1. Introdução
A hermenêutica constitucional é parte da hermenêutica jurídica. Tal assertiva se sustenta porque a Constituição é uma lei (lato sensu), portadora de força normativa, como prelecionado por Konrad Hesse (1991, p. 15), para quem, em contraposição a Lassale:
A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.
Entretanto, a hermenêutica e a interpretação constitucionais possuem algumas particularidades em relação àquelas referentes às normas infraconstitucionais. Entre outras razões possíveis, elencam-se e analisam-se as mais importantes.
2. A superioridade das normas constitucionais
As normas constitucionais gozam de ascendência hierárquica em relação às demais presentes em um ordenamento jurídico. Não só isso, mas também lhes serve de fundamento de validade.
Tal supremacia foi inicialmente verificada em razão do conteúdo das Constituições. No célebre julgamento conhecido como Marbury vs. Madison, o Chief Justice Marshall reconheceu expressamente a qualidade de "lei superior" da Constituição, dado seu conteúdo de lei fundamental da nação e de teoria de todo o governo.
Após, com a consagração das constituições escritas, foram engendrados mecanismos para garantir tal superioridade, como o controle de constitucionalidade e o quorum diferenciado para aprovação de seu texto.
Desse modo, toda lei ou ato normativo que se contraponha à Constituição é, via de regra, nulo e deve ser expurgado do ordenamento. Esse controle de constitucionalidade abre um leque de técnicas e possibilidades hermenêuticas mais vasto que a hermenêutica jurídica comum.
No dizer de TAVARES (2006, p. 132-133):
Desnecessário dizer que o efeito imediato dessa concepção foi a submissão das leis e atos do mundo normativo à verificação de sua compatibilidade com a Constituição, no que se incluiriam todos os códigos. Ato subsequente, o modelo de Estado legalista entra em crise, com a lei perdendo sua exclusividade enquanto fonte de produção do Direito.
Além disso, em função dessa supremacia, a interpretação das normas constitucionais goza de maior liberdade, uma vez que a Constituição, fruto do poder constituinte originário, é inicial, ilimitada e incondicionada em seu nascedouro. Por conseguinte, o intérprete não precisa perquirir uma cadeia hierárquica de normas até confluir no texto constitucional. Disso resulta uma maior liberdade ao intérprete.
3. O caráter aberto das normas constitucionais
Todos os atos e fatos da realidade podem dar margem a interpretações diversas. Os textuais, sobretudo os escritos, normalmente são mais ambíguos, dada a plurivocidade das palavras e à própria função representativa da linguagem.
Dentre os textos escritos, ainda maior abertura se verifica nos textos normativos. Isso porque estes operam na esfera do dever ser, enquanto outras categorias, não raro, realizam um mister meramente descritivo. Com isso não se quer propriamente igualar a abertura ao caráter deontológico das normas, uma vez que em qualquer texto há certa vagueza, mas ressaltar que a descrição funda seus parâmetros na realidade, enquanto a prescrição normativa, além do elemento real, deve lidar com ideais normativos e, destacadamente, valorativos.
Imbuído de um desiderato jornalístico, alguém pode descrever uma cena em que crianças pedem esmolas em um cruzamento enquanto sua mãe está sentada na calçada contando o dinheiro recebido. Tal texto buscará se aproximar o máximo possível da realidade, o que, ainda que se explorem várias perspectivas.
Nos textos jurídicos, verifica-se que tanto no momento de sua elaboração - visando dispor sobre o fato de haver crianças pedindo esmola -, quanto da incidência prática do resultado linguístico do enunciado, confluirão inúmeros importes de cunho ético, social, jurídico, entre outros. Pune-se a mãe ou se oferece assistência? E a guarda dessas crianças? E seu sustento?
Se as disposições normativas são mais vagas que as descritivas, as constitucionais são ainda mais. De modo geral, por disciplinar questões fundamentais do Estado e da sociedade, as normas constitucionais possuem um caráter aberto, de modo a conferir maior espaço de liberdade ao intérprete.
O uso mais frequente de conceitos jurídicos indeterminados, como dignidade da pessoa humana, relevante interesse coletivo, segurança nacional, reputação ilibada, entre outras, não é uma opção do constituinte, mas uma imposição do fato de que a Constituição deve permitir sua atualização e a governabilidade do país, buscando, ainda, uma aplicação mais justa e adequada ao momento e ao caso concreto considerados.
Seria tarefa impossível atribuir à lei maior um caráter codificado, uma intenção de regular minuciosamente todas as relações políticas, jurídicas, econômicas e sociais de um Estado. Tal encargo é delegado aos seus aplicadores, sejam eles do Legislativo, do Executivo, do Judiciário.
No dizer de BARROSO (2006, p. 111):
A natureza da linguagem constitucional, própria à veiculação de normas principiológicas e esquemáticas, faz com que estas apresentem maior abertura, maior grau de abstração e, consequentemente, menor densidade jurídica. Conceitos como os de igualdade, moralidade, função social da propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa humana, dentre outros, conferem ao intérprete um significativo espaço de discricionariedade.
Tal espaço de discricionariedade tem tomado o cerne da preocupação da teoria da constituição hodierna, sobretudo em função do chamado neoconstitucionalismo, da nova hermenêutica e da força normativa dos princípios.
É sobretudo em função dessa abertura que os métodos hermenêuticos atualmente aplicados ao Direito Constitucional devem buscar transcender aqueles considerados tradicionais, organizados desde Savigny, consistentes no gramático-literal, histórico, sistemático e teleológico.
Ao tratar do método tópico-problemático, Inocêncio Mártires Coelho assim leciona (MENDES; COELHO; GONET, 2008, p. 100):
Em palavras de Böckenförde, dado o caráter fragmentário e, não raro, indeterminado da Constituição, é natural o uso do método tópico orientado ao problema, até para remediar a insuficiência das regras clássicas de interpretação e evitar o non liquet, que já não é possível pela existência da jurisdição constitucional.
[...]
Em suma, graças à abertura textual e material dos seus enunciados e ao pluralismo axiológico, que lhe são congênitos, a Constituição - enquanto objeto hermenêutico - mostra-se muito mais problemática do que sistemática, o que aponta para a necessidade de interpretá-la dialogicamente e aceitar, como igualmente válidos, até serem vencidos pelo melhor argumento, todos os topoi ou fórmulas de busca que, racionalmente, forem trazidos a confronto pela comunidade hermenêutica.
Esse caráter aberto faz da Constituição o habitat natural dos valores e princípios, estes últimos qualificados como normas cogentes, podendo ser aplicados diretamente a um caso concreto. Assim, além de uma maior liberdade na interpretação dos dispositivos constitucionais, haverá o manuseio de técnicas diversas de interpretação.
Para se entender melhor esse último aspecto, faz-se necessária uma breve abordagem à teoria dos princípios e suas diferenças para as regras jurídicas. Abordando as inúmeras correntes que tentam distinguir essas duas espécies de normas, CANOTILHO (2002, p. 1144) assim sintetiza:
Saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa particularmente complexa. Vários são os critérios sugeridos.
a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida.
b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são supscetíveis de aplicação directa.
c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).
d) Proximidade da ideia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na ideia de direitos (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.
e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.
Para os fins deste trabalho, as características descritas em "a" e "b" devem ser ressaltadas. É em razão delas que se percebe uma maior participação do intérprete quando da concretização das normas constitucionais, uma vez que o conceito e o limite da aplicação de um princípio são determinados por quem o maneja, considerados os fatos e as outras normas aplicáveis.
Essa abertura, que gera maior subjetividade na aplicação do preceito constitucional é potencializada pelo atual reconhecimento do caráter normativo dos princípios, o que permite, por exemplo, a aplicação direta de um princípio a um caso concreto.
Nessa hipótese, de aplicação direta de um princípio constitucional a um caso concreto, a definição do direito aplicável fica quase que totalmente à mercê do intérprete, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, pode ser aplicado aos mais diversos casos levados à apreciação do Tribunal.
É curioso perceber que em alguns julgamentos o referido princípio da dignidade da pessoa humana tem sido levantado por ambas as partes em juízo, que, intepretando-o, intentam aplicá-lo de modos antagônicos.
Outra consequência dessa abertura é o alargamento da interpretação jurídica de modo a contemplar outros ramos do conhecimento. Essa transdisciplinaridade decorre, segundo André Ramos Tavares, do próprio Constitucionalismo, que, superando a visão de um Estado legalista, focado unicamente na letra dos códigos, permite ao Direito se abrir para a realidade, momento em que se faz necessário aplicar outros ramos do conhecimento. Segundo o professor:
A era iniciada pelo Constitucionalismo, ao contrário, demanda um maior conhecimento dos outros saberes, além do da simples letra do texto escrito. Ciente de que "quem quer empenhar-se em compreender o lugar e o papel do direito nas sociedades humanas não deve menosprezar nenhuma das dimensões precedentes" (ASSIER-ANDRIEU, 2001: XI), a Constituição e, por conseguinte, o Direito Constitucional tornam-se multidisciplinares.
E mais adiante conclui (2006, p. 52-53):
Embora a afirmação possa parecer óbvia, ululante, precisa-se repeti-la vez ou outra, sob o risco de as ciências jurídicas, principalmente no Brasil, ainda atreladas a um positivismo legalista, conforme se vê na prática diária, voltarem-se ao seu retrógrado e prejudicial isolacionismo.
Se a repetição torna-se necessária, para o Direito, lato sensu, o que dizer então para o Direito Constitucional, o qual, conforme já foi mencionado nas linhas acima, haure sua força normativa da realidade, das leis culturais, sociais, políticas e econômicas (cf. HESSE, 1991: 18).
A Constituição não pode ser considerada uma carta meramente jurídica. Ela é política, social, enfim, transdisciplinar. E assim será o seu ramo de estudo, o Direito Constitucional. Negar isso é retirar de sua Carta, de seu ramo de estudo, o termo "constitucional".
Em meio a esses outros ramos do conhecimento que influenciam o Direito Constitucional e a interpretação da Constituição, destaca-se a esfera política, que será tratada no tópico seguinte.
4. O caráter político das normas constitucionais
Como já adiantado no tópico anterior, a Constituição, como documento jurídico maior de um Estado, ocupa-se em disciplinar o Poder, distribuir competências, garantir direitos fundamentais, entre outras incumbências de maior relevância política.
Konrad Hesse (2009, p. 124), dispondo sobre a força normativa da Constituição, constata que "questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas, sim, questões políticas".
No dizer de BARROSO (2010, p. 273):
...a Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário - fato político - e a ordem instituída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o enquadramento jurídico dos fatos políticos. Embora a interpretação constitucional não possa e não deva romper as suas amarras jurídicas, deve ela ser sensível à convivência harmônica entre os Poderes, aos efeitos simbólicos dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal e aos limites e possibilidades da atuação judicial.
De fato, ainda que a Constituição seja encarada como lei, diploma legal, dotado de normatividade, não se pode ignorar seu caráter político, refletido, sobretudo, em sua função organizatória.
Apontando para um direito constitucional organizatório, Canotilho (2002, p. 535) o conceitua como "o conjunto de regras e princípios constitucionais que regulam a formação dos órgãos constitucionais, sobretudo dos órgãos constitucionais de soberania, e respectivas competências e funções, bem como a forma e procedimento de sua actividade".
Assim, a Constituição determina e organiza o espaço político-democrático (força normativa da Constituição e função organizatória), como visto na definição acima, mas também por ele é influenciada.
No dizer de BERCOVICI (P. 13):
Não se pode, portanto, entender a Constituição fora da realidade política, com categorias exclusivamente jurídicas. A Constituição não é exclusivamente normativa, mas também política; as questões constitucionais são também questões políticas. A política deve ser levada em consideração para a própria manutenção dos fundamentos constitucionais. Na feliz expressão de Dieter Grimm, a Constituição é resultante e determinante da política.
Exemplos dessa influência do político no âmbito da interpretação da Constituição podem ser retirados do controle de constitucionalidade levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.
Consoante o Informativo n.º 527 da Corte, no julgamento da ADI 2.240, o Relator, Min. Eros Grau, "asseverou que o aludido Município [Luís Eduardo Magalhães, na Bahia] fora efetivamente criado a partir de uma decisão política, assumindo existência de fato como ente federativo dotado de autonomia há mais de 6 anos e que esta realidade não poderia ser ignorada".
Com esse importe político, aliado à longa inexistência de lei complementar para criação de Municípios, o Supremo reconheceu a existência válida de Município criado em desobediência à formalidade prevista pela Constituição.
Nessa mesma demanda abstrata se encontra outro exemplo de influência do político no jurídico. Trata-se da chamada modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
No dizer de Pedro Lenza (2010, p. 264-265):
Utilizando a técnica alternativa de ponderação entre o princípio da nulidade da lei, de um lado, e o princípio da segurança jurídica, de outro, entendeu o STF que a lei é inconstitucional, mas, aplicando o art. 27 da Lei n. 9.868/99, e tendo em conta razões de segurança jurídica e excepcional interesse social, apensar de inconstitucional por violar o art. 18, § 4.º, deverá continuar vigorando por 24 meses.
Consagra-se, dessa forma, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade, já que, dependendo do caso concreto, como disse o Min. Gilmar Mendes, a “... nulidade da lei inconstitucional pode causar uma verdadeira catástrofe - para utilizar a expressão de Otto Bachof - do ponto de vista político, econômico e social".
Tanto a ponderação de uma realidade política, a existência do ente por mais de seis anos e a inexistência de lei complementar editada por prazo razoável, como a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade são prova inconteste da imbricada relação da política com a interpretação da Constituição.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
_____________, Interpretação e aplicação da constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: teoria da constituição. Salvador: Juspodivm, 2009.
_____________, Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Método, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método, 2006.