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Ações afirmativas, justiça e teoria do reconhecimento.

Como pensar o caso brasileiro?

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20/11/2012 às 12:41
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3.  Fraser e as ações afirmativas no caso brasileiro

No Brasil, as ações afirmativas têm sido implantadas nos últimos anos sobretudo em benefício da população negra, através da destinação de vagas em determinados serviços e no incentivo em determinados cargos para a inserção de gente de cor negra. O Brasil, com isso, é um lugar paradigmático para se pensar a aplicação da teoria fraseana, uma vez que as várias desigualdades marcam a situação do país - em especial nossa realidade de desigualdade socioeconômica e de desigualdade racial.

A modernidade no Brasil chegou encontrando um terreno com amplas marcas de conservadorismo e tradicionalismo, numa situação que se conjuga até hoje em variados setores sociais (Ribeiro, 2007). Essa relação mal resolvida entre a modernidade e o tradicionalismo remanescente da escravidão é, do meu ponto de vista, o principal fator de promoção das nossas desigualdades. No caso da realidade do negro, esta população foi trazida para servir como mão-de-obra explorada em benefício de uma classe rural que para si conjugavam o poderio econômico e político da colônia. Como justificação para tamanha exploração, foram usados uma série de argumentos ideológicos que colocavam o negro numa situação de sub-raça, algo como sub-humano. Junto da escravidão, nasceu, portanto, uma concepção bastante preconceituosa e segregacionista em relação àqueles que vieram apenas para servir incondicionalmente a estrutura de uma sociedade em formação, e acabaram sendo o cerne das grandes construções do país (Silva, 1988).

Entretanto, o fim da escravidão, após séculos de exploração, foi causado por motivos econômicos de um Brasil já emancipado, e por pressões externas da Inglaterra. Enquanto a Europa vivia, do ponto de vista econômico, o progresso da industrialização (com todas as suas repercussões e problematizações sociais), e mergulhava nos ideais iluministas e liberais, o Brasil continuava eminentemente envolto no tradicionalismo político e na dependência agrícola para fins de exportação.

Nesse sentido, o negro seria àquela altura uma figura representada por enorme contingente populacional, mas que pretendia ser descartada pelas políticas oficiais. Daí as tendências de embranquecimento vigentes em fins do século XIX e início do século XX, além da introdução na cultura de uma valorização de práticas de embranquecimento, expressas no contingente mestiço que marca o povo brasileiro até os dias de hoje. Dessa situação social, os negros e mestiços foram se constituindo a grande parte dos moradores dos cortiços, inicialmente, e das favelas no desenrolar das décadas do século XX. Também restaram a essa gente os trabalhos mais discriminados pela sociedade, trabalhos marcados pela baixa renda, profunda informalidade e baixa qualificação. Como resultado, a segregação foi crescendo, e aos negros foram sendo rotulados a imagem da “vadiagem” e de marginalidade.

Por terem partido de uma situação de extremo atraso e ainda sofrendo muito preconceito, os negros tiveram, na maioria dos períodos político-econômicos pós-escravidão, poucas oportunidades de ascensão social no Brasil. Como nos mostram os estudos de mobilidade social e de desigualdades sociais, a distância em relação aos brancos permanece considerável pouco mais de um século da libertação oficial (Ribeiro, 2007). No Brasil, o preconceito e a exclusão racial se deram de forma velada, não institucionalizada e não reconhecida abertamente. Isso dificultou e dificulta em muitos casos a tomada de ações por parte do poder público. Ações como as políticas de ações afirmativas costumam ser vistas como afronta à igualdade de oportunidades, ainda que muitas pesquisas revelem a desigualdade, a segregação e o preconceito.

É nesse sentido que a atuação do poder público com vista a reduzir as desigualdades sociais pode ser vista do ponto de vista de Fraser como a tentativa de se redistribuir os cargos e as funções nesta sociedade estruturalmente segregacionista em relação a negros.  Uma política importante desse tipo e de grande destaque no Brasil consiste exatamente nas políticas de ações afirmativas, que visam dar privilégios a pessoas de cor negra, permitindo-lhes, por exemplo, acesso a vagas em cargos públicos e cotas nas universidades.

Contudo, um ponto importante a se chamar atenção é que, numa perspectiva fraseana, as ações afirmativas seriam incertas no sentido de modificarem a estrutura social que gera as desigualdades. Isso porque elas apenas reconhecem a necessidade de distribuição a grupos prejudicados historicamente, mas nada fazem para resolver os impasses estruturais que geram tais desigualdades, a não ser que os beneficiados por essas políticas consigam - em larga escala - transmitir seus resultados de crescimento socioeconômico aos seus filhos, e estes já não precisem de políticas desse tipo para se manterem em ascensão ou alcancem níveis de renda e de status semelhante à população que historicamente tem recebido esses direitos no Brasil.

Nesse rumo, essas políticas podem gerar redução do preconceito, levando através da redistribuição a um reconhecimento das diferenças raciais e uma aceitabilidade cultural de suas diferenças, ou seja, a uma justiça por reconhecimento segundo a perspectiva de Fraser, mas não significa que isso acontecerá automaticamente a partir apenas das ações afirmativas. Estas, por sua vez, são um remédio que precisará contar com mudanças culturais para conseguir resultados principalmente do ponto de vista do reconhecimento.


Conclusão

A igualdade de condições é uma categoria efetivamente expressa na legislação brasileira, mas que não representa a realidade fática do país. Promovê-la é o objetivo das políticas de ações afirmativas, ainda que estas “firam”, em princípio, a própria estrutura legal da “igualdade”. Afinal a igualdade é parte de um preceito intensamente disseminado no plano jurídico moderno, e reconhecido por todas as constituições modernas. A própria Constituição brasileira de 1988 ressalta em seu artigo 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Constituição Federal, 2007). As ações afirmativas levam a uma reinterpretação deste dispositivo constitucional, considerando que os direitos materiais precisam ser implantados para se alcançar a pretensa igualdade, ou seja, de que a Carta deve ser interpretada no sentido de geração de igualdade, e não de um pressuposto falho de igualdade da qual a lei fala.

Esta mesma Carta Constitucional estabeleceu como crime o racismo, impedindo qualquer manifestação discriminatória na esfera racial (Art.5º, XLII – “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”). O Estado tenta, assim, provocar um respeito a todas as diferenças raciais, pretendendo punir a sua infração. O Estado se dispõem, com isso, a garantir o reconhecimento das diferenças culturais, tal como aparece em Fraser, punindo o não-reconhecimento, mas o que por si só não impede que ele ocorra em tons subliminares dentro da sociedade.

A injustiça no Brasil, em relação à população negra, não é só questão de classe, tal como foi pensado no passado, mas também de raça. Como conseqüência, buscar justiça social no caso brasileiro não é só atuar através de medidas de redistribuição, mas exige algo além. Essas políticas, caso efetivamente tragam benefícios às populações segregadas, pode gerar redução do preconceito, levando através da redistribuição a um reconhecimento das diferenças raciais e uma aceitabilidade cultural a suas diferenças, ou seja, a um reconhecimento segundo a perspectiva de Fraser.

Nesse sentido, uma política eficaz e realista seria aquela que efetivamente conseguisse acabar com os efeitos de classe e conseguisse também acabar com todo tipo de preconceito e segregação em relação aos negros, independentemente da sua origem socioeconômica. Mas faço aqui, para terminar, uma observação: diria que as ações afirmativas são relativamente capazes de alcançar esse objetivo, pois a sua direção está muito mais focada em redistribuição - esperando que a partir daí resolvam-se os problemas de reconhecimento - do que propriamente ela ataca diretamente o problema do reconhecimento das diferenças culturais. Essa, portanto, é a ponderação que devemos fazer neste relação entre a teoria de Fraser  e as ações afirmativas no intuito de acabar com as desigualdades sociais e de reconhecimento em relação à população negra no Brasil.

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Referências bibliográficas

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Notas

[1] Aqui existe uma ponderação relevante: negros no país não são minoria, como os grupos para quem são pensados esses tipos de política de reconhecimento, mas compõem parte considerável da população. Somando pretos e pardos, para usar a referência do IBGE, chegamos a quase metade da população brasileira.

[2] Fraser traça relevante debate teórico na seara da teoria do reconhecimento com Axel Honneth. Tanto ela quanto Honneth desejam colocar a categoria do reconhecimento como central para a reconstrução de um pensamento crítico em relação às lutas sociais contemporâneas, teorizando o lugar da cultura no capitalismo e pensando padrões de justiça. Honneth, seguindo a tradição hegeliana, defende que o reconhecimento intersubjetivo é a condição para o desenvolvimento de uma identidade positiva necessária para a participação na esfera pública. Fraser, ao contrário, deseja enxergar o reconhecimento não como uma categoria central da Sociologia e da Psicologia Moral baseada na idéia de que o reconhecimento está ligado à auto-realização individual, mas, sim, como uma questão essencialmente de justiça. Ao contrário de Honneth, ela segue a tradição kantiana, daí querer mostrar, portanto, que a categoria do reconhecimento pode ser mais bem explicada de acordo com um padrão universal de justiça.

Quem tiver interesse, pode ver: HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo. Ed. 34, 2003.

[3] Já vemos logo nesta definição uma relação bastante plausível com a teoria fraseana.


Abstract:This paper relate the theory of justice and recognition of north-american author Nancy Fraser with affirmative action developed in Brazilian case. For this purpose, I try to show the main points of Fraser. For this author, justice today requires redistribution of goods and social wealth, recognition and evaluative-differences. Then, I demonstrate the concept of affirmative action and how this policy has been developed in Brazilian society as a answer to inequalities social and racial groups. Finally, I establish the theorical relationship between affirmative action and the theory fraseana.

Keywords: Nancy Fraser, justice and recognition, affirmative action, Brasil.

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Ações afirmativas, justiça e teoria do reconhecimento.: Como pensar o caso brasileiro?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3429, 20 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23053. Acesso em: 5 nov. 2024.

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