Resumo: O presente trabalho pretende analisar o princípio da praticabilidade tributária, em suas concepções teóricas, segundo as mais diversas correntes de pensamento, e em sua aplicação prática. Para tal, realiza-se uma digressão até os mais basilares fundamentos da praticabilidade, ainda nas noções de ‘tipo’ e modo de pensar ‘tipificante’, no intuito de posicioná-lo dentro da ciência do Direito. Tem-se ainda, como objeto de estudo, as diversas perspectivas de aplicação da praticabilidade: seja na lei, nos atos administrativos ou nos atos jurisdicionais. O estudo, na sequência, visa dissecar seu relacionamento com os demais princípios constantes no ordenamento jurídico brasileiro, posicionando-o no meio desses e buscando seu limite de atuação. Faz-se ainda uma correlação entre o princípio da praticabilidade e as regras-matrizes de incidência tributária, de modo a observar a forma como essa também age como limitador a sua aplicação. Por fim, a intenção desse trabalho é observar alguns dos principais casos de aplicação da praticabilidade, observando, com o arcabouço jurídico trabalhado anteriormente, se os limites e fundamentos jurídicos da praticabilidade vêm sendo observados e respeitados. Dessa forma, ter-se-á uma base suficiente para analisar, por fim, se o princípio da praticabilidade, no geral, tem sido aplicado de forma correta e, ainda, se é válido que tenha continuidade nos moldes em que é praticado.
Palavras-chave: Direito tributário, Praticabilidade tributária, Princípios jurídicos, Regra-matriz de incidência tributária, Instrumentos úteis à praticabilidade.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 PRATICABILIDADE TRIBUTÁRIA. 2.1 CONCEITO. 2.1.1 Concepção Lógico-jurídica. 2.1.2 Concepção Principiológica. 2.1.3 Concepção Ligada à Competência Tributária. 2.2 DIREITO TRIBUTÁRIO E TIPO. 2.2.1 Tipicidade na Doutrina Alemã e Nacional. 2.2.2 Modo de Pensar ‘Tipificante’. 2.2.3 Tipicidade no Direito Tributário Brasileiro. 2.3 PRATICABILIDADE E SUA APLICAÇÃO. 2.3.1 Praticabilidade na Lei. 2.3.2 Praticabilidade nos Atos Administrativos. 2.3.3 Praticabilidade nos Atos Jurisdicionais. 3 LIMITES À PRATICABILIDADE TRIBUTÁRIA. 3.1 A PREVISÃO DAS REGRAS-MATRIZES DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA. 3.2 A CLASSIFICAÇÃO DOS TRIBUTOS. 3.3 A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS. 3.4 AS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. 3.4.1 Princípios Jurídicos. 3.4.1.1 Princípio da isonomia e capacidade contributiva. 3.4.1.2 Princípio da razoabilidade. 3.4.1.3 Princípio da segurança jurídica. 3.4.1.4 Princípio da legalidade. 3.4.1.5 Princípio republicano. 3.4.1.6 Princípio da eficiência. 3.4.1.7 Princípio da moralidade. 4 INSTRUMENTOS DE APLICAÇÃO DA PRATICABILIDADE. 4.1 ABSTRAÇÕES GENERALIZANTES. 4.1.1 Presunções. 4.1.2 Ficções. 4.1.3 Normas de Simplificação. 4.1.4 Cláusulas Gerais. 4.2 PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO TRIBUTÁRIA. 4.3 MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS TRIBUTÁRIOS. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. BIBLIOGRAFIA.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende analisar o princípio da praticabilidade tributária, sob todos os seus aspectos teóricos, desvendando seus fundamentos jurídicos e bases conceituais e, na sequência, aclarar quais os demais princípios jurídicos que com ele interagem e lhe impõem limitações, nos moldes da ‘colisão de princípios’, largamente estudada pela doutrina pátria e estrangeira. Remonta-se a esses fundamentos e limitações jurídicas a fim de analisar, por conseguinte, as principais situações práticas de aplicação do princípio da praticabilidade e sua legalidade.
No primeiro capítulo, busca-se atentar aos aspectos teóricos do princípio da praticabilidade. Para isso, analisam-se suas concepções lógico-jurídica, principiológica e relacionada com a competência tributária. Na sequência, uma observação da doutrina estrangeira faz-se necessária no intuito de sanar um vício do direito pátrio: a errônea concepção de ‘tipo’. Por fim, faz-se a distinção entre a aplicação da praticabilidade na lei, nos atos administrativos e jurisdicionais.
No segundo capítulo, a intenção é encontrar os limites à aplicação do princípio da praticabilidade. Para tal, atenta-se às noções de competência tributária, tipos de tributos e regra-matriz de incidência tributária enquanto limitadores da atividade legiferante, alcançando, finalmente, o principal limitador do princípio objeto deste estudo: os demais princípios constitucionais e tributários e seu embate.
A partir daí, tem início o terceiro capítulo, em que serão confrontados os fundamentos jurídicos da praticabilidade, suas limitações legais e sua efetiva aplicação no Direito brasileiro. Com isso, será possível observar se a efetivação desse princípio tem atentado aos demais corolários do direito nacional, bem como de seus próprios fundamentos jurídicos
A intenção deste trabalho, finalmente, é a de tomar um posicionamento frente à efetividade da praticabilidade, observando se, nos moldes como vem sendo aplicada, é válida ao ordenamento jurídico nacional ou se a concepção do legislador, a seu respeito, deverá ser modificada.
2 PRATICABILIDADE TRIBUTÁRIA
São de Hans Kelsen as palavras que caracterizam a convivência humana pelo fato de sua conduta ser reciprocamente regulamentada. Segundo ele, a sociedade “é a convivência ordenada ou, mais exatamente, a sociedade é o ordenamento da convivência de indivíduos”[1].
Logo, a complexidade das relações sociais que permeiam o mundo contemporâneo tem refletido, de forma bastante clara, no Direito positivo. Isso porque o Direito, enquanto construção social assentada em determinado tempo e espaço, tende a acompanhar a evolução socioeconômica de seu objeto: a sociedade na qual está inserido.
Assim, se a era moderna tem contemplado seus habitantes com uma infinidade de possíveis relações sociais e, por conseguinte, jurídicas, tal fato tem se mostrado um enorme desafio ao Direito positivo: simplificar um sistema jurídico que, ao mesmo tempo, busca refletir uma sociedade cada vez mais complexa. Nesse sentido, como leciona Regina Helena Costa[2]
A complexidade do sistema jurídico, reflexo da complexidade socioeconômica, aliada à descrença da sociedade e à ausência de regras, características da era pré-moderna, acarreta, ao mesmo tempo, a necessidade de simplificação.
Na definição de Niklas Luhmann, essa complexidade da sociedade moderna “significa que sempre existem mais possibilidades do que as que se podem realizar”, emergindo o Direito como um “sistema dinâmico, funcionalmente diferenciado, em evolução permanente no seio da sociedade, e que age como redutor dessa complexidade”[3].
Evidente que, diante dessa complexa e em constante mutação realidade, há que se elaborar meios de efetivar a aplicação do Direito. Ora, sendo esse um instrumento de regulação social, encontra-se em sua essência a eficácia, e não somente edição, de suas normas.
Nesse sentido, Roberto Wagner Lima Nogueira defende que “o direito não pode ignorar a realidade sobre a qual se aplica”[4], ao passo que Alfredo Augusto Becker afirma que “a regra jurídica somente existe (com natureza jurídica) na medida de sua praticabilidade”[5], defendendo, ainda, que “o direito positivo não é uma realidade metafísica existindo em si e por si; a regra jurídica não é um fim em si mesma, mas um instrumento de convivência social”[6] (grifos no original).
Ressaltando a importância da efetividade do direito, Becker[7] ainda esclarece que
Todo o esforço do legislador consiste precisamente em criar este instrumento de ação social, moldando (transfigurando e desformando) a matéria-prima (‘dados’ e diretrizes), oferecida pelas ciências (inclusive pela ciência jurídica), ao melhor rendimento humano [...] O direito positivo não se mantém em estado de ‘ideal descarnado’, pois o direito positivo só existe referindo-se à realidade social. A regra jurídica nasce na oportunidade de conflitos e situações sociais em que o Estado quer intervir. A regra jurídica deve ser construída não para um mundo ideal, mas para agir sobre a realidade social. Não se pode conceber outro direito positivo a não ser aquele destinado para este mundo onde nós vivemos.
Ainda nessa seara, importante trazer o magistério de Paulo de Barros Carvalho[8], ao assegurar que
Um ordenamento que não preveja certas situações, que contemple insuficientemente os fatos sociais, não pode pretender realizar os valores que se propõe.
Misabel de Abreu Machado Derzi[9] alerta, ainda, tendo em vista a realidade social brasileira, que a praticabilidade tributária se faz necessária em virtude de que
O emperramento das máquinas administrativa e judicial do Estado são desafios de difícil solução, cada vez mais acentuados em função de fatores como a explosão demográfica brasileira, a conscientização político-jurídica da população, o progresso e as formas e técnicas sofisticadas de tributação [...] tornando prementes as exigências de praticabilidade.
Diante do depoimento de alguns estudiosos do Direito, aclarando-se a atual necessidade de simplificar o Direito, abre-se a discussão para outras e provavelmente mais complicadas situações: a forma como se dará essa simplificação e sua legalidade.
Assim, fundamentada a importância da inserção da praticabilidade tributária no Direito positivo brasileiro, cabe analisar, com maiores detalhes, sua conceituação, fundamentos jurídicos e instrumentos de efetivação.
2.1 CONCEITO
“O Conjunto de meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de fazer simples e viável a execução das leis” e “a totalidade das condições que garantem uma execução eficiente e econômica das leis”; assim fora conceituada a praticabilidade por Hans Wolfgang Arndt e Josef Isensee, dois dos juristas alemães que de forma mais aprofundada estudaram o tema.
Praticabilidade, também conhecida como praticidade, pragmatismo ou factibilidade, pode ser conceituada, nas palavras de Regina Helena Costa, “em sua acepção jurídica, no conjunto de técnicas que visam a viabilizar a adequada execução do ordenamento jurídico”[10].
No mesmo sentido, segundo os ensinamentos de Misabel de Abreu Machado Derzi, quando da atualização da obra de Aliomar Baleeiro, praticabilidade “é o nome que se dá a todos os meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis”[11], ou, ainda, o instrumento que visa “tornar a norma exequível, cômoda e viável”[12].
A praticabilidade é um conceito que, no âmbito tributário, existe há séculos, tendo sido pensado inicialmente por Adam Smith, no ano de 1776. Ensinava o clássico autor que os impostos possuíam quatro cânones: os princípios da certeza, comodidade e economia, no seu sentido formal, e de igualdade, em seu sentido material.
Casalta Nabais[13], citado por Regina Helena Costa, defendia que
Há justificação constitucional para lançar mão das técnicas de simplificação, designadamente da tipificação, já que o legislador está constrangido a generalizar ou estandardizar a fim de tornar a disciplina jurídico-fiscal praticável, sendo-lhe, por conseguinte, permitido escolher, por razões de praticabilidade, bases forfaitaires, em vez dum critério ancorado na realidade da situação individual, satisfazendo-se assim com uma justiça tipificada (Typengerechtigkeit).
Entretanto, não obstante a sintonia encontrada na doutrina do Direito Tributário com relação à conceituação da praticabilidade enquanto “conjunto de técnicas visando à aplicação da norma tributária”, o fato da praticabilidade não se encontrar expressamente prevista no ordenamento jurídico cria divergências com relação ao seu fundamento jurídico.
Dessa forma, à luz da importância de sua conceituação à base desse trabalho, faz-se necessária a abordagem das diferentes concepções criadas pela ciência do Direito tributário, em especial, a doutrina nacional.
2.1.1 Concepção Lógico-jurídica
De acordo com tal definição, encabeçada por José Souto Maior Borges e incipientemente reafirmada por Regina Helena Costa em sua obra, praticabilidade é uma categoria lógico-jurídica, e não jurídico-positiva, de forma que, segundo a autora, “essa noção antecede o próprio Direito posto, correspondendo à exigência do senso comum”[14].
Prevalece, assim, a noção de que a praticabilidade é uma necessidade a ser perseguida anteriormente ao direito positivo, ou seja, quando do processo legiferante faz-se necessária a observância à eficácia da norma proposta, exatamente para que essa não perca sua essência – incidir[15] – enquanto norma costante do Direito positivo.
Diferentemente dessa concepção, outros autores, dentre eles Misabel de Abreu Machado Derzi e Carlos Renato Cunha, tratam a praticabilidade como “típica categoria jurídico-positiva, conquanto sua noção possa ser calcada numa axiologia pré-jurídica”[16].
2.1.2 Concepção Principiológica
Dentre as concepções que incluem a praticabilidade como conceito assimilado pelo Direito positivo, uma delas, criada pela doutrina alemã e apresentada à doutrina nacional por Misabel de Abreu Machado Derzi, conceitua o instituto como um princípio geral e difuso, de forma que “não apresenta formulação escrita, nem no ordenamento alemão, onde se originou, nem no nacional, encontrando-se implícito por detrás das normas constitucionais”[17].
A fim de justificar a classificação da praticabilidade como princípio geral e difuso dentro do ordenamento jurídico pátrio, utiliza a doutrina dois argumentos basilares: i) contém [tal princípio] elevado grau de generalidade e abstração, irradiando seus efeitos sobre múltiplas normas; e ii) contempla valor considerado fundamental para a sociedade, qual seja, a viabilização da adequada execução do ordenamento jurídico, no campo tributário[18].
Regina Helena Costa[19] ainda faz a ressalva de que, por representar um instrumento ao “atingimento dos fins de interesse público”, a praticabilidade mostra-se um desdobramento do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, “[inspirando] o legislador e [vinculando] a autoridade administrativa em toda sua atuação”[20]. Esse último princípio, ainda nas palavras de Regina Helena Costa, pode ser traduzido como a “convivência harmônica entre a adequada realização da arrecadação tributária e o respeito aos direitos dos contribuintes”[21].
Apresentando-se como reflexo do crescimento de importância dos princípios no Direito, obra do Pós-positivismo, como ressaltado por Luis Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos e parafraseado por Regina Helena Costa, vê-se a forma como a função social do direito e sua hermenêutica ganham destaque na ciência do Direito contemporânea e no próprio Direito positivo.
Nesse sentido, afirmam Barroso e Barcellos[22] que
O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética (grifos no original).
Assim sendo e, partindo de tal concepção, a Praticabilidade coloca-se como um princípio de Direito, ou uma ‘sobrenorma’, “[orientando] a interpretação e a aplicação das demais [normas], sinalizando seu alcance e sentido [e] a cuja plasticidade devem se amoldar toda a interpretação e aplicação efetuadas no campo do Direito”[23].
A Praticabilidade ganha, dessa forma, enorme importância na interpretação de todo o sistema jurídico tributário, pelo fato de que, nas palavras de Luis Roberto Barroso, “o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, [devendo] começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo [...] ao mais específico”[24].
Cabe lembrar que, enquanto princípio, caracteriza um limite à Praticabilidade sua relação de coexistência com os demais princípios do ordenamento jurídico nacional, como será retratado mais detalhadamente adiante. Em que pese as normas sejam aplicadas numa relação de validade ao caso concreto, os princípios jurídicos não conflitam, mas colidem, observando-se no caso concreto a “dimensão de peso” a ser dada a cada um deles e, por conseguinte, fazendo-se prevalecer algum em detrimento, ainda que não por completa mitigação, de outros[25].
Na prática, como define Misabel de Abreu Machado Derzi[26], em obra de Aliomar Baleeiro
A praticabilidade afeta, em primeiro lugar, ao Poder Legislativo. A norma legal se utiliza, já o notamos, de abstrações generalizantes, esquemas e conceitos. Ela usa tipos e conceitos não só por razões de segurança, mas, em muitos casos, para viabilizar a execução de seus comandos. [...]
Mas a praticabilidade também atinge o Poder Executivo, especialmente naquelas normas que se destinam a possibilitar a execução em massa das leis. [...] Exatamente a propósito da administração de massa, tem-se colocado, na atualidade, em especial no Direito alemão, o modo de raciocinar ‘tipificante’”.
Cabe ressaltar que, em que pese a praticabilidade tenha sido concebida como mera forma de simplificação na execução das leis fiscais, ainda nos incipientes cânones de Adam Smith, sua formulação ganhou corpo durante os séculos de estudo e análise.
Casalta Nabais[27] defende essa mudança de paradigma da praticabilidade, dizendo que
A aplicabilidade do princípio da praticabilidade transcende, hoje, suas origens economicistas, norteadas pela busca de uma maior produtividade com o menor custo. Ostenta atualmente o princípio uma dimensão axiológica, que se prende ao princípio da isonomia e ao valor da justiça, na medida em que o legislador tributário, ciente de que não é onipotente, busca a simplificação, por meio da adoção de mecanismos capazes de captar toda manifestação de riqueza por ele considerada relevante.
Regina Helena Costa faz importante ressalva ao apontar como inegável a natureza técnica do princípio da praticabilidade, não podendo ser colocado no mesmo patamar de princípios éticos, basilares de todo ordenamento jurídico nacional, como justiça e moralidade, ainda que não se despreze sua importância[28].
Observada a concepção que mais adeptos possui dentre os estudiosos do tema, passa-se, agora, à análise de recente e vanguardista concepção. Nessa, como se verá, a praticabilidade é instalada na seara da competência tributária.
2.1.3 Concepção Ligada à Competência Tributária
Antes de adentrar à concepção que posiciona a praticabilidade na seara das competências tributárias, há que se comentar, ao melhor entendimento da questão, o posicionamento quanto à criação de tributos já na Constituição da República Federativa do Brasil. E, para tal, dá-se foco a artigo do prof. José Roberto Vieira, explicitando de forma bastante clara a moldura constitucional instituída a alguns tributos pelo legislador originário.
Segundo Vieira, a Constituição não tem a mera função de distribuir competências tributárias aos mais vários entes do Estado, mas sim, e concedendo extrema importância a tal concepção, de criar uma verdadeira “moldura” constitucional aos tributos, ou aquilo que se convencionou chamar de “tributo mínimo”. Vieira[29] afirma tal ideário categoricamente em sua obra, ao lecionar que
Ao discriminar as competências tributárias, o legislador da Carta Magna não se restringiu a mencionar o nomen juris dos tributos, mas já estabeleceu algo de sua hipótese de incidência, pelo menos do núcleo de seu critério material.
E complementa o Mestre
Diante da atribuição constitucional de competência tributária, já dispomos de norma que desenha o perfil mínimo de um tributo, outorgando-lhe, no menor grau possível, uma inquestionável identidade. [...] Ora, se tributo é norma, como já reconhecemos, em companhia de larga e respeitável doutrina, perante tal norma constitucional, é inevitável concluir: a constituição criou tributo.
Ressalvada a importante noção de que a Constituição cria, sim, tributos, ao estabelecer o tributo mínimo, ou seja, aquele molde constitucional mínimo a ser respeitado pelo legislador infraconstitucional quando da positivação tributária, possibilita-se a análise da supracitada concepção acerca da praticabilidade tributária.
Paulo de Barros Carvalho estabelece que competência tributária é, dentre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, aquela que possibilita a produção de normas jurídicas sobre tributos[30]. Entretanto, vinculada à ideia exposta de que um ‘tributo mínimo’ já se encontra no texto da Constituição, o legislador deve, necessariamente, respeitar essa pré-estabelecida ‘moldura’ constitucional dos tributos.
Para Roque Antônio Carrazza, essa ‘moldura’ já aponto “a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível”[31], definindo, para tanto, que tais critérios devem ser observados pelo legislador, preenchendo tão-somente as lacunas deixadas pela Constituição.
E é nesse ‘preenchimento das lacunas’ que se encontra, para Carlos Renato Cunha, a praticabilidade tributária. Não abandonando a ideia de tratar-se de um princípio, o autor define que a discussão acerca da praticabilidade encontra-se intimamente ligada aos limites de atuação do agente competente quando da expedição da norma jurídico-tributária[32]. Para elucidar melhor a questão, importante transcrever esclarecedora passagem da obra de Cunha[33], definindo que
Dentro da moldura criada pela norma de competência tributária, pode a autoridade competente agir, expedindo novas normas. Se há trechos da moldura em que não há dúvida sobre a licitude da ação, e se há trechos, aqui, fora da moldura, em que há certeza sobre a ilicitude dela, há, outrossim, um campo de penumbra, de dúvida sintático-semântica, sobre os limites de atuação do legislador em sentido amplo.
Utilizando-se dos termos do próprio autor, a praticabilidade tributária se encontra quando, na intenção de criar mecanismos de simplificação da exequibilidade da norma tributária, o legislador transita por essa zona de penumbra, buscando, num cenário ideal, encontrar um ponto convergente entre a praticabilidade e a estrita legalidade da ‘moldura’ constitucional.
A praticabilidade, portanto, para Carlos Renato Cunha [34], caracteriza-se como
Uma classificação científica das normas de competência tributária, retirando do gênero uma classe, ligada à ideia de simplificação da execução da norma jurídica hierarquicamente superior.
Como demonstrado anteriormente, as concepções acerca da natureza jurídica da praticabilidade são divergentes, ainda que, de forma pacífica, seu escopo e instrumentos de aplicação sejam entendidos de forma semelhante pela doutrina.
Tendo sido tratado de forma pormenorizada quando do início do trabalho, o objetivo da praticabilidade, em apertada síntese, é garantir a exequibilidade e simplificar os meios de aplicação da norma tributária, ao passo que, ainda não tratados aqui, os instrumentos para atingir tal fim são variados.
Segundo classificação de Regina Helena Costa, os instrumentos de viabilização da praticabilidade tributária são as chamadas abstrações generalizantes, abarcando aí as presunções e ficções, bem como os conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, normas em branco e normas de simplificação[35].
Tendo em vista a necessidade de análise detalhada de cada um desses institutos no corpo deste trabalho, cabe, antes de dar continuidade à análise da praticabilidade, observar os estudos acerca de ‘tipo’ e o modo de raciocinar ‘tipificante’, fundamentais à efetivação da praticabilidade.
2.2 DIREITO TRIBUTÁRIO E TIPO
Regina Helena Costa, parafraseando Fernando Sainz Moreno, observa que “não existe o Direito sem a linguagem, da mesma maneira que não existe pensamento fora da linguagem”[36]. A importância da linguagem jurídica, tanto em seus aspectos descritivo e prescritivo[37], já foi alvo de inúmeros debates na doutrina nacional e estrangeira, pacificando-se o entendimento de que se trata de um dos mais relevantes aspectos do Direito.
Isso porque, como ensina a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, “o direito se instrumentaliza por meio da linguagem, e as limitações desta vão se refletir diretamente na possibilidade da concretização de seus objetivos”[38].
Daí a importância em se estudar o modo de pensar ‘tipificante’, utilizado no Direito tributário e possuidor de grandes reflexos nesse estudo.
Diante dos instrumento utilizados para a efetivação do escopo a que se propõe a praticabilidade tributária, citados acima, resta a indagação acerca desse modo de raciocinar ‘tipificante’ e sua implicação no Direito tributário. Comparado muitas vezes com o Direito penal, pela utilização de tipos fechados e do apego à estrita legalidade, a edição de normas abertas cria um impasse na doutrina.
Ora, há que se falar em conceitos abertos na seara do Direito tributário? A resposta é positiva e, fundamentado por estudiosos do Direito, ver-se-á o porquê.
2.2.1 Tipicidade na Doutrina Alemã e Nacional
Misabel de Abreu Machado Derzi, em seus pioneiros estudos tendo como objeto o ‘tipo’ no Direito, cita que a expressão fora cunhada, pela doutrina alemã, tendo em vista três formas de utilização.
A primeira, observada como uma nova metodologia para o direito, em contraponto ao modo de pensar conceitual, pautado na rigidez e exatidão, busca dar cientificidade ao Direito e possibilitar sua aplicação ao caso concreto.
A segunda forma de uso da expressão diz respeito ao conceito de Tatbestand, no original, opostamente à essência da própria expressão, como conceito rígido e delimitado, a ser observado mais atentamente na sequência do estudo.
E a terceira, o conceito de ‘tipo’ a ser empregado no Direito tributário que, embora lesivo à noção de legalidade estrita[39], visa facilitar à Administração pública a exequibilidade da norma tributária[40].
A construção de ‘tipos’, uma das formas de cognição da realidade no raciocínio humano e utilizada como meio de expressão do Direito, ao contrário do que se acredita, possui uma fundamental característica: “sua estrutura aberta à realidade, flexível, gradual”[41].
Misabel Derzi, utilizando-se dos pioneiros estudos acerca do tema advindos da doutrina alemã, aborda de forma extremamente clara os motivos pelos quais a noção de ‘tipo’ fora incorporada de forma equivocada na doutrina nacional e estrangeira. Em passagem de sua obra, Misabel Derzi[42] justifica que
O tipo, embora conservando o aspecto simultâneo de abstração e de concreção que lhe é inerente, aquele meio-termo entre o individual e o concreto a que se refere Larenz, direcionou-se em caminho diverso nas ciências especiais do direito, sobretudo no direito penal. A tendência classificatória do direito, exacerbada pela necessidade de segurança jurídica, transformou e tende a transformar tipos em conceitos fechados, classificatórios.
Essa concepção errônea acerca do conceito de ‘tipo’ se dá, em grande partida, pela forma deturpada como fora incorporada, à doutrina nacional, a doutrina alemã a respeito da matéria. O exemplo mais claro disso, explicitado por Misabel de Abreu Machado Derzi em sua obra, pioneira nessa seara na doutrina pátria e que será observada de forma pormenorizada mais adiante neste estudo, é o termo Tatbestand, traduzido à ciência nacional, frise-se, de forma equivocada, para fato gerador ou hipótese[43].
Tal expressão - Tatbestand - cunhada pela doutrina alemã para designar o conceito determinado e designador da matéria penal, cerrado por natureza, fora trazido para os sistemas jurídicos e íbero-americanos como referencial para conceito diverso. E, assim, da forma como disposta por Misabel Derzi[44]
Identificar tipo a Tatbestand ou fato gerador é reduzir indevidamente seu alcance, sentido e acepção […], [sendo utilizado] em acepção diversa e contraditória àquela montada na lógica.
[Isso porque] como sinônimo de Tatbestand, de fato gerador ou hipótese, o impropriamente chamado tipo não é uma ordem gradual, uma estrutura aberta, mas, ao contrário, um conceito que guarda a pretensão de exatidão, rigidez e delimitação (em especial, no dirieto penal).
Tal inexatidão doutrinária acarretou grande confusão na doutrina nacional com relação ao tema. Tornou-se unanimidade, durante certo período, a noção de que tipicidade no Direito significava conceitos fechados e determinados, acarretando, nos estudos mais recentes, duras críticas.
O ‘tipificar’, em seu sentido técnico, como define Misabel de Abreu Machado Derzi, “não é estabelecer rígidos conceitos de espécies jurídicas, baluartes da segurança jurídica”[45]. Ao contrário, como se verá, é instrumento que possibilita ao Direito características de flexibilidade e mutação.
Porém, ainda que a transcrição equivocada da ciência alienígena tenha atrasado os estudos pátrios, em boa hora a Professora soube aclarar a situação. Passa-se, portanto, à verificação de sua valiosa contribuição nesse campo da ciência do Direto
2.2.2 Modo de Pensar ‘Tipificante’
Na verdade, o que fora criado pela doutrina alemã era considerada uma concepção completamente diferente de ‘tipo’. Aquilo que Misabel Derzi chamou de ‘modo de pensar tipificante’ também pode ser classificado, segundo a mestra, como uma ‘administração simplificadora da lei’. Essa técnica, desenvolvida pela Administração, em especial a tributária, objetiva a simplificação da execução das leis tributárias, escopo da praticabilidade[46].
Esse modo de pensar define-se, portanto, como uma “generalização que considera a média dos casos ou o tipo frequente, tendo como base as circunstâncias normais ou usuais […] com abandono das diferenças individuais relevantes do ponto de vista jurídico”[47]. Caracteriza-se, assim, para Derzi[48], como um
Expediente que, desprezando as diferenças individuais na aplicação da lei, cuja apuração, em cada caso concreto, embora legalmente obrigatória, seria excessivamente onerosa ou difícil para a Administração, erige padrões ou médias para cálculo do tributo.
Regina Helena Costa, ao estudar obra de Misabel Derzi, relembra que as diversas formas de utilização do conceito de Tipo, na doutrina, encontra uma caracterísica comum: o “sentido amplo de abstrair as particularidades individuais, para colher o que é comum ou repetitivo”[49]. Porém, as confusas criações doutrinárias acabam por circundar de complexidade o conceito de ‘tipo’. As diferenças entre suas formas de aplicação, assim, são notáveis, demarcando Misabel Derzi[50] que
Como ordem, o tipo se opõe a conceito classificatório, pois não contém nota rígidas, mas graduáveis; um conjunto não delimitado, onde a ideia de totalidade é primacial. Como suposto fático da norma (Tatbestand), é visto, embora equivocadamente, como conceito que delimita rigidamente a espécie, à qual serão atribuídas consequências também específicas. Perdem-se, então, a graduabilidade a a totalidade inerentes ao tipo. E, enfim, como parâmetro criado para execução simplificado da lei, é conceito rígido, fixo, não-fluído, que reformula ou reduz o clássico princípio da legalidade”.
Tendo feita tais distinções e aclarando a controvérsia existente nas diversas formas de utilização do conceito de ‘tipo’, Misabel Derzi, com especial cautela e rigor técnico, trata da questão terminológica, classificando, assim, as diversas formas de ‘tipo’.
Encontram-se no Direito, segundo a classificação da autora, os ‘tipos’ em sentido impróprio e os ‘tipos’ propriamente ditos (ou apenas tipos). Os primeiros dizem respeito aos conceitos classificatórios, como tratado anteriormente, caracterizados pela limitação e rigidez, ao passo que os ‘tipos’ são, na sua forma ideal, como preconizada pelos alemães, abstrações generalizadoras fluídas, colhendo, através das características comuns, nem rígidas, nem limitadas, a noção de totalidade que se pretende[51].
Abordada a construção doutrinária pátria acerca do conturbado conceito de ‘tipo’ e ‘tipicidade’, cabe analisar a evolução, especificamente no Direito tributário, da aplicação de tal ideário.
2.2.3 Tipicidade no Direito Tributário Brasileiro
Os primeiros estudos referentes à ‘tipicidade’ aplicada ao Direito tributário, no Brasil, devem-se aos estudos de Alberto Xavier, Yonne Dolácio de Oliveira e Misabel Derzi. Como faz questão de relembrar Regina Helena Costa, o entendimento atual acerca das ideias de ‘tipo’ e ‘tipicidade’ é herdeiro da teoria da tipicidade fechada, formulada por Alberto Xavier em monografia intitulada Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, publicada em 1978[52].
Partindo do princípio de que a ‘tipicidade’ deriva do princípio da legalidade, o mestre português afirma que aquela constitui “expressão mesma deste princípio quando se manifesta na forma de uma reserva absoluta da lei, ou seja, sempre que se encontra construído por estritas considerações de segurança jurídica”[53].
Alberto Xavier, em obra publicada posteriormente à criação de sua teoria, explica que o princípio da tipicidade ou da reserva absoluta de lei possui como corolários o princípio da seleção, o princípio do numerus clausus, o princípio do exclusivismo e o princípio da determinação ou tipicidade fechada.
O princípio da seleção vedaria a utilização de conceitos ou cláusulas gerais, devendo, ao contrário, pautar a edição de tributos em “uma tipologia, isto é, devem ser descritos em tipos ou modelos”[54].
O princípio do numerus clausus, especificação do anterior, determinaria que a “tipologia tributária é taxativa”[55], não podendo incidir o tributo sem que todos os elementos constantes de seu ‘tipo’ fossem abarcados no fato jurídico tributário.
O princípio do exclusivismo formula a ideia de que os elementos constantes da hipótese de incidência tributária não são somente necessários, mas suficientes à incidência, sendo o regime tributário, pois, “de uma tipicidade fechada (na terminologia de Larenz), enquanto não admite quaisquer elementos adicionais não completamente contidos na descrição normativa”[56].
O princípio da determinação ou tipicidade fechada, por sua vez, determina a formulação de conceitos determinados na seara do Direito tributário, “limitando-se o órgão aplicador à mera subsunção do fato ao tipo tributário, […] vedando conceitos indeterminados”[57].
Finaliza sua análise, baseado nas noções vistas anteriormente, determinando que o princípio da tipicidade tem como essência a proibição da inversão de competências, enquanto impede que mecanismos indiretos e oblíquos sejam utilizados à criação normativa pelas funções Executivas e Judiciárias do Estado. Por essa razão, defende que “o princípio da tipicidade da tributação encontra-se estreitamente relacionado não só com o princípio da segurança jurídica, mas também com o princípio da separação dos poderes”[58].
Em rápida síntese, Alberto Xavier[59] traduz o princípio da tipicidade, definindo-o como uma imposição de comandos ao legislador para que formule as leis tributárias
(i) de um modo casuístico ou seletivo, com a consequente proibição de cláusulas gerais (lex stricta); (ii) de modo completo e exclusivo, com a consequente proibição de normas de reenvio (lex completa); (iii) de modo claro e preciso, com a consequente proibição de conceitos indeterminados (lex certa); (iv) de modo expresso, com a consequente proibição da analogia (lex stricta).
Relembrando, ainda, a relação do princípio da tipicidade como expressão dos princípios da legalidade e reserva absoluta de lei, diz Alberto Xavier que, em matéria tributária, os contribuintes possuem um ‘direito subjetivo defensivo’ contra a instituição ou majoração de tributos mediante ‘agressões não constitucionalmente permitidas’, como cláusulas gerais, conceitos indeterminados, delegação normativa, regulamentos, analogias ou poder discricionário[60].
Valendo-se dos ensinamentos do Mestre português, além das obras de Karl Larenz, Karl Engisch e Miguel Reale, a Profª. Yonne Dolácio de Oliveira publicou sua obra, ‘A tipicidade no direito tributário brasileiro’, mencionando as peculiaridades do pensamento tipológico e fazendo a distinção entre ‘tipos’ abertos e fechados.
Segundo ela, os ‘tipos’ fechados não surgem da “especificação de um conceito genérico”, mas sim da própria realidade na qual determinado corpo normativo está inserido. Assim, o ‘tipo’ cerrado resultaria de uma limitação do ‘tipo’ aberto, no sentido de que, abstraindo-se as características eleitas como necessárias, essas não seriam suscetíveis de mutação[61].
Os ‘tipos’ abertos, por sua vez, funcionariam de forma mais flexível, aberta às mudanças sociais pertinentes ao Direito, dando margem à interpretação do aplicador do arcabouço jurídico. Nas palavras de Yonne Dolácio de Oliveira, o tipo é aberto “quando seu repertório pode sofrer acréscimo, de acordo com os valores a que serve o modelo jurídico”[62].
E, após análise dos conceitos e da fundamentação doutrinária acerca dos ‘tipos’, finaliza Oliveira[63], afirmando que
penso que, de tudo o que se viu, não há como negar que o tipo legal tributário é cerrado. E não se trata de defesa de postura positivista. Trata-se, antes, de visão do direito tributário como área muito sensível ao Direito, pois os tributos afetam a atuação do Estado e, direta ou indiretamente, todos os cidadãos.
No decorrer da construção doutrinária brasileira acerca do tema, após as valiosas lições de Alberto Xavier e Yonne Dolácio de Oliveira, a mais rigorosa apreciação do tema ficou por parte de Misabel Derzi, modificando concepções e quebrando determinados paradigmas na área tributária. Não obstante ter-se adentrado às suas lições neste estudo, cabe, aqui, um breve retorno ao seu pensamento, frisando, nas palavras de Misabel Derzi[64], que
segurança jurídica, igual e justiça, permeabilidade às mutações sócio-políticas, estabilidade nas relações jurídico-sociais, praticabilidade… os dilemas que engendram esses princípios são as tensões existentes por detrás do tipo e do conceito classificatório.
Como visto, o emprego dos ‘tipos, como construção doutrinária alemã, a contrário sensu daquilo que fora largamente discutido na doutrina brasileira, não serve tão-somente ao emprego de ‘tipos fechados’, abraçando princípios da reserva na lei e estrita legalidade, mas, antes disso, caracteriza a construção do ‘pensamento tipificante’.
Esse pensamento ‘tipificante, como traduzido por Misabel Derzi da doutrina alemã, consiste num método de aplicação do Direito desenvolvido pela Administração, especialmente a tributária, no escopo de facilitar a execução das leis tributárias. Impossível, diante do exposto pela Autora, não relacionar o ‘pensamento tipificante’ com o conceito e objetivos da própria praticabilidade.
Porém, em que pese o Direito tributário tenha grande prevalência pelos conceitos classificatórios, ou ‘tipos fechados’, Misabel Derzi analisa o corpo normativo tributário e conclui pela existência de resíduos ‘tipológicos’, explicitando, ainda, a importância de tais construções dentro do Direito tributário, em especial com relação aos princípios que servem ao pensamento ‘tipológico. Misabel Derzi[65] leciona, em sua atualização à obra de Aliomar Baleeiro, que
A decisão entre tipo e conceito depende, então, não só da distinção entre uma e outra forma de pensamento mas, em especial, da compreensão em torno daqueles princípios a que servem, daqueles valores que, no direito tributário, por detrás dela subjazem.
Ainda nesse sentido, aponta Derzi[66], em sua obra
O tipo propriamente dito, por suas características, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade, o da funcionalidade e permeabilidade às mutações sociais e o da justiça. Em compensação, com o seu uso, enfraquece-se a segurança jurídica, a legalidade como fonte exclusiva de criação jurídica e a uniformidade. O conceito determinado e fechado (tipo no sentido impróprio), ao contrário, significa um reforço à segurança jurídica, à primazia da lei, à uniformidade no tratamento dos casos isolados, em prejuízo da igualdade, da funcionalidade e adaptação da estrutura normativa às mutações sócio-econômicas.
Faz uma ressalva, nessa seara, ao fato de os ‘tipos’ propriamente ditos servirem à isonomia na lei, lembrando, para aclarar o tema, de passagem de Norberto Bobbio, em que se defende que “a igualdade, enquanto imperativo que exige tratamento jurídico uniforme para situações semelhantes, inibidor de exceções e privilégios odiosos, impõe o uso pelo legislador de generalizações e abstrações”[67].
Por fim, não obstante o prejuízo que tenha trazido à doutrina nacional as errôneas construções acerca do ‘tipo’, fechando-se o Direito tributário à utilização tão-somente dos ‘tipos’ em sentido impróprio, não é difícil entender o por quê de ter-se tornado preferência dentre os doutrinadores. Lembra a autora que “a experiência histórica demonstra que a conceituação determinada, especificante e fechada como conteúdo das leis reforça a segurança jurídica, coíbe o arbítrio”[68].
Fato é que a Alemanha nazista, o regime pós-revolucionário russo e o pós-revolucionário brasileiro de 1964, como tratado por Jorge Figueiredo Dias em sua obra, utilizaram-se de conceitos indeterminados, imprecisos e ambíguos com fins escusos. O processo legiferante formal para o caso, ou seja, a utilização das leis, nesses casos, e especificamente no Direito tributário, tornou-se “instrumento raro de veiculação das normas, recorrendo-se, ordinária e abusivamente, aos decretos-lei para a criação e regulação dos tributos federais”[69].
E Derzi[70] finaliza, valendo-se das lições do mestre Norberto Bobbio, no sentido de que
Tipo e conceito fechado são, como abstrações generalizantes, técnicas jurídicas que podem servir tanto à adaptação e transformação como à conservação da estrutura social subjacente. É a técnica, como que Bobbio, a serviço de uma ideologia.
Em sua crítica à construção doutrinária que fora objeto de análise desse estudo nas páginas anteriores, Regina Helena Costa defende que, em que pese a valiosa tese da tipicidade fechada, de suma importância ao desenvolvimento do pensamento jurídico tributário, criada por Alberto Xavier e corroborada por tantos outros doutrinadores, essa “não resiste à crítica diante do radicalismo que estampa. [não resiste, tampouco, por sua fragilidade] a assertiva segundo a qual a lei tributária não pode consignar o emprego de tipos (ou conceitos abertos).[71]”
E, para fundamentar sua opinião, utiliza-se de dois argumentos.
O primeiro diz respeito ao aparente conflito entre os princípios da segurança jurídica e legalidade, corolários dos tipos cerrados, e dos primados de justiça, isonomia e capacidade contributiva, escopos dos tipos abertos e, por conseguinte, da própria praticabilidade. Segundo Regina Helena Costa, ao abraçar a tese de Alberto Xavier estar-se-ia dando total prevalência à segurança jurídica e legalidade frente aos demais, excluindo-se, inclusive, sua observância, ideia refutada e tida como absurda.
E, fechando seu entendimento, defende que a linguagem jurídica “não pode prescindir da adoção de tipos e conceitos abertos, diante da textura aberta que lhe é própria, cuja compreensão tornou-se cediça”[72]. Diz, ainda, que tal realidade jurídica é abarcada diante de disciplinas jurídicas com extrema necessidade de segurança jurídica, como o direito penal, não podendo ser excluída de plano de qualquer seara jurídica.
À tese de Misabel Derzi, suas críticas vão no sentido de que, inobstante essa autora admita a existência de conceitos indeterminados, defende pela sua inutilização. Regina Helena Costa concorda com Misabel Derzi quando essa defende que o Direito tributário é pautado, em maior grau, por ‘tipos’ cerrados, mas vê com bons olhos determinados ‘tipos’ abertos mesmo nessa seara jurídica.
Dentre eles, como dispõe em sua obra, e como será objeto de posterior análise nessa obra, as cláusulas gerais e as normas em branco, “figuras intermediárias entre o conceito fechado e o tipo, são utilizáveis também nesse âmbito, servindo adequadamente à expressão da vontade legislativa”[73].
2.3 PRATICABILIDADE E SUA APLICAÇÃO
Como visto anteriormente, há grandes divergências, dentro da doutrina, dentre as formas de aplicação da praticabilidade. Enquanto José Souto Maior Borges classificou o instituto como elemento “pré-jurídico”, ou seja, mero conceito norteador do processo legiferante, Regina Helena Costa classifica-o como princípio jurídico arraigado em todo o sistema jurídico brasileiro, embasando todo o pensamento legiferante e de aplicação das normas jurídicas. No mesmo sentido principiológico, compreende Carlos Renato Cunha, classificando a praticabilidade Tributária, ainda, como expressão da competência tributária quando da instituição de um tributo, desde que respeitada a ‘moldura’ constitucional dos tributos constantes da própria Constituição da República Federativa do Brasil.
Com relação a essa conceituação, Carlos Renato Cunha analisa a forma como a praticabilidade é aplicada na lei, nos atos administrativos e nos atos jurisdicionais.
2.3.1 Praticabilidade na Lei
Regina Helena Costa assegura, de pronto, em sua obra que, “constituindo a lei ato normativo cujos traços característicos são a generalidade a a abstração, nessa moldura revela-se ainda mais importante a noção de praticabilidade”[74].
O atributo da generalidade assegura que as leis são aplicáveis a todos, indistintamente. Parafraseando Klaus Tipke, Misabel Derzi defende que as “leis que não que não são praticamente exequíveis não podem ser aplicadas igualmente a todos”[75]. Imprescindível citar a lição de Ramponi[76], trazida ao conhecimento pátrio por Alfredo Augusto Becker, dispondo que
As normas jurídicas têm sempre caráter de generalidade porque é próprio do direito (positivo) ser uma regra geral, noutras palavras, é estabelecida pelo Poder Público com relação a todos os cidadãos ou a toda uma categoria deles ou a todos aqueles que se encontrem em certas condições. Idealmente cada um deveria ser posto na especial condição de direito que melhor corresponde à especial condição de fato em que ele se encontra como homem (indivíduo) e como cidadão (membro da sociedade). Realmente tudo isto é impossível: isto requereria um complexo de normas jurídicas para cada indivíduo […] E, não sendo isto possível, a lei tomou conhecimento daquilo que se verifica no maior número de caso [sendo] manifesto na presunções na lei (grifos no origianal).
Já o atributo da abstração define a forma como a lei descreve situações-padrão, criando hipóteses de possível ocorrência dentro de uma realidade social e excluindo as peculiaridades que inviabilizariam sua aplicação. Pautados nesse ideário, René Izoldi Ávila e Humberto Ávila, em sua obra, afirmam que “na lei não se encontram todas as possíveis decisões e que ela não define uma só como correta [afirmando, ainda, que] a lei contém um ‘tipo’ que, ao contrário do conceito, é sempre, em alguma medida, aberto”[77].
Alfredo Augusto Becker ainda defende que, tendo sido criada a regra jurídica como a solução do legislador para resolver determinado conflito social, há que se elaborar, portanto, instrumentos ao perfazimento de tal objeto. Nesse sentido, “a ciência jurídica mostra que a existência de ficção na embriogenia da regra jurídica é muito mais frequente do que se supõe”[78].
Adverte ainda ao estudioso de sua obra a noção de que, tendo sido permeado o momento intelectual e pré-jurídico do legislador pela necessidade de criação de ficções e presunções, essas, “ao penetrarem no mundo jurídico por intermédio da regra jurídica, nele ingressam como verdades (realidades jurídicas)”[79].
Corroborando os ensinamentos do jurista gaúcho, Regina Helena Costa defende ser a lei o instrumento de praticabilidade por excelência, com vista “à viabilização da vontade estatal [e] à realização das diretrizes constitucionais”[80].
Tais instrumentos de viabilização da praticabilidade, na lei, serão observados de forma mais cuidadosa no decorrer desse estudo, analisando-se, também, as demais formas de aplicação da praticabilidade e seus limites e conformidade com as demais normas jurídicas.
2.3.2 Praticabilidade nos Atos Administrativos
Os atos administrativos, apesar de não serem o instrumento por excelência de aplicação da praticabilidade, constituem campo fértil para a obtenção de seus objetivos. E, nessa seara, a praticabilidade mostra-se presente nas próprias características inerentes aos atos administrativos, sendo elas: a presunção de legalidade, de legitimidade e veracidade; a imperatividade e a auto-executoriedade.
Em primeiro lugar, as presunções de legalidade, legitimidade e veracidade fazem com que, o ato administrativo, até que se prove o contrário, traga em seu bojo a noção de que se encontra em conformidade com a lei. Apesar de ser uma construção jurídica, não correspondendo, num momento pré-jurídico, à realidade, tais características, como supra citado, embarcam no âmbito jurídico como normas válidas e integralmente aplicáveis.
A imperatividade torna os atos administrativos aplicáveis, independente da anuência de seus destinatários, tornando muito mais ágil sua execução, ao passo que a auto-executoriedade garante à Administração Pública os meios necessários à aplicação autônoma de seus atos. Como afirma Regina Helena Costa, “se desprovidos de tais características, tornariam impraticável o exercício da função administrativa do Estado”[81].
Além de a praticabilidade estar contida nos próprios atributos dos atos administrativos, a discricionariedade que é concedida ao ente da esfera Executiva também, por muitas vezes, representa um reflexo da praticabilidade. Com relação a esse tema, Regina Helena Costa[82] dispõe que
se um dos fundamentos para a existência da discricionariedade consiste no fato de que o legislador, ao disciplinar determinada situação hipotética, reconhece, por vezes, que o administrador público, por se encontrar diante do caso concreto e, assim, ter o domínio de suas peculiaridades, terá melhores condições de buscar a solução justa a ser aplicada, evidentemente tal proceder revela-se mais prático que a imposição de uma disciplina vinculada, propiciadora do risco de que não venha a alçar a tão almejada justiça.
Porém, ainda que se esteja diante de um poder discricionário do administrador público, a concepção de ‘tipicidade’ em sentido impróprio ainda prevalece, dispondo a forma como deve agir o administrador, por meio dos ‘tipos’ fechados. Assim assegura Heleno Tôrres[83], ao dizer que
O princípio da tipicidade não se limita, pois, a servir apenas como um critério para orientar a função legislativa. Sua eficácia repercute sobre um qualquer ato de produção de norma jurídica, mormente na constituição dos atos de lançamento tributário, quando praticados pela Administração Tributária, de ofício ou no exercício de fiscalizações, mesmo nos casos em que se plica discricionariedade, como instrumento de segurança jurídica para os administrados.
Acerca do tema há, ainda, importante passagem da obra de Misabel Derzi[84], defendendo que
Evidentemente, princípios como permeabilidade às necessidades administrativas e às sociais, comodidade, utilidade e eficiência, prejudiciais à previsibilidade e segurança jurídica, resultam na concessão legal de discricionariedade aos órgãos executores. Tecnicamente, a lei prescreverá condutas e descreverá seus pressupostos em tipos flexíveis, abertos e graduáveis, adaptáveis às circunstâncias do caso isolado. A discricionariedade é campo fértil ao nascimento de tipos, em lugar dos conceitos.
Misabel Derzi, nos anais do 1º Congresso Internacional de Direito Tributário, quando do estudo dos autores alemães, em especial Arndt e Isensee, trouxe ao conhecimento pátrio os fundamentos utilizados por aqueles para justificar como válida a Praticidade nos atos administrativos. Segundo aquela, os principais argumentos eram:
- a defesa da esfera privada, evitando-se a ingerência indevida de órgãos públicos no círculo privado da pessoa;
- a uniformidade da tributação, obtendo-se um tratamento uniforme para todos os fatos, evitando-se que decisões díspares, critérios diferentes e resultados contraditórios sejam adotados; e
- o estado de necessidade administrativo, segundo o qual tais práticas são inevitáveis, à vista da acentuada desproporção entre a incumbência legalmente atribuída à Administração para a execução e fiscalização da aplicação das normas tributárias e a capacidade e os meios disponíveis aos órgãos fazendários para prestar o serviço[85].
Em contrapartida, também Misabel Derzi aponta-nos as objeções tecidas pela doutrina à utilização dos instrumentos característicos da praticabilidade na seara administrativa, sendo eles:
- ofensa à adequação à lei, exigência do Estado de Direito;
- ofensa ao princípio da separação dos Poderes, porquanto tal modo de pensar levaria à retificação e modificação da própria lei, com enfraquecimento do Poder Legislativo;
- ofensa à indelegabilidade de funções, uma vez competir privativamente ao Poder Legislativo disciplinar o tributo;
- ofensa à uniformidade de encargos fiscais e à igualdade, pois, se o legislador tratou o factualmente desigual de modo desigual, de acordo com sua peculiaridade, a Administração converte em igualdade aquilo que é desigual, desprezando as características individuais, juridicamente relevantes; e
- ofensa à capacidade econômica e aos princípio da realidade, já que o direito tributário segue esse princípio e deve atingir as reais forças econômicas do contribuinte[86].
Tecendo sua crítica com relação aos ensinamentos de Misabel Derzi, Regina Helena Costa busca reduzir a praticabilidade que pode ser utilizada pelos atos administrativos exatamente à matéria que pode ser objeto de um ato administrativo, nos limites impostos pela lei. E para isso, define ela[87] que
Para tanto […] é necessário que (i) a execução da lei esteja a cargo do Poder Executivo e (ii) a lei consigne uma certa dose de discricionariedade ao administrador público, conferindo-lhe certo espaço normativo, passível de preenchimento por meio de normas regulamentares.
Quando […] tende a exercer seu poder normativo ou regulamentar inclusive em hipóteses nas quais a lei não lhe defere tal possibilidade, muitas vezes, na tentativa de “aprimorar” o texto legal […] o resultado é sempre desastroso […] em evidente vulneração do princípio da legalidade.
Vê-se, assim, que os estudos são extremamente cautelosos com relação à aplicação da praticabilidade nos atos administrativos. Enquanto se pode pensar que se trata de instituto exclusivo do Poder Legislativo, alguns, como Regina Helena Costa, defendem pela sua preservação nos atos administrativos, desde que respeitados os limites que visam à segurança jurídica e ao respeito à estrita legalidade.
2.3.3 Praticabilidade nos Atos Jurisdicionais
Aclarada a forma como a praticabilidade tributária é aplicada na lei e nos atos administrativos, cabe demonstrar, ainda, sua existência dentre os atos jurisdicionais. Regina Helena Costa atenta à íntima ligação entre a praticabilidade e a noção de Instrumentalidade, princípio dirigente do processo e, por conseguinte, dos atos jurisdicionais.
A autora, utilizando dos ensinamentos do processualista alemão Adolf Wach, afirma que o processo “é meio, e não fim, e, em função disso, se o resultado almejado pelo ato praticado for atingido, ainda que não da melhor forma, torna-se aceitável”[88].
Alude ainda à obra de Cândido Rangel Dinamarco[89], para embasar a praticabilidade nos atos jurisdicionais, quando este afirma que
Falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa, no contexto, falar dele como algo posto à disposição das pessoas com vista a fazê-las mais felizes (ou menos felizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas.
Nesse sentido, assim como tratado na aplicação da praticabilidade na lei e nos atos administrativos, as decisões judicias, quando desligadas da realidade, não cumprem sua função basilar, qual seja, dar uma resposta às demandas sociais. Assim sendo, os poderes instrumentais conferidos aos magistrados mediante autorização legal, que visam à correção de ofício de erros e inexatidões jurídicas, como cita Regina Helena Costa, configuram manifestação da praticabilidade no âmbito processual[90].
Entretanto, essa noção deve ser observada com extrema cautela, não confundindo aquelas funções inerentes à função legislativa na competência judiciária. Dalmo de Abreu Dallari, em sua obra, faz uma alusão a esse problema, citando, inclusive, Yves Lemoine, antigo magistrado francês que cunhou a expressão “o governo dos juízes (pior, talvez, ‘o complô dos juízes)”[91].
Cita a autora, ainda, o princípio da instrumentalidade das formas como manifestação da praticabilidade, parafraseando José Roberto dos Santos Bedaque[92], quando afirma que
Toda vez que o ato processual, não obstante praticado em desconformidade com o modelo legal, atingir seu escopo, a nulidade não deve ser declarada. O princípio da legalidade das formas e a necessidade de observância às regras do procedimento são garantia do resultado do processo. Se este for alcançado, deixa de ter relevância o não-atendimento à forma”.
Ainda no estudo da praticabilidade nos atos jurisdicionais, Regina Helena Costa explicita seu posicionamento frente ao instituto da uniformização de jurisprudência, pautando-se nos incipientes estudos de Misabel Derzi acerca do tema.
Inicialmente, José Marcelo Menezes Vigliar classifica tal uniformização como uma das “garantias do jurisdicionado” de que diferentes teses tenham interpretação semelhante nos mais diversos tribunais aos quais um processo pode ser distribuído[93]. Porém, tal escopo de padronização não pode ser confundido com os mecanismos padronizantes típicos à praticabilidade na lei.
Acerca dessa peculiaridade, Misabel Derzi[94] é bastante enfática, quando diz em sua obra que
não há que se confundir a aplicação da lei em massa, que tem em vista o caso-padrão ou normal, sem atentar para as peculiaridades juridicamente relevantes do caso concreto, com o procedimento de uniformização de jurisprudência, criador do direito sumular.
E, de forma ainda mais pragmática, no sentido de afastar quaisquer dúvidas com relação a diferenças entre os institutos, Derzi[95] afirma que
Uniformiza-se a interpretação, obtida ao exame de casos isolados, mas a súmula, embora projetada para alcançar sentenças futuras, só se entende aplicável aos casos idênticos, vale dizer, àqueles que, depois de investigados, se ajustam ou se subsumem nos mesmos pressupostos legais que nortearam a sua edição.
A súmula, pois, não tem como metas aquelas inerentes ao fenômeno impropriamente chamado de tipificação administrativo-tributária ou de simplificação da execução da lei fiscal, tais como substituir a prova e o exame de fatos, evitar a demonstração da anomalia ou atipicidade do caso isolado, a fim de se viabilizar a execução da lei em massa e de se impedir a elevação dos custas da arrecadação.
Diante de tais afirmações, Regina Helena Costa, em seu estudo da obra de Misabel Derzi, afirma peremptoriamente que as súmulas não possuem o mesmo escopo da simplificação da execução de leis fiscais, e isso se dá exatamente pelo fato de aquelas se formarem ao longo de “decisões iterativas, tomadas em inúmeros casos exaustivamente examinados, na senda da casuística”[96].
Ainda que tal distinção esteja claramente explicitada pela doutrina supracitada, a expressão “simplificação” não é abandonada, com a ressalva de tratar-se de instituto completamente diferente. Se a praticabilidade, especialmente a tributária, opera-se em simplificações abstratas, que visam abarcar casos típicos, a simplificação executada nos atos jurisdicionais visam ao caso in concreto.
Ainda na seara dos atos jurisdicionais, Misabel Derzi lembra ser manifestação da praticabilidade outro instituto largamente difundido na ciência do direito: a coisa julgada.
Enrico Tullio Liebman classifica-a como “a imutabilidade da sentença, bem como de seus efeitos”[97], ao passo que Misabel Derzi[98], em sua atualização à obra de Aliomar Baleeiro, de forma mais extensa, lembra que
À certa altura, sem nenhuma mudança literal da fórmula legislativa, que conserva os mesmo dizeres, altera-se a interpretação que da mesma lei fazem os tribunais, os quais passam a decidir conforme outra interpretação. Surge, assim, sem lei nova como ato emanado do Poder Legislativo, espécie de lei nova proclamada pelo Poder Judiciário. A irretroatividade da lei alcança, portanto, a irretroatividade da inteligência da lei aplicada a certo caso concreto, que se cristalizou por meio da coisa julgada.
O instituto da coisa julgada é necessária garantia de segurança e estabilidade das relações jurídicas como ainda de praticidade, pois tornar-se-ia inviável a aplicação do Direito se, a cada evolução e mutação jurisprudencial, devessem ser rescindidas as decisões anteriores, para que se proferissem novas decisões com base na nova lei, simples nova inteligência da lei.
Sob o risco de incorrer em demasiadas transcrições da obra de Aliomar Baleeiro, com as devidas atualizações da mestra Misabel Derzi [99] nessa seara, as palavras outrora escritas parecem-nos perfeitas, de forma que, ainda sobre o instituto da coisa julgada e a praticabilidade, leciona a autora que
A res iudicata [coisa julgada] é razão de praticidade jurídica e de segurança e, a rigor, a mola que torna possível a evolução jurídica, na busca do Direito mais justo. Está nesse sentido conformada à igualdade (que é, em essência, justiça); é seu necessário complemento evolutivo. O princípio da irretroatividade, visto sob esse ângulo mais amplo, que toca a todos os Poderes, é a garantia que torna exeqüível o desenvolvimento ou o aperfeiçoamento do Direito [observação nossa].
Diante do exposto e, levando-se em conta as críticas realizadas por Regina Helena Costa e Misabel Derzi, a utilização do instituto da praticabilidade na execução da lei é típico do momento legiferante, sendo impróprio às esferas Executiva e Judiciária por configurar “uma descentralização indevida da função legislativa”[100].
O presente estudo, até esta altura, tratou de conceituar a praticabilidade, analisando sua natureza jurídica e, ainda que superficialmente, demonstrando a forma como essa é aplicada no ordenamento jurídico pátrio. Sua aplicação concreta e os institutos que se caracterizam como expressão própria da praticabilidade serão estudados de forma cuidadosa em momento apropriado.
Visando constituir um cabedal teórico sólido à análise de sua aplicação prática, cabe analisar, na sequência, os limites existentes no próprio ordenamento jurídico à expressão da praticabilidade. Tendo sido abraçada a corrente que define a praticabilidade como princípio de direito geral e difuso, encabeçada por Misabel Derzi e dissecada por Regina Helena Costa, sua interação com os demais princípios de direito mostra-se ponto nuclear desse estudo, sendo tratado adiante.