

Entendemos como os referidos autores citados, ressalvando, todavia, que a proteção à intimidade e à privacidade somente poderá ser afastada em situações excepcionais, nas quais reste indubitável e concretamente demonstrada a existência de ofensa a algum bem material ou imaterial da empresa, tal como o seu nome ou a sua reputação, e que seja proporcional à necessidade de proteção destes bens jurídicos.


5- Conclusões:

O que propomos com o presente trabalho, ante o exposto, é uma releitura das consequências das condutas do empregado, que não se relacionem com o contrato de trabalho, para que haja a subsunção da norma disciplinar trabalhista.

Dos casos citados acima, não vislumbramos, a princípio, qualquer dano a uma empresa que tenha um empregado que seja ébrio habitual, fora do seu local de trabalho, sem que nunca tenha ido trabalhar alcoolizado ou que a sua função não lhe exponha a qualquer risco acentuado, pelo consumo de álcool ou de alguma outra substância tóxica. Diversamente será o caso de um motorista, ou de um empregado que opere uma máquina que possa causar sérios danos a si ou aos demais empregados, pois o consumo de tóxicos pode ter efeitos colaterais, como a perda de reflexo, por exemplo, e colocar a todos em perigo.

Amériro Plá Rodriguez, citado por Alice Monteiros de Barros, ao analisar o vício como uma conduta socialmente condenável, tida na legislação trabalhista como falta grave, entende que “por mais censurável que possa ser a conduta no plano moral, ela não habilita o empregador a intervir ou tê-la em conta para os efeitos da relação de trabalho, salvo se de alguma maneira influir na relação laboral” (BARROS 2009, 121).

De igual forma, a previsão de prática constante de jogos de azar, como hipótese de justa causa, se trata de evidente e ilícita interferência na vida privada do empregado. Pois, em momento algum se evidência efetivamente que a prática constante de jogo de azar abale a fidúcia do contrato de trabalho ou que haja qualquer dano à imagem da empresa, mas há, em verdade, presunção de que aquele poderá ensejar a ocorrência de outras hipóteses de justa causa e, consequentemente, a quebra de confiança. Ora, o que acarretará a justa causa será a prática dos demais atos faltosos, ou seja, de eventual improbidade para arcar com os custos do vício em jogo, mas não este em si.

Não há como se presumir jure et de jure que toda e qualquer pessoa, que pratique jogos de azar constantemente, tenha predisposição para ser um empregado ímprobo ou que venha a causar qualquer dano ao empregador.

Entretanto, na situação do empregado, que é visto com prostitutas e que trabalha como professor primário, entendemos que há, nesse caso, íntima ligação com a imagem da empresa na qual trabalha (honra objetiva), pois ele passa a ser visto como uma referência a seus alunos, exercendo grande influência, inclusive, na formação moral e ética deles. Assim, é aceitável concluir que muitos pais, cientes da situação, deixarão de matricular seus filhos naquela escola, em virtude da conduta pública de um dos seus professores.

Haverá de se ponderar, nessa situação, quando da análise em concreto, o conflito entre o direito à intimidade e privacidade do empregado e o direito à propriedade da empresa. Lembramos, apenas, que a regra interpretativa deverá ser a de se conceder a máxima valoração aos direitos fundamentais do empregado, para que, excepcionalmente, haja possibilidade de afastá-la.

Adotando igual posição, Alice Monteiro de Barros entende que a incontinência de conduta é configurada pela carência de pudor, unicamente quando exteriorizada em serviço, ressalvado, todavia, o atleta profissional, mais especificamente o jogador de futebol, pois este, devido às peculiaridades do seu contrato de trabalho, permite que o controle do empregador – ou seja, o seu poder diretivo - se estenda além da atividade esportiva. Assim, poderá o empregador, no caso a agremiação desportiva, controlar aspectos pessoais - como alimentação, horas de sono, dentre outros -, como também, aspectos mais íntimos do atleta - a exemplo do comportamento sexual, vestimenta e presença externa -, além de, inclusive, declarações à imprensa. (BARROS 2007, 708-709)

Explica a referida autora que:

“Essas prerrogativas patronais, que em relação a outro empregado não encontrariam respaldo legal, são permitidas, no tocante ao atleta, dado o nexo de causalidade entre elas e o fim do contrato, que é o maior rendimento possível nos espetáculos desportivos. O cumprimento das obrigações contratuais assumidas voluntariamente em troca de dinheiro e prestígio requer um determinado comportamento privado, que poderá ser objeto de controle pelo empregador. Ressalte-se, entretanto, que as prerrogativas patronais não são ilimitadas.” (BARROS 2007, 709)

Conclui-se, portanto, que o poder disciplinar do empregador é limitado pela proteção à intimidade e privacidade do empregado, o que impõe o reconhecimento de que diversas faltas graves tipificadas pela legislação trabalhistas não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, por violar aquelas garantias fundamentais, salvo em casos específicos e excepcionais.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

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BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 3ª ed., rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2007.

—. Proteção à intimidade do empregado. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2009.

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GIGLIO, Wagner D. Justa causa. 7ª edição, rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000.

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MORAES FILHO, Evaristo. A justa causa na rescisão do contrato de trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1996.

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Notas

[1] Evaristo de Moraes Filho afirma que: “A subordinação hierárquica ou jurídica que deve o empregado ao empregador se refere única e exclusivamente às condições técnicas de serviço, diz respeito somente ao exercício e desempenho da tarefa contratada inicialmente, dentro dos limites da empresa e durante o horário de expediente. (...). Fora disso, é o empregado livre de dispor da sua vida privada, tornando-se um cidadão revestido dos mesmos direitos e deveres do seu empregador perante a sociedade e a sua família.” (MORAES FILHO 1996, 155)

[2] Peretti-Griva, citado por Evaristo de Moraes Filho, leciona que, como a subordinação jurídica se restringe ao local de trabalho, não se pode admitir a censura morum fora daquele (MORAES FILHO 1996, 156) e Wolfgang Däubler, citado por Sandra Lia Simón, afirma que “a proteção da personalidade do trabalhador exige também que as obrigações derivadas da relação laboral terminem ao sair do centro de trabalho: o empresário não deve interromper o empregado durante seu tempo livre, a menos que aconteça o caso de que ele esteja comprometido de forma lícita para trabalhar sob prévia chamada telefônica. Portanto, o trabalhador pode visitar livremente seus amigos e contrair núpcias com quem queira e quando deseje. Pode fazer esporte, passear ou também dedicar-se aos seus passatempos favoritos como melhor lhe convenha” (SIMÓN 2000, 178).

[3] Brasil. Tribunal Superior do Trabalho. 4ª turma. AIRR - 813357-23.2001.5.02.5555, Relatora Ministro: Milton de Moura França. Data de Julgamento: 28/05/2003. Data de Publicação: DJ 13/06/2003.

[4] Não se estar aqui se referindo à justa causa por condenação criminal do empregado, passada em julgado, pois o que a justifica é a impossibilidade de ele trabalhar.

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Sobre o autor
Newton Cunha de Sena

Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIFACS. Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Juiz do Trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENA, Newton Cunha. Faltas não relacionadas ao trabalho: violação à privacidade e intimidade do empregado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3393, 15 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22809. Acesso em: 25 abr. 2024.

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