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Notas sobre o fato jurídico tributário.

Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

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01/11/2001 às 01:00
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5. Conclusão.

No presente texto, buscamos mais uma vez fazer uma reflexão sobre os postulados da teoria carvalhiana, tematizados sob o pano de fundo da teoria ponteana. Era o nosso desejo fazer uma exposição da teoria do fato jurídico, segundo concebida pelo gênio de Pontes de Miranda, mas tantas foram as questões aqui enfrentadas, que não nos foi possível ingressar em outros aspectos que mereceriam nossa atenção. Nada obstante isso, julgamos que a análise crítica que fizemos da obra de Paulo de Barros Carvalho e de seus discípulos, se outro não tiver, tem o valor de estabelecer um diálogo científico franco e sereno sobre uma teoria que vem sendo ensinada em nossas principais faculdades de direito, tanto nos cursos de graduação como de pós-graduação. Estabelecendo um claro contraponto, julgamos servir à ciência e ao direito, ao tempo em que resgatamos o pensamento de Pontes de Miranda e preservamos o conceito de incidência da norma jurídica, desfigurado pela teoria carvalhiana e tomado como sinônimo de aplicação.

No próximo artigo(51), encerraremos nossa análise crítica da teoria de Paulo de Barros Carvalho observando importantes questões sobre o lançamento tributário - já agitadas superficialmente aqui - e os seus efeitos jurídicos. É certo que não trataremos, nessa trilogia, sobre o relativismo hermenêutico à base da teoria carvalhiana, nem tampouco sobre a sentida ausência de preocupações axiológicas, reveladora de um sinete autoritário (não é à toa que os cidadãos ou contribuintes são sempre chamados de súditos, a revelar menos uma relação jurídica tributária e mais uma relação de sujeição à força de normas criadas no ato de interpretação da autoridade fazendária).

De toda sorte, enfatizamos aqui a impropriedade da distinção entre fato e evento, bem como a sua insuficiência. Para facilitar a exposição, mostramos a ausência, dentro do sistema de referência da teoria glosada, de um ato intercalar entre o fato e o evento: o relato (ou ato de enunciação). Ao chamarmos a atenção para isso, buscamos mostrar que esse ato que enuncia o evento, constituindo-o em fato, não possuía, ele mesmo, juridicidade. Para superar essa fragilidade da teoria de Paulo de Barros Carvalho, mostramos a solução apontada por seus discípulos, fazendo uma maior análise da distinção feita por Eurico Marcos Diniz de Santi entre enunciação enunciada e enunciado enunciado, que apenas radicaliza os problemas teóricos antes já fustigados. Por fim, buscamos demonstrar que a distinção entre fato e evento não repousa propriamente na obra de Habermas, vez que não pode ser feita sem partir de uma distinção anterior, entre plano da ação comunicativa e plano do discurso. Com essas reflexões, buscamos, sempre que possível, sublinhar a dimensão simbólica e intersubjetiva da norma jurídica, a sua aprioridade em relação aos fatos por ela regrados e a juridicização do fáctico através da sua incidência incondicional e infalível, no plano do pensamento.


Notas

1. A análise da teoria proposta por Paulo de Barros Carvalho foi iniciada através do artigo "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho", publicado na Revista Tributária n° 38, maio-junho de 2001, pp.19-35. Crítica, nessa trilogia de estudos, é o exame de um princípio ou de um fato, a fim de produzir sobre ele um juízo de apreciação, vale dizer, a não-aceitação de uma asserção sem se interrogar primeiro sobre o seu valor (Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.221).

2. Anoto aqui que a distinção entre ciência do espírito e ciências da natureza já não é pacífica, sendo refutada sobretudo a partir do giro lingüístico de Hans-Georg Gadamer. Susan J. Hekman (Hermenêutica e sociologia do conhecimento. Trad. Luís Manuel Bernardo. Lisboa: Edições 70, 1990. p.144), ao analisar o propósito da da obra gadameriana Verdade e Método, termina por afirmar que a sua preocupação central é de se indagar como é possível a compreensão, tendo como resposta que "(...) toda compreensão é hermenêutica e, portanto, que uma análise da natureza da compreensão coincide com uma análise da ´hermenêutica universal´". Desse modo, tanto a natureza como o produto da cultura humana são conhecidos através da lingüisticidade da compreensão, ou seja, do agir hermenêutico.

3. Sobre o conceito de /mundo da vida/, vide GADAME, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, p.375 et seq.

4. "Edmund Husserl sobre mundo de la vida, filosofía y ciencia". Texto e contexto. Barcelona: Ariel, 1996. p.61-62. Os grifos são nossos.

5. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário - fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998. p.85 et seq.

6. Introdução ao estudo do direito - técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.274.

7. Idem, ibidem, p.89.

8. Idem, ibidem, p.105.

9. Idem, ibidem, p.95.

10. Fundamentos da norma tributária. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 56.

11. Fato jurídico tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001. p.20.

12. Idem, ibidem, p.93.

13. Idem, ibidem, p.105.

14. Idem, ibidem, p.174.

15. Idem, ibidem, p.224.

16. Idem, ibidem, p.225.

17. Idem, ibidem, p.105-06.

18. "(...) O enunciado reporta-se ao passado, descreve o evento e, ao fazê-lo, constitui o fato jurídico. Daí poder-se afirmar que o enunciado descritivo do direito positivo declara o evento e constitui o fato, que, uma vez relatado em linguagem jurídica, será sempre fato jurídico" (LINS E SILVA, Joana. Fundamentos da norma jurídica tributária. São Paulo: Max Limonad. 2001. p.59, com grifos meus).

19. Idem, ibidem, p.207.

20. Idem, ibidem, p.208 (grifos nossos).

21. Idem, ibidem, p.176.

22. Idem, ibidem, com grifos nossos.

23. Cf. Idem, ibidem, p.178.

24. "De enunciados fácticos não se inferem enunciados deônticos correspondentes. Muito menos enunciados deônticos cuja extensão vá além das premissas fácticas" (VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p.44, passim).

25. Nesse sentido, vide VILANOVA, Lourival (Causalidade e relação no direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p.86-87): "Da norma geral não se passa imediatamente para a relação ou situação jurídica sem interposição de um fato (fato natural ou conduta). Se o fato não ocorreu, a norma geral (ou individual) permanece em seu status proposicional, lógico, sintático, sem os correspondentes semântcos ou fácticos: o direito-norma não se realiza, não é realidade sociocultural".

26. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.61 et seq.

27. Idem, ibidem, p.62.

28. Idem, ibidem, p.63-4.

29. Idem, ibidem, p.60.

30. Idem, ibidem, p.64. Os grifos são nossos, exclusive o da expressão enunciação enunciada, que é original.

31. Idem, ibidem, p.65. A frase final foi gizada por mim.

32. Contra, VILANOVA. Lourival ("Teoria jurídica da revolução: anotações à margem de Kelsen". Revista de Direito Público. São Paulo: RT, s/d, nº 70, p. 38), para quem: "Sem o pressuposto da norma fundamental, o fato da revolução não pode ser produtor de normas: importaria em tirar a normatividade da pura facticidade".

33. SANTI. Eurico Marcos Diniz de. Op. cit., p.76. Grifei.

34. Idem, ibidem, p.69.

35. Idem, ibidem, p.69-70.

36. Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. (Trad. Flábio Beno Siebeneichler). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.35. Diz ele: "Enquanto a linguagem é utilizada apenas como medium para a transmissão de informações e redundâncias, a coordenação da ação passa através da influenciação recíproca de atores que agem uns sobre os outros de modo funcional. Tão logo, porém, as forças ilocucionárias das ações de fala assumem um papel coordenador na ação, a própria linguagem passa a ser explorada como fonte primária da interação social. É nisso que consiste o «agir comunicativo». Neste caso, os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários. Quando os participantes suspendem o enfoque objetivador de um observador ou de um agente interessado imediatamente no próprio sucesso e passam a adotar o enfoque performativo de falante que deseja entender-se com uma segunda pessoa sobre algo no mundo, as energias de ligação da linguagem podem visar um efeito coordenador na ação, pois da resposta afirmativa do destinatário a uma oferta séria resultam obrigações que se tornam relevantes para as conseqüências da interação".

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37. "Teorías de la verdad". Teoría de la acción comunicativa: complementos e estudios previos. Madri: Catedra. 1994. p. 116. Os grifos são nossos.

38. Idem, ibidem, p.116-117.

39. Idem. "Lecciones sobre una fundamentación de la sociologia en términos de teoría del lenguaje". Teoría de la acción comunicativa: complementos e estudios previos. Madri: Catedra. 1994. p.21. (grifamos o texto original).

40. Idem, ibidem, p.23-24.

41. Idem, ibidem, p.27.

42. Causalidade e relação no direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p.46.

43. HABERMAS. Jürgen. "Teorías de la verdad". Teoría de la acción comunicativa: complementos e estudios previos. Madri: Catedra. 1994. p. 129. Os grifos são nossos.

44. COSTA. Adriano Soares da. "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho". Revista tributária e de finanças públicas. São Paulo: RT, maio-julho de 2001, n° 38. p.30.

45. HABERMAS. Jürgen. "Teorías de la verdad". Teoría de la acción comunicativa: complementos e estudios previos. Madri: Catedra. 1994. p. 119. Os grifos são nossos.

46. Idem, ibidem, p.118.

47. Idem, ibidem, p.116.

48. Sobre o tema: HABERMAS. Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.467 et seq. PASQUALINI. Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1999. p.63-63, passim.Para uma exposição didática e resumida da teoria de Habermas, vide ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación juridica: la teoria del discurso racional como teoria de la fundamentación juridica. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. p.110 et seq.

49. CARNELUTTI. Francesco. Sistema de direito processual civil. Campinas: Classic Book, 2000. v.I, p.69.

50. A comparação entre a concepção carneluttiana e a teoria carvalhiana tem por escopo chamar a atenção para as conseqüências processuais da adoção de um conceito angusto de fato jurídico, como o proposto pelo eminente professor paulista. Se em Carnelutti já se reduz a jurisdição à justa composição da lide (visão essa não mais endossada pela moderna processualística), nada obstante partindo-se de uma aprioridade da norma, em Paulo de Barros Carvalhos se reduz o fenômeno jurídico à aplicação autoritativa do direito (realismo jurídico), através de um ato de autoridade que constitui a norma pela interpretação, e constitui o fato pela enunciação protocolar. Tanto a norma, quanto o fato, seriam construções do aplicador competente do direito (sempre a autoridade estatal), que seria o senhor da incidência, o dono da única verdade possível: a da força e da autoridade autoritária de quem pode mais (Cf. IVO, Gabriel. "A incidência da norma jurídica. O cerco da linguagem". Revista de direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2001. n° 79. p.193, que afirma: "(...) A aplicação devolve ao intérprete a competência para construir o sentido da incidência. É incorreto, data venia, afirmar-se que a «incidência não erra, quem erra é o aplicador» do Direito. O aplicador do Direito não erra; nunca. Ele prescreve."). Aqui, caímos no mais absoluto relativismo kelseniano, em que a legitimação dos enunciados protocolares se dá sempre pela força de quem pode impor o seu ponto de vista ao ponto de vista alheio, já que a própria norma não seria a priori à aplicação, mas produto dela. Ora, em verdade requer um Estado Democrático de Direito muito mais do que um direito de autoridade: requer sobretudo um direito socialmente controlável. Como nos diz Alexandre Pasqualini: "(...) Se tudo se mostra hermeneuticamente possível, então, a fortiori, raciocinar ou dialogar se tornou uma bizarra aventura, onde as palavras vagueiam no eterno labirinto das leituras erráticas. Não havendo nem o reflexo temporalizado do fio de Ariadne, o intérprete se moveria de um sem-sentido para outro, como se fora a mosca winttgensteiniana condenada, no medium da linguagem, a jamais descobrir a saída da garrafa sem quebrá-la. As pessoas falam ou escrevem, porém o sentido do que escrevem ou falam dependeria tão-somente do arbítrio voluntarista dos leitores. Mas quando tudo significa tudo, nada significa nada" (Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1999. p.40 - grifei):

51 Obrigação e crédito tributário: crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho, inédito.

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Notas sobre o fato jurídico tributário.: Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2298. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Continuação do artigo "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho", publicado na Revista Tributária n° 38, maio-junho de 2001, pp.19-35.

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