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Notas sobre o fato jurídico tributário.

Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

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01/11/2001 às 01:00
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NOTAS SOBRE O FATO JURÍDICO TRIBUTÁRIO:

Crítica(1) Segunda ao Realismo Lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

Sumário: 1. Fato e evento. - 2. Crítica à distinção entre fato e evento: protocolização circular. - 3. A solução proposta por Eurico M. Diniz de Santi: enunciação do enunciado e enunciado do enunciado. - 4. Fato e evento em Habermas: sobre o plano da ação comunicativa e o plano do discurso. - 5. Conclusão.


1. Fato e evento.

O direito é processo de adaptação social. Tem por finalidade regrar a conduta humana, de modo a permitir vivam os homens entre si, em suas complexas relações intersubjetivas, formando o tecido social. O fenômeno jurídico, desse modo, é fenômeno social e, como produto da atividade humana de tornar controlável a relação eu-tu, nos limites da liberdade de cada um, tem a sua realidade ôntica própria entre os objetos culturais. O direito, desse modo, é produto cultural, e como tal se apresenta para o sujeito cognoscente que lhe deseje conhecer(2).

O agir humano, envolto em suas múltiplas facetas, inclusive relevantes para o direito, se dá no mundo da vida (Lebenswelt), ou seja, no mundo em que estamos vivendo como seres históricos na co-presença dos outros(3). Essa afirmação é fundamental. Para Habermas, a idéia husserliana de mundo da vida (como experiência cotidiana) rompe com a arquitetônica da filosofia transcendental, pois já no caso elementar da percepção de uma cor ou de um objeto, Husserl o analisa dirigindo a atenção não tanto ao objeto mesmo, senão para como vem dado esse objeto, no contexto desde o qual a cor ou o objeto emergem para os que os vêem. De tais ingredientes da situação do objeto, de tais contextos precategorial ou pré-predicativamente concomitantes se compõe o mundo e nele também o observador mundano se encontra já sempre. Segundo Habermas, portanto, referindo-se ao mundo da vida, "Éste nos viene dado en la forma de un saber prereflexivo de certeza aproblemática, como saber holístico de fondo, en el que convicciones de tipo descriptivo, evaluativo, normativo y expressivo se integran unas com otras formando síndrome, y constituye al mundo de la vida com sus coordenadas espacio-temporales como un todo ni objetivado ni objetivable que nos envuelve"(4).

Se uma mulher vem em seu veículo e pára o carro diante um sinal luminoso vermelho, sua atitude de parar o seu automóvel decorre do atendimento aproblemático da norma jurídica, socialmente vivida, de que diante de um sinal vermelho no trânsito, deve o condutor do veículo pará-lo. Se, ao sinal verde, volta a pôr em movimento o seu carro, mais uma vez atende à norma jurídica que dispõe sobre as condutas devidas no fluir do trânsito. Esse agir humano, subordinado a normas jurídicas, dentro de um consenso pré-reflexivo, como nossas ações cotidianas e nossa percepção aprobelmática no contexto em que nossas vidas se dão, como ser-aí (pre-sença), é o que chamamos de mundo da vida, que embora experienciado, não é objetivado nem objetivável: é vivenciado.

Qual a juridicidade desse agir humano aproblemático? Ou seja, os fatos hipotisados em normas jurídicas, que ocorrem na concretude da vida, mas que não geram controvérsia quanto ao seu significado social e, portanto, sobre a respeitabilidade que devam os agentes àquelas disposições, têm de fato algum significado jurídico? Tornando a questão mais clara: a conduta da mulher que pára automaticamente o carro diante de um sinal vermelho, tem algum significado jurídico? Se ela, descumprindo a norma jurídica, ultrapassasse aquele mesmo sinal vermelho, tal conduta teria também algum timbre de juridicidade?

Para Paulo de Barros Carvalho, tais condutas não se revestiriam de adjetivação jurídica. Para demonstrá-lo, parte ele de uma distinção feita por Habermas entre fatos e objetos da experiência. Os fatos seriam os enunciados lingüísticos sobre as coisas e os acontecimentos, sobre as pessoas e suas manifestações. Os objetos da experiência são aquilo acerca do que fazemos afirmações, aquilo sobre o que emitimos enunciados(5). Exemplificando o que entende por fato, reproduz lição de Tércio Sampaio Feraz Júnior, vazada nos seguintes termos: "É preciso distinguir entre fato e evento. A travessia do Rubicão por César é um evento. Todavia, ´César atravessou o Ribicão´ é um fato. Quando, pois, dizemos que ´é uma fato que César atravessou o Rubicão´, conferimos realidade ao evento. ´Fato´ não é, pois, algo concreto, sensível, mas um elemento lingüístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade"(6).

Porém, para a teoria carvalhiana, não é qualquer linguagem que dá facticidade jurídica ao evento. Não bastaria, assim, a linguagem social para transformar um evento em fato jurídico. Para Paulo de Barros Carvalho, "fatos jurídicos não são simplesmente os fatos do mundo social, constituídos pela linguagem de que nos servimos no dia a dia. Antes, são enunciados proferidos na linguagem competente do direito positivo, articulados em consonância com a teoria das provas"(7). Vale dizer, o evento, ainda que tenha suas notas relevantes previstas no antecedente de uma norma jurídica, não seria apenas por isso fato jurídico. Necessário, para ganhar significação jurídica, que o evento fosse relatado em linguagem competente, assoalhada em provas admitidas pelo ordenamento. Pouco importaria fosse um tal evento relatado pela sociedade, ou por diversas pessoas. Apenas ganharia ele a estatura de fato jurídico, após a sua enunciação por um sujeito a quem o direito outorgasse essa competência. Essa a razão pela qual, para a teoria carvalhiana, fato jurídico será tomado como um enunciado protocolar, denotativo, posto na posição sintática de antecedente de uma norma individual e concreta, num determinado ponto do processo de positivação do direito(8).

O uso competente da linguagem, para o direito, no dizer de Paulo de Barros Carvalho, significaria manipular de maneira adequada os seus signos e, em especial, a simbologia que diz respeito às provas, isto é, às técnicas que o direito positivo elegeu para articular os enunciados fácticos com que opera. Desse modo, os acontecimentos do mundo social que não pudessem ser relatados com tais ferramentas de linguagem não ingressariam nos domínios do jurídico, por mais evidentes que fossem(9). Noutro giro, poderíamos expor a teoria carvalhiana como fez didaticamente Joana Lins e Silva: "Sem a linguagem, que confere realidade aos eventos, um acontecimento não relatado não traz nenhuma conseqüência para o mundo. Caso haja o relato do evento por uma linguagem natural, poderá falar-se em fato social, revelando para o mundo as características daquele acontecimento. Mas, ainda assim, tal relato não trará nenhuma repercussão para o mundo jurídico. A linguagem natural não se mostra suficiente para fazer ingressar no mundo jurídico algum dado novo, nem muito menos para desencadear conseqüências jurídicas". Por fim, assere ela: "Qualquer evento pode se tornar facilmente um fato da linguagem social, pois qualquer um é sujeito competente para relatá-lo, mas para se tornar fato jurídico tem que ser relatado por um sujeito a quem o direito outorgue essa competência"(10).

Há uma questão aqui que merece muita atenção, para uma boa compreensão da teoria carvalhiana, a respeito da distinção entre fato e evento, e que não tem sido devidamente observada: o fato seria o evento enunciado, ou seja, seria o evento vertido em linguagem competente, ou seria o enunciado que contém o evento, que lhe dá revestimento lingüístico? Essa questão é importante, como veremos adiante. Partindo da distinção entre texto e significado, vale dizer, entre o plano da literalidade textual e o da significação, perguntamos: o fato é o texto ou o significado, no enunciado /"César atravessou o Rubicão"/? A resposta dada por Alessandra Gondim Pinho é ambígüa. Afirma ela: "Assim, fato é ´aquilo de que se trata´. Quando alguém trata de um assunto, isto é, a ele se refere, faz isso em linguagem, relatando o acontecimento. Por esse caminho, temos o evento como o próprio sucesso e o fato como o acontecimento registrado, o relato em linguagem do evento ocorrido. O fato seria, num sentido figurado, a roupa do evento". E mais adiante aduz: "Dentro do nosso modelo, fato não é sinônimo de evento. O evento é o acontecimento que altera o mundo fenomênico, enquanto o fato é a descrição desse evento"(11). Pensamos, de modo diverso, que o fato não é a descrição do evento, mas sim o evento descrito. O ato de descrição do evento seria o ato de enunciação, vale dizer, o suporte físico da literalidade textual ou a roupa que contém o fato. Vejamos um exemplo, para esclarecer melhor o que queremos dizer: alguém sofreu um acidente de automóvel e faleceu. Um amigo escreve uma carta para seus familiares contando os detalhes do ocorrido, o horário, o local, as circunstâncias todas. O acontecimento real, histórico, seria um evento. Agora, fato seria a carta (suporte físico de significado) ou o acontecimento narrado (o conteúdo da enunciação)? Se levarmos em conta a afirmação de Paulo de Barros Carvalho, no sentido de que "os fatos jurídicos são constituídos por normas individuais e concretas, consoante o modelo dos enunciados conotativos das normas gerais e abstratas"(12), temos que para ele os fatos seriam os acontecimentos narrados (o conteúdo da enunciação sobre o evento). Noutro giro, os fatos seriam constituídos pelo enunciado denotativo, é dizer, seriam produzidos pelo enunciado protocolar, mas com ele não se confundiria. O enunciado denotativo, ao relatar o evento, o transformaria em fato. De conseguinte, por uma questão didática, façamos a distinção entre fato, evento e relato (ou ato de enunciação do evento). No exemplo acima citado, o acidente de automóvel seria o evento; a carta, o relato do evento; e o conteúdo da narração protocolar do evento, o fato. Portanto, para a teoria carvalhiana, entre o evento e o fato haveria, sempre, um ato de enunciação (relato), expedido por uma autoridade competente, como figura intercalar. É bem verdade que o próprio Paulo de Barros Carvalho, por vezes bastas, é impreciso em algumas passagens de sua obra. Há momentos em que ele impropriamente afirma que "Fato jurídico tributário será tomado como um enunciado protocolar...", para logo em seguida precisar os conceitos e dizer que "(...) o fato se constitui no preciso instante em que o enunciado ingressa no sistema do direito positivo, como norma válida (...)"(13). Ou seja, o fato se constitui pelo enunciado (relato), e não, como na primeira locução, o fato será tomado como enunciado. Fato não é o enunciado: é, na verdade, a sua significação, que relata um evento. Afirma ele, noutra quadra: "(...) o instante em que nasce a obrigação tributária é exatamente aquele em que a norma individual e concreta, produzida pelo particular ou pela Administração, neste último caso por meio do lançamento, ingressar no sistema do direito positivo (...)"(14). É dizer, o lançamento (relato, ato de enunciação) produz a norma individual e concreta (fato) ao relatar um evento. Uma coisa é o enunciado protocolar (plano da literalidade textual); outra, a norma individual e concreta (plano da significação, fato).

Essa distinção é embaralhada em ponto culminante da exposição de Paulo de Barros de Carvalho, quando vem a tratar justamente da norma individual e concreta que documenta incidência tributária (capítulo IV do seu livro). Assere ele: "O fato jurídico tributário é constituído por um enunciado protocolar, denotativo, relatando evento pretérito que se consolidou numa unidade de tempo e num ponto do espaço social" E mais adiante arremata: "(...) o relato do acontecimento pretérito é exatamente o modo como se constitui o fato, como esta entidade aparece e é recebida no recinto do direito, o que nos autoriza a proclamá-lo como constitutivo do evento que, sem esse relato, quedaria à margem do universo jurídico. Por outros torneios, o enunciado projeta-se para o passado, recolhe o evento e, ao descrevê-lo, constitui-se como fato jurídico tributário"(15). Ou seja, o relato, a enunciação, constitui o evento em fato. Todavia, a afirmação seguinte, feita por Paulo de Barros Carvalho, borra novamente essa distinção: "(...) o enunciado do antecedente da norma individual e concreta que analisamos se constitui como fato ao reportar-se ao evento"(16). Ora, o enunciado não se constitui como fato: ele constitui o fato (a norma individual e concreta, a significação), reportando-se ao evento. O evento se torna fato através do ato de enunciação (relato, enunciado protocolar).


2. Crítica à distinção entre fato e evento: protocolização circular.

Partindo da definição do fato jurídico como sendo aquele constituído por um enunciado protocolar, denotativo, assoalhado em provas admitidas pelo direito, temos como certo que, para a teoria carvalhiana, o evento ocorrido no mundo apenas ganha significação jurídica se for veiculado através de uma norma individual e concreta, que o relate em linguagem competente.

Para a análise que se seguirá, tomemos de empréstimo um exemplo construído por Paulo de Barros Carvalho "No dia 18 de maio de 1996, autoridade lançadora municipal expede ato jurídico de lançamento tributário do IPTU, dando conta de que, em 1° de janeiro do mesmo ano, fulano de tal era proprietário de bem imóvel situado em certa localidade, no perímetro urbano do Município de São Paulo. Em 25 de maio, o destinatário recebe a notificação do débito do imposto. Segundo as regras da legislação específica, a norma individual e concreta veiculada pelo lançamento ingressa no sistema do direito positivo no dia em que a notificação é recebida por quem de direito. O factum tributário constituiu-se no dia 25 de maio, fazendo nascer, por força da eficácia jurídica (predicado de fato), a correspondente obrigação tributária. Para efeito da constituição do fato e da correspondente relação, pouco importa que o evento por ele referido tenha ocorrido no dia 1º de janeiro. (...) Em termos de existência para o direito, o marco fundamental é 25 de março e não 1° de janeiro. Todavia, para compor o enunciado protocolar, no seu núcleo, e para determinar as alterações de conduta, projetadas no conseqüente da norma individual e concreta, relevantíssima será a data da verificação do evento, não do fato"(17).

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Para a teoria carvalhiana, a propriedade de alguém sobre um imóvel no perímetro urbano do município, no dia 1° de janeiro, seria um evento. Esse evento, concretamente ocorrido (ou não, vez que isso é matéria probatória), estaria previsto, em suas notas relevantes, por uma norma geral e abstrata. No dia 25 de maio, nessa hipótese de viveiro, o proprietário daquele imóvel receberia uma notificação: um documento relatando aquele evento e prescrevendo efeitos (obrigação tributária). O lançamento (ato de enunciação), destarte, relataria aquele evento, constituindo o fato jurídico tributário. Uma coisa, pois, seria a data do evento; outra a data do fato: aquela seria a data do acontecimento no mundo fenomênico; essa, a data em que o evento se constituiria em fato, pela enunciação protocolar (no caso do IPTU, a data do recebimento da notificação).

O evento propriedade (+ espaço + tempo + etc.) seria previsto no descritor da norma geral e abstrata que prescreve o IPTU. Quando esse evento abstrato ocorresse no mundo, para ganhar significação jurídica seria necessário que ele fosse vertido em linguagem competente, é dizer, que uma norma individual e concreta o relatasse através de um enunciado protocolar e denotativo, transformando-o em fato jurídico. Logo, fato jurídico seria o evento enunciado em linguagem competente. O evento seria transformado em fato jurídico pelo ato de enunciação (o lançamento). Assim, o lançamento seria o enunciado protocolar, denotativo, que constituiria o evento (propriedade, etc.) em fato jurídico, assoalhado em provas admitidas em direito. Pelo conseguinte, teríamos: (a) o evento ocorrido em 1° de janeiro; (b) o relato (ato de enunciação) do evento, ocorrido validamente em 25 de maio; e (c) o fato jurídico, produto da enunciação protocolar do evento. Sendo assim, nos surge de plano uma importante indagação: se o evento se torna fato jurídico pelo relato (lançamento), qual o enunciado protocolar que faria jurídico o relato? Ou seja: o relato (ato de enunciação, lançamento), para ser fato jurídico, seria relatado por qual outro ato de enunciação (enunciado)?

Uma coisa é o evento propriedade; outra, o enunciado que o transforma em fato. Esse enunciado protocolar é conteúdo do lançamento (suporte físico, texto, veículo introdutor de norma individual e concreta). Temos, então, um fato do mundo (evento) e outro fato do mundo (enunciado protocolar): o segundo tematiza o primeiro, relatando-o, dando-lhe, através da linguagem competente, realidade jurídica. O ato de enunciação (lançamento), destarte, constituiria o fato jurídico tributário: transformaria o evento em fato através do relato em linguagem competente. Mas de onde proviria a juridicidade do ato de enunciação (relato)?

Sejamos mais claros. Todos os elementos (subjetivo, temporal, espacial, material) previstos no antecedente de uma norma geral e abstrata, quando ocorressem no mundo, seriam meros eventos. Para que fossem reputados jurídicos, esses elementos teriam de ser descritos em linguagem competente através de um enunciado protocolar e denotativo, que narraria aquele evento, transformando-o em fato jurídico. Da mesma maneira que a norma geral e abstrata seria a significação atribuída ao diploma legal (texto, veículo introdutor de normas), a norma individual e concreta (fato) seria a significação atribuída a um enunciado protocolar e denotativo (texto, veículo introdutor de normas individuais, lançamento). Temos, pois, que distinguir - como fizemos acima - o evento, o ato que o relata (ato de enunciação, veículo introdutor, texto) e o produto do relato: o fato (ou a significação jurídica do evento)(18).

Feita essa distinção, é curial que passemos a pesquisar sobre o status jurídico do ato de enunciação (relato). Noutro giro, indagamos: o lançamento seria um fato jurídico? Se a resposta for afirmativa, qual o enunciado protocolar, denotativo, que o juridicizaria? Essas perguntas são muito importantes e merecem atenção. Segundo Paulo de Barros Carvalho, chama-se processo de positivação o caminho percorrido das concepções abrangentes para chegar às proximidades da região material das condutas intersubjetivas, ou seja, iniciando-se por normas jurídicas gerais e abstratas para chegar a normas individuais e concretas(19). Para ele, portanto, é vital o seguinte ponto de sua teoria: "a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta. Uma ordem jurídica não se realiza de modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que os comandos gerais e abstratos ganhem concreção em normas individuais"(20).

A norma geral e abstrata seria veiculada por um texto, ou um documento (suporte físico), que ganharia a sua juridicidade de uma outra norma geral e abstrata de hierarquia superior, que seria o seu fundamento de validade. A norma individual e concreta (fato), ao constituir juridicamente o evento, seria veiculada por um texto, ou documento (suporte físico). De onde, então, proviria a juridicidade do texto que veicula a norma individual e concreta (ou seja, o ato de enunciação)? Há três respostas possíveis: (a) a sua significação jurídica adviria da norma geral e abstrata que a prevê no seu antecedente, atribuindo-lhe efeitos jurídicos; ou (b) a sua significação proviria de um outro enunciado protocolar, denotativo, convertendo-o em fato jurídico; ou, ainda, (c) ele auto-enunciaria a sua significação jurídica, ou seja, ele próprio se constituiria como fato jurídico pela sua própria enunciação.

Para facilitar a nossa exposição, pensemos no lançamento, no exemplo acima exposto. O lançamento tributário veicularia a norma individual e concreta, constituindo o evento ocorrido em 1° de janeiro (propriedade + outros elementos) em fato jurídico tributário. Sabemos que o evento convertido em fato seria aquele previsto na hipótese de incidência do IPTU. Todavia, o lançamento seria, ele próprio, um fato jurídico? Para ser fato jurídico, na teoria carvalhiana, teria ele que ser objeto de um enunciado protocolar e denotativo, que o constituiria de evento em fato. Qual seria esse enunciado protocolar? Seria a decisão de algum recurso administrativo, por acaso interposto pelo contribuinte? E se fosse, qual enunciado protocolar e denotativo constituiria essa decisão administrativa como fato jurídico? Seria, por acaso, a sentença prolatada em algum processo judicial instaurado pelo contribuinte irresignado? E se fosse, qual enunciado protocolar a constituiria em fato jurídico? O Acórdão, lavrado após a interposição de um recurso judicial?

Se admitíssemos essa resposta, haveríamos de admitir que o lançamento, enquanto ato emitente da norma individual e concreta, que converte o evento em fato jurídico, seria ele próprio um evento, que apenas seria fato jurídico se fosse objeto de um outro enunciado protocolar. E, ao admitirmos uma tal proposição, haveríamos de nos defrontar com um absurdo lógico: o fato jurídico (evento vertido em linguagem competente) seria produto de um outro evento (o ato de enunciação: lançamento). Vale dizer: o não-jurídico (evento do lançamento) constituiria o fato jurídico (evento previsto na hipótese de incidência do IPTU, ocorrido no mundo, e veiculado através de um enunciado protocolar e denotativo).

É evidente, desse modo, que o lançamento não obtém a sua juridicidade de nenhum enunciado protocolar. Ao revés, segundo pensamos, o lançamento é fato jurídico porque assim qualificado pela norma geral e abstrata veiculada no art.142 do Código Tributário Nacional, que incide, fazendo-o jurídico, no mundo do pensamento (Pontes de Miranda). De conseguinte, temos que refutar a medula da teoria carvalhiana, segundo a qual apenas seria fato jurídico a significação do enunciado protocolar, denotativo, assoalhado nas provas admitidas em direito. Como essa solução desabonaria toda a construção da teoria glosada, restaria, como solução possível, apelar para uma auto-enunciação do lançamento, com a finalidade de convertê-lo em fato. Noutro giro, restaria à teoria carvalhiana admitir a possibilidade de o evento factualizar-se sozinho: ao invés dele relatar um evento externo, ele se relataria a si próprio, como evento.

Joana Lins e Silva, parece-nos, percorreu esse caminho. Para ela, o lançamento seria o ato administrativo pelo qual a norma jurídica individual e concreta seria inserida no ordenamento jurídico, elaborada a partir da interseção entre a reordenação das significações dos textos legais e dos fatos do mundo. Ou seja, lançamento "é um veiculo introdutor de norma jurídica individual e concreta, mas é, em si mesmo, também uma norma jurídica individual e concreta"(21). É dizer, para Joana Lins e Silva, "(...) sendo a um só tempo ato administrativo e norma jurídica, o lançamento tributário pode ser estudado tanto à luz da teoria dos atos administrativos, como à luz da teoria das normas jurídicas"(22).

Aqui, nesse ponto, resta evidenciada a insuficiência da teoria carvalhiana. A norma jurídica individual e concreta veiculada pelo lançamento - já o dissemos -, constituiria o fato jurídico tributário, ao descrever o fato do mundo (evento) em linguagem competente. Mas há uma pergunta fundamental a ser respondida: qual a norma individual e concreta que constituiria o lançamento como ato administrativo? A explicação dada, em resposta, é absolutamente circular: o lançamento seria um veículo introdutor de norma jurídica individual e concreta, mas, em si mesmo, também seria uma norma individual e concreta. Ora, e qual o fato protocolar que enunciaria essa outra norma individual e concreta (ensimesmada)? Resposta: o próprio lançamento. Mas se assim fosse, teríamos um único ato de enunciação (veículo introdutor de normas), com duas normas individuais e concretas enunciadas (a primeira, que relataria o evento previsto na hipótese de incidência, convertendo-o em fato jurídico tributário; e, a segunda, que relataria o próprio texto do qual é significação, identificando o agente emissor competente, a forma jurídica própria e os seus destinatário, fazendo-se a si própria jurídica)(23). Resta claro, sem embargo, que o recurso retórico à auto-enunciação é a admissão da aporia insuperável da teoria proposta. Se o enunciado protocolar pudesse enunciar-se a si próprio como jurídico, seria ele a um só tempo evento, fato e ato de enunciação dele mesmo, rompendo a necessidade de uma enunciação externa ao evento, através de um enunciado protocolar e denotativo. É como se o lançamento constituísse o fato tributário, relatando em linguagem competente o evento ocorrido em data anterior (tempo no fato), e constituísse a si próprio, relatando a si mesmo. Aqui, evento e fato seriam uma só e mesma coisa, fundindo-se.

A aparente sustentação lógica da teoria carvalhiana decorre de estarmos sempre olhando para o evento (fato do mundo que reproduz a hipótese de incidência) e para a sua transformação em fato jurídico pelo enunciado protocolar e denotativo. Todavia, quando pousamos os olhos detidamente sobre o elemento intercalar entre o evento e o fato, ou seja, sobre o ato de enunciação (relato), ficamos perplexos em ver que ele não possui juridicidade, se analisado pelo próprio sistema de referência dessa mesma teoria. E como ele não possui relato em linguagem competente, ele se auto-relata. Porém, é preciso gizar com cores bem fortes, que, nesse caso, ou o auto-relato nada mais seria do que a admissão implícita de que a significação jurídica adviria do próprio evento (é dizer, o não-jurídico - o fato bruto - criaria, num processo autogerativo, a sua própria juridicidade)(24); ou a admissão de que a sua juridicidade adviria diretamente não do evento, mas da norma geral e abstrata, sem a reivindicação do ato humano intercalar de aplicação: seria produto, noutro giro, da incidência da norma jurídica, no mundo do pensamento. É dizer: o lançamento seria fato jurídico como produto da incidência do art.142 do CTN(25). Qualquer das duas soluções, resta claro, impugna a construção lógica da teoria carvalhiana.

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Notas sobre o fato jurídico tributário.: Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2298. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Continuação do artigo "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho", publicado na Revista Tributária n° 38, maio-junho de 2001, pp.19-35.

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