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Ações afirmativas, justiça e teoria do reconhecimento.

Como pensar o caso brasileiro?

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20/11/2012 às 12:41

Resumo:


  • O artigo relaciona a teoria da justiça e do reconhecimento de Nancy Fraser com a implementação de ações afirmativas no Brasil.

  • Nancy Fraser destaca a importância da redistribuição de bens e riquezas sociais, bem como do reconhecimento das diferenças culturais para alcançar a justiça nos dias atuais.

  • No Brasil, as ações afirmativas têm sido adotadas como resposta às desigualdades sociais e raciais, sendo consideradas uma forma de promover justiça e reconhecimento.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa-se a aplicação da política de ações afirmativas na sociedade brasileira como resposta às desigualdades sociais e raciais, a partir da teoria do reconhecimento de Nancy Fraser.

Resumo: Este artigo procura relacionar a teoria da justiça e do reconhecimento da autora norte-americana Nancy Fraser com as ações afirmativas desenvolvidas no caso brasileiro. Para isso, demonstro os pontos principais de Fraser, para quem a justiça nos dias de hoje requer tanto a redistribuição de bens e riquezas sociais, como do reconhecimento valorativo-cultural das diferenças. Em seguida, demonstro o conceito de ações afirmativas e como essa política tem sido desenvolvida na sociedade brasileira como resposta às desigualdades sociais e raciais. Por fim, estabeleço a relação teórica entre as ações afirmativas e a teoria fraseana.

Palavras-chave: Nancy Fraser, justiça e reconhecimento, ações afirmativas, Brasil.


Introdução

Numa sociedade capitalista parece impróprio descartar os interesses em distribuição material como potencial elemento motivador dos membros interessados na reivindicações de direitos.

Em sua teoria, a autora norte-americana, Nancy Fraser, defende que as demandas por reconhecimento são relativamente recentes na sociedade contemporânea, fazendo parte de uma evolução da sociedade capitalista, uma época chamada por ela de “era pós-socialista”. No entanto, as demandas dos movimentos sociais por reconhecimento de identidades culturais é precisamente a minimização das questões referentes às desigualdades econômicas, numa ordem social globalizada e marcada por injustiças econômicas. Com isso, a tese de Fraser é de que a justiça nos dias de hoje requer tanto a redistribuição dos bens e das riquezas sociais, como do reconhecimento valorativo-cultural das diferenças.

O que buscarei fazer, neste artigo, é mostrar como esta teoria fraseana faz sentido no caso de se pensar algumas medidas que têm sido incorporadas no Brasil com vistas à redução de desigualdades, ou seja, com a argumentação de busca por justiça social. Seria o caso das políticas das ações afirmativas enquanto ações voltadas para grupos específicos que se encontram em posição desprestigiada socioeconomicamente por razões históricas. Aqui, tratarei especificamente do caso dos negros[1] enquanto foco de algumas ações afirmativas.


1.A teoria do reconhecimento em Nancy Fraser

Colocando-se como uma das principais pensadoras da teoria do reconhecimento[2], Fraser (2002) salienta que a luta por reconhecimento tornou-se paradigmática de conflito político no fim do século XX. Entende que demandas por reconhecimento das diferenças alimentam a luta de grupos mobilizados sob importantes bandeiras, como da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Argumenta que nesses conflitos, da “era pós-socialista”, identidades grupais substituem interesses de classe como principal incentivo para mobilização política. Dessa forma, aponta que disputas por reconhecimento acontecem em um mundo de desigualdade material exacerbada, na renda e posse de propriedades, no acesso a trabalho assalariado, na educação, no cuidado da saúde e no lazer.

Numa interpretação crítica do que vem acontecendo, a autora salienta que as reivindicações por justiça social apontam cada vez mais para uma subdivisão em dois tipos. No primeiro estariam as reivindicações de ordem redistributivas, as quais defendem uma busca por distribuição mais justa dos recursos e das riquezas. Já no segundo tipo estariam as chamadas “políticas de reconhecimento”, em que a meta principal visa um mundo que acolha amistosamente as diferenças, “um mundo onde a assimilação nas normas culturais majoritárias ou dominantes não seja mais o preço que se tenha de pagar por igual respeito” (Fraser, 2002, p. 7).

Nesse sentido, o discurso acerca de justiça social, antes centrado na distribuição, hoje se encontraria, na opinião da autora, dividido entre reivindicações por redistribuição, de um lado, e reconhecimento, de outro.

1.1. Integração entre redistribuição e reconhecimento na sociedade atual

Na medida em que Fraser pretende integrar redistribuição e reconhecimento em uma estrutura única, a principal tarefa para a teoria social passa a ser a de entender as relações entre distribuição e reconhecimento na sociedade contemporânea. Isso significa teorizar as relações entre a ordem do status e a estrutura de classe no capitalismo globalizante da modernidade tardia. Quanto a essa questão diz a autora:

“Uma abordagem adequada terá de admitir a complexidade total dessas relações, tratando, tanto da diferenciação entre classe e status, como das interações causais entre eles, acolhendo a mútua irredutibilidade de distribuição e reconhecimento, assim como seu entrelaçamento na prática” (Fraser, 2002. p. 12).

A ordem cultural da sociedade atual não apresenta fronteiras nitidamente demarcadas. Devido a fatores como as migrações de massa, diásporas, cultura de massa globalizada e esferas públicas transnacionais, é impossível demarcar precisamente onde termina uma cultura e onde começa outra. Ambas encontram-se internamente hibridizadas. Além disso, a ordem cultural da sociedade contemporânea é institucionalmente diferenciada, em que uma multiplicidade de instituições regula uma multiplicidade de arenas de ação segundo padrões distintos de valores culturais. Nossa sociedade também tem uma ordem cultural eticamente pluralista, em que nem todos os membros compartilham um horizonte de avaliação comum, uniformemente difuso. Os padrões de valor e os horizontes de avaliação também são intensamente contestados, visto que a combinação de hibridização transcultural, diferenciação institucional e pluralismo ético garante a disponibilidade de perspectivas alternativas que podem ser usadas para criticar os valores dominantes. Nesse sentido, as sociedades contemporâneas são verdadeiros caldeirões de efervescência cultural, onde os atores lutam para institucionalizar seus próprios horizontes de valor como autoridade.

Nessa sociedade moderna, Fraser aponta para a ilegitimidade da hierarquia de status. O mais básico princípio da legitimidade nesta conjuntura seria a igualdade liberal e os ideais democráticos. A igualdade liberal, com efeito, se expressa tanto nos ideais de mercado, como em trocas eqüitativas, carreiras abertas aos talentos e concorrência meritocrática. Por sua vez, os ideais democráticos se expressam tanto na cidadania eqüitativa quanto na igualdade de status. É dessa maneira que a hierarquia de status viola todos esses ideais.

A subordinação de status, portanto, persiste na sociedade contemporânea, ainda que disfarçada. Em vez de eliminada, ela passou por uma transformação qualitativa. Com diz Fraser:

“No regime moderno, nem há uma pirâmide de corporações ou estados sociais, nem cada ator social é designado para um único ‘grupo de status’ exclusivo que defina sua posição em termos gerais. Antes, os indivíduos são nódulos de convergência para eixos de subordinação entrecruzados. Frequentemente em desvantagem em alguns eixos e simultaneamente em vantagem em outros, eles lutam pelo reconhecimento em um regime dinâmico moderno” (Fraser, 2002, p. 19).

A modernização da subordinação do status teve a contribuição de dois amplos processos históricos. O primeiro teria sido a mercantilização, que é um processo de diferenciação social. Em uma sociedade capitalista, os mercados constituem as instituições centrais de uma zona especializada de relações econômicas, legalmente diferenciadas de outras zonas. As hierarquias raciais, por exemplo, que antecedem em muito ao capitalismo, não foram abolidas junto com a escravidão no Novo Mundo ou com a eliminação da prática de discriminação sistemática contra indivíduos negros. Mas foram reconfiguradas de modo a adaptar-se à sociedade de mercado.

O segundo processo histórico mencionado por Fraser consiste no surgimento de uma sociedade civil pluralista, que também envolve diferenciação, mas de outro tipo. Nesse contexto surgiu uma ampla gama de instituições não mercadizadas, tais como legais, políticas, culturais, educacionais, associativas, religiosas, familiares, estéticas, administrativas, profissionais, intelectuais, dentre outras. Conforme tais instituições vão ganhando autonomia, cada uma delas desenvolve seu próprio padrão particular de valor cultural para regulamentação da interação. Assim, na sociedade civil, diferentes locais de interação são governados por diferentes padrões de valor cultural.

1.2. O dilema redistribuição-reconhecimento

Fraser (2001) pretende considerar um aspecto do problema redistribuição-reconhecimento: Em que circunstâncias uma política de reconhecimento pode apoiar uma política de redistribuição? Quando é provável que a enfraqueça? Qual das variedades de política da identidade mais se adéqua a lutas por igualdade social? E qual dentre elas tende a interferir com essa última? Com isso, sua preocupação relacionada a essas questões consiste na relação entre reconhecimento da diferença cultural e a desigualdade social.

Como nos alerta, na atual vida política pós-socialista, com a perda da centralidade do conceito de classe, movimentos sociais diversos mobilizam-se ao redor de eixos de diferença inter-relacionados. Demandas por mudança cultural misturam-se a demandas por mudanças econômicas, tanto dentro como entre movimentos sociais. Porém, de forma crescente, reivindicações de reconhecimento tendem a predominar, já que prospectos de redistribuição parecem retroceder. O resultado é um campo político complexo com pouca coerência pragmática. A fim de ajudar a esclarecer essa situação e os prospectos políticos por ela apresentados, Fraser propõe distinguir duas compreensões de injustiça, amplamente concebidas e analiticamente distintas.

A primeira é exatamente a injustiça socioeconômica, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, tais como a exploração, tendo os frutos do trabalho de uma pessoa apropriado para o benefício de outros, a marginalização econômica, sendo limitado a trabalho indesejável, baixamente remunerado ou ter negado acesso a trabalho assalariado completamente, e a privação, no sentido de ter negado um padrão material adequado de vida.

A segunda é a injustiça cultural ou simbólica, a qual se encontra arraigada a padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. São exemplos a dominação cultural, sendo sujeitados a padrões de interpretação e de comunicação associados a outra cultura estranha, o não-reconhecimento, sendo considerado invisível pelas práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura, e o desrespeito, sendo difamado habitualmente em representações públicas de estereótipos culturais.

Com isso, Fraser distingue injustiça cultural de injustiça socioeconômica, as quais insistem em perpassar as sociedades contemporâneas. Na prática, entretanto, ambas estão interligadas.

“Portanto, longe de ocuparem esferas separadas, injustiça econômica e injustiça cultural normalmente estão imbricadas, dialeticamente, reforçando-se mutuamente. Normas culturais enviesadas de forma injusta contra alguns são institucionalizadas no Estado e na economia, enquanto as desvantagens econômicas impedem participação igual na fabricação da cultura em esferas públicas e no cotidiano. O resultado é freqüentemente um ciclo vicioso de subordinação cultural e econômica” (Fraser, 2001, p. 251).

Assim como Fraser distingue dois tipos de injustiças, também dois são os remédios recomendados para essas injustiças. O remédio para a injustiça econômica seria uma reestruturação político-econômica de algum tipo. Seria chamada genericamente de “redistribuição”, envolvendo redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, sujeição de investimentos à tomada de decisão democrática ou transformação de outras estruturas econômicas básicas.

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Já o remédio para a injustiça cultural, em contraste, chamado genericamente de “reconhecimento”, seria algum tipo de mudança cultural ou simbólica, o que poderia envolver reavaliação positiva das identidades desrespeitadas e dos produtos culturais de grupos marginalizados. Poderia envolver, ainda, tanto reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural como a transformação geral dos padrões societais de representação, interpretação e comunicação, a fim de alterar todas as percepções da individualidade.

Ressalta Fraser (2002) que a separação desses remédios tem um cunho em grande parte analítico, pois na prática, remédios redistributivos pressupõem uma concepção subjacente de reconhecimento, assim como remédios de reconhecimento pressupõem uma concepção de redistribuição. Tanto alguns proponentes de redistribuição socioeconômica igualitária fundamentam suas alegações no “valor moral igual de cada pessoa”, tratando redistribuição econômica como expressão do reconhecimento, como proponentes do reconhecimento multicultural baseiam suas reivindicações no imperativo de uma redistribuição justa de “bens primários” de uma “intacta estrutura cultural”, portanto tratando reconhecimento cultural como uma espécie de redistribuição.

Para exemplificar a sua análise Fraser se vale dos exemplos de gênero e raça, este último o qual nos interessa aqui. Pois bem, na opinião da autora trata-se de modo ambivalente de coletividade, pois, por um lado, assemelha-se a classe como sendo um princípio estruturante da economia política, com “raça” estruturando a divisão capitalista do trabalho; e, por outro, também apresenta dimensões culturais-valorativas.

Neste primeiro sentido, a autora estrutura a divisão dentro do trabalho assalariado entre ocupações mal pagas, sujas, domésticas, desproporcionalmente ocupadas por pessoas de cor, e ocupações técnicas, administrativas, “white collor”, de maior status e melhor pagas desproporcionalmente dominadas por “brancos”. A divisão atual de trabalho assalariado é parte do legado histórico do colonialismo e da escravidão, que elaboraram categorizações raciais para justificar as formas brutais de apropriação e exploração, efetivamente estabelecendo os “negros” como uma casta político-econômica. Com isso, “raça” estruturou o acesso a mercados de trabalhos oficiais e transformou grandes segmentos da população de cor em subproletariados degradados e supérfluos, excluídos do sistema produtivo. Constituiu-se, assim, uma estrutura político-econômica que gera modos de exploração, marginalização e privação específicos de “raça”, formando uma diferenciação político-econômica dotada de certas características de classe. Dessa perspectiva, injustiças raciais aparecem como uma espécie de injustiça que clama por soluções redistributivas. Quer dizer, igual à classe, justiça racial requer a transformação da economia política para eliminar sua racialização.

“Eliminar exploração, marginalização e privação específicas de raça exige a abolição da divisão entre trabalho explorado e supérfluo quanto a divisão dentro do trabalho assalariado. A lógica do remédio é como a lógica da classe: é eliminar a diferença de “raça”. (Fraser, 2001, p. 263).

Se a “raça” nada mais fosse do que uma diferenciação político-econômica, a justiça requereria sua abolição. Entretanto “raça” não é somente economia política, pois também tem dimensões culturais-valorativas, trazendo-o para o universo do reconhecimento. Segundo Fraser um aspecto central do racismo é o “eurocentrismo”, marcado pela construção de normas que privilegiam traços associados com o fato de ser branco. Também destaca o racismo cultural, caracterizada pela desvalorização e depreciação de coisas tidas como “negras”, “marrons” e “amarelas”, o que vai além de pessoas de cor. Depreciação racial, diz a autora, pode assumir várias formas, indo desde a posição de considerar afro-americanos como intelectualmente inferiores, mas avantajados atleticamente e musicalmente, até a visão estereotipada dos asiáticos-americanos como minoria modelo. Esta depreciação é expressada em um leque de perdas sofridas pelas pessoas de cor, que incluem inúmeros exemplos:

“Representações estereotipadas humilhantes na mídia como criminal, bestial, primitivo, estúpido e assim por diante; violência e agressão em todas as esferas da vida cotidiana; sujeição a normas eurocêntricas nas quais as pessoas de cor são vistas como desviantes ou menores e que trabalham para prejudicá-las, mesmo na ausência de intenções de discriminação; discriminação atitudinal; exclusão e/ ou marginalização de esferas públicas e corpos deliberativos; e negação de direitos legais plenos e igualdade de proteção” (Fraser, 2001, p. 264).

Os males citados acima são problemas de reconhecimento, assim a lógica do seu remédio é outorgar reconhecimento positivo à especificidade desvalorizada de um grupo. Dessa maneira, assim como gênero, “raça” também tem uma face político-econômica e outra cultural-valorativa, em que ambas se mesclam para se reforçarem mutuamente de forma dialética. Reparar injustiça racial, portanto, requer mudanças tanto na economia quanto na cultura.


2. As ações afirmativas – histórico e aplicação no Brasil

Tema bastante discutido na atualidade as ações afirmativas visam, conceitualmente, oferecer aos grupos considerados discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens resultantes da sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação. Assim, essas ações correspondem a medidas que alocam bens – tais como o ingresso em universidades, empregos, promoções, contratos públicos, empréstimos comerciais e o direito de comprar e vender terra – com base no pertencimento a um grupo específico, com o propósito de aumentar a proporção de membros desse grupo na força de trabalho, na classe empresarial, na população estudantil universitária e em vários setores em que esses grupos estejam sub-representados em razão de discriminações passadas ou recentes (Vieira, 2005). É tanto uma política de benefício a uma população determinada quanto uma política distributiva[3].

Segundo Vieira (2005), as políticas de ação afirmativa decorrem da falha do Estado Moderno na consecução real de um dos seus básicos requisitos: a igualdade. Isso significa que a originalidade das ações afirmativas no século XX consiste na configuração de políticas visando levar o Estado a assumir seu compromisso de igualdade primeira entre seus membros, haja vista que a desigualdade manteve-se com percepções subjetivas sobre diferenças originais. Nesse sentido, essas políticas representam a reparação por uma injustiça passada. Este é o primeiro e o principal argumento para a sua implantação. Além disso, estes tipos de ações podem ser considerados uma das mais inovadoras iniciativas para o combate ao racismo, modificação no tratamento de grupos tidos como minorias e ampliação ao processo de reconhecimento.

Os Estados Unidos é o país cuja gênese da justificação das políticas de ação afirmativa baseia-se na tipologia tripartite (reparação, justiça distributiva e diversidade), experiência esta que é a mais significativa para o caso das ações afirmativas no Brasil. (Feres Júnior, 2006).

A implantação de programas de ação afirmativa no Brasil é recente. O primeiro e importante elemento motivador da mudança de postura do governo brasileiro em relação às questões raciais foi a Constituição de 1988, que reconheceu e condenou o racismo, punindo-o como crime inafiançável (Fry; Maggie, 2005). Em seguida, o governo brasileiro começou a contemplar as ações afirmativas como instrumento para combater o racismo e atenuar a discriminação e a desigualdade racial. Isso, em 1995, época do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foram criadas, pelo governo federal, uma série de comissões e produziram-se vários documentos oficiais para tratar do desafio do racismo no país (Zoninsein, 2006).

Num terceiro momento, a III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em setembro de 2001, em Durban, África do Sul, foi decisiva para a mudança radical do governo brasileiro no tocante às questões raciais. Até então, existiram algumas iniciativas pontuais de promoção de minorias étnicas, normalmente realizadas por associações e demais entidades da sociedade civil. A Conferência, em seu documento final, recomendou a adoção de iniciativas pontuais de promoção de minorias étnicas. Além disso, houve grande mobilização no Brasil em relação ao evento, sendo que o debate sobre discriminação racial tomou de assalto os meios de comunicação, e junto, a discussão sobre a adoção de políticas de ação afirmativa para o ingresso no ensino universitário (Heringer, 2006) .                                       

Uma das tentativas mais concretas empreendidas pelo governo federal em direção à aplicação de medidas de ações afirmativas, foram as portarias estabelecendo medidas inclusivas nos quadros administrativos do governo federal. Dentre elas encontram-se as que se referem ao Ministério da Justiça e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, ainda no governo FHC. No Ministério da Justiça, uma portaria instituiu um programa de ação afirmativa que propunha o preenchimento até o final de 2002 de cargos de direção e assessoramento superior, considerando uma proporcionalidade de 45% das vagas para grupos socialmente excluídos (20% para afro-descendentes, 20% para mulheres, e 5% para portadores de deficiência). Já no Ministério do Desenvolvimento Agrário, decretou-se uma portaria indicando que, a partir de agosto de 2002, as contratações ou a continuação de serviços MDA/ INCRA seriam feitos considerando comprovações de ‘desenvolvimento de ações de cunho social/ afirmativo, de resgate da cidadania, respeitando a diversidade – raça/ gênero – em seus quadros funcionais’ , do mesmo modo que os editais  de contratação incluiriam a necessária apresentação de propostas, por parte das empresas licitantes, de ações afirmativas. (Vieira, 2005).

Com a vitória do candidato Luís Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais de 2002 e a sua posse em 2003, as ações afirmativas e o tema da desigualdade racial continuou recebendo grande dedicação. Logo no início, o recém eleito presidente nomeou três afro-descendentes como ministros de estado e o (apenas) terceiro afro-descendente da Suprema-Corte, o Supremo Tribunal Federal, no caso Joaquim Barbosa. Além disso, criou uma secretaria subordinada diretamente ao seu gabinete com a missão de formular políticas públicas para combater a discriminação racial e a desigualdade, a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial (Zimonsien, 2006).

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Ações afirmativas, justiça e teoria do reconhecimento.: Como pensar o caso brasileiro?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3429, 20 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23053. Acesso em: 23 dez. 2024.

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