Sumário: Introdução; Ampliação do conceito jurídico de infrações de menor potencial ofensivo; Prevalência dos princípios sobre as normas; Lesão ao princípio constitucional da isonomia; Derrogação do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95; O princípio da retroatividade da lei penal mais benigna; Conclusões.
I – INTRODUÇÃO
Com grande repercussão na mídia nacional, especialmente em decorrência dos efeitos civis que dela irão derivar, foi sancionada no último dia 12 de julho de 2001 e publicada no dia seguinte, a Lei n.º 10.259, com previsão legal para entrar em vigor no dia 13 de janeiro de 2.002, a chamada Lei dos Juizados Especiais Federais, que teria por escopo a disciplina dos Juizados Especiais Cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal.
Ocorre que, não obstante o legislador ressaltar que a matéria seria exclusiva para as ações e processos de competência da Justiça Federal, o novo texto legal, ainda sob os efeitos da vacância, introduz profundas e sérias alterações na Lei n.º 9.099/95, notadamente no que pertine ao novo balizamento definidor da menor potencialidade delitiva.
Este estudo pretende contribuir para a reflexão e debate sobre esta nova lei e seus reflexos no nosso atual ordenamento penal e processual penal.
II – AMPLIAÇÃO DO CONCEITO JURÍDICO DE
INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVOA Constituição Federal, em seu artigo 98, previu a criação dos Juizados Especiais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo. Tal dispositivo tem a característica de norma constitucional de eficácia limitada, pois, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo exige complementação por intermédio de legislação infraconstitucional, para que possam surtir os efeitos essenciais, visados pelo Constituinte.(1) Vale dizer, a mediatização da norma constitucional fica relegada ao legislador ordinário, que tem a incumbência de fixar os parâmetros caracterizadores das infrações de menor potencial ofensivo.
Somente com a edição da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, tornou-se possível a aplicação do dispositivo constitucional em comento, pois estabeleceu os elementos formadores do conceito jurídico de infrações penais de menor potencial ofensivo, nos seguintes termos:
"Art. 61 – Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial." (grifo não-original).
Assim, o legislador ordinário demarcou os limites das infrações penais de menor potencial ofensivo utilizando-se de dois critérios: a natureza da infração, ao identificar a contravenção penal, independentemente da sanção cominada , e a expressão temporal das penas, metrificando a menor ofensividade como sendo própria de tipos penais de previsão sancionatória até o limite máximo de 1(um) ano.
Agora, com o advento da Lei n.º 10.259/2001, o legislador ordinário volta a utilizar-se da incumbência constitucional de conceituar as infrações penais de menor potencial ofensivo e promove expressivo alargamento em seu conceito para abranger, também, os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 (dois) anos e aqueles apenados com multa, assim:
"Art. 2º [...]
Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima dois anos, ou multa." (grifo não-original).
Pode-se afirmar, que o legislador manteve o critério de natureza do crime, concernente às contravenções penais, porém, ampliou o espectro de abrangência da menor potencialidade lesiva, no tocante ao critério de preceito penal secundário, pois, além de incluir todos os crimes cuja sanção cominada seja a de multa, desde que isoladamente prevista, também ampliou o conceito ao incluir os crimes, cuja pena máxima da privação da liberdade, abstratamente cominada, atinja o limite máximo de 2 (dois) anos, evidenciando, neste particular, inequívoca derrogação do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, que considerava de menor potencialidade lesiva os crimes cuja pena máxima da privação de liberdade não excedesse a 1 (um) ano.
Portanto, para efeitos de regulamentação do artigo 98 da Constituição é possível afirmar que, a partir da entrada em vigor da Lei n.º 10.259/01, numa visão sistêmica do ordenamento jurídico, serão infrações penais de menor potencial ofensivo: 1)As contravenções penais; 2) Os crimes punidos com pena de multa, desde que cominada isoladamente e 3) Os crimes punidos com pena privativa de liberdade, cuja pena máxima não seja superior a 2 (dois) anos, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
Poder-se-ia argumentar no sentido de que as disposições contidas na Lei n.º 10.259/01 não têm o condão de derrogar os preceitos determinados pela Lei n.º 9.099/95, uma vez que aquela tem aplicação específica nos feitos de competência da Justiça Federal, haja vista, que a nova lei, ao conceituar infração penal de menor potencial ofensivo, de forma mais abrangente, faz a expressa ressalva de que o aludido conceito é utilizado "para os efeitos desta lei" (art. 2º, par. único, da Lei n.º 10.259/01). Entretanto, este argumento não pode prosperar, pois, ao nosso sentir, os princípios de direito penal, MUITOS DELES INSCULPIDOS NA Carta Magna, repelem uma interpretação restritiva para o assunto em foco, tornando-se forçosa uma análise principiológica, que passa a ser objeto de análise.
III – PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS SOBRE AS NORMAS
Os princípios jurídicos desempenham basilar função no ordenamento jurídico, uma vez que deles se extraem preceitos integrativos e constitutivos, sobre os quais se assentarão todo o sistema normativo.
Os princípios jurídicos, assim como ar que respiramos, dão vida, identidade e organicidade ao sistema jurídico. Os princípios são as essências de sustentação do ordenamento jurídico. Situam-se onipresentemente (ou deveriam assim estar) na superestrutura normativa.
Portanto, embora a Lei n.º 10.259/01preceitue que o conceito dilatado de infrações de menor potencial ofensivo (pena máxima até 2 anos) só valha para os feitos(processos) que tramitem na Justiça Federal, tal comando legal há de ser desconsiderado devendo ser aplicado a todos os processos em que as condutas capituladas nas ações penais subsumam-se a nova baliza conceitual da menor ofensividade. Ou seja, as condutas típicas para as quais a pena abstrata não ultrapasse 2 anos, sejam elas quais forem, exigem a aplicação das disposições penais e processuais próprias dos Juizados Especiais Criminais.
IV– LESÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA
A Constituição brasileira de 1988 adotou a chamada igualdade substancial ou real em nosso o ordenamento jurídico, segundo a qual, "o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais"(2)
No caso do princípio constitucional da isonomia, a doutrina classifica-o como princípio jurídico fundamental, segundo o qual, "tem sempre uma força vinculante, de modo tal, a poder dizer-se ser a liberdade de conformação legislativa vinculada pelos princípios jurídicos gerais"(3). Princípio estatuído expressamente no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, deve espargir-se sobre a totalidade do sistema normativo, ordenando-o, dando coerência geral ao sistema.
Assim, não se adequa ao princípio constitucional da isonomia a exclusão dos efeitos Lei n.º 10.259/2001 para as infrações de menor potencial ofensivo objeto de conhecimento e processamento pela chamada Justiça Estadual. Não há como estabelecer diferenciações em matéria processual penal de molde a conceituar infração penal de menor potencial ofensivo para serem conhecidas e processadas na Justiça Federal, e infrações penais de menor potencial ofensivo para serem processadas pela Justiça Estadual, adotando como critério a expressão da pena abstratamente prevista.
É absolutamente óbvio que a nova Lei apresenta conteúdos penais, processuais penais, civis e processuais civis. No que tange a sua parcela de norma penal, fica claro que aos tipos penais com pena de detenção de até 2 anos, independente de ser de competência da Justiça Federal ou não, todos os "autores de fatos" terão o direito de não serem indiciados sem a lavratura de termos circustanciados, seguindo-se a audiência preliminar de conciliação, a composição dos danos civis e demais etapas processuais descritas nos artigos da Lei 9.099/95, consoante disciplina o art. 11, par. único, da Lei 10.259/01.
Como bem observa Celso Antônio Bandeira de Melo, "se a lei confere benefício a alguns que exerceram tais ou quais cargos, funções, atos, comportamentos, em passado próximo e os nega a quem os praticaram em passado mais remoto (ou vice-versa) estará delirando do preceito isonômico, a menos que existam nos próprios atos ou fatos, elementos, circunstâncias, aspectos relevantes em si mesmos, que os hajam tornado distintos quando sucedidos em momentos diferentes."(4)
Portanto, forçoso concluir que a menção contida na Lei n.º 10.259/01, art. 2º, par. único, no sentido de que o conceito de menor potencial ofensivo ali arquitetado, só é aplicável para os efeitos desta lei, constitui-se em um nada jurídico, sem nenhuma aplicabilidade, pois, o princípio da isonomia substancial afasta a distinção feita pelo legislador ordinário.
Aliás, "a igualdade não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita na ordem jurídica"(5),
Assim, os critérios de competência que delimitam as matérias de competência da jurisdição penal federal não têm o condão e nem força para estabelecer diferenciações conceituais de caráter e efeitos penais excluindo direitos penais para agentes ou acusados cujos processos e julgamentos tenham que ser realizados pela Justiça Comum.
Ora, a tipicidade da ilicitude não se modifica diante da natureza ou espécie de jurisdição. A natureza da menor ofensividade balizada sobre o quantum de pena é única e deve ser adotada nas duas estruturas de jurisdição, penal comum, Justiça Federal e Justiça Estadual. Seria aviltamento ao princípio da isonomia admitir-se que fatos típicos de mesma capitulação penal, apenas por serem de competência de uma das espécies de jurisdição penal tivessem a conceituação de menor ofensividade, e recebesse tratamento processual diferente, e perante a Jurisdição Estadual fossem entendimentos como de médio potencial ofensivo ou alto potencial ofensivo, recebendo tratamento processual diverso e mais prejudicial.
V – DERROGAÇÃO DO ARTIGO 61 DA LEI n.º 9.099/95
As leis são como seres vivos, têm um ciclo de vida: nascem, existem e morrem. A vigência de uma lei cessa com a sua revogação.
Em nosso ordenamento jurídico, a disciplina da vigência das leis é regulada pela chamada Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei n.º 4.657/42 que, na realidade, não é uma lei introdutória ao Código Civil apenas, mas uma lei de introdução às leis, por prescrever princípios gerais ao ordenamento jurídico, sem excetuar as especificidades dos campos do direito positivado. Contém normas que se constituem em coordenadas essenciais às demais normas jurídicas (civis, penais, processuais, etc...), que não produziriam efeitos sem seus comandos. Ademais, não se destina a reger as relações de vida, mas sim às normas, uma vez que indica como interpretá-las ou aplicá-las, determinando-lhes a vigência e a eficácia.(6)
A Lei de Introdução ao Código Civil é, também, o repositório de princípios e normas para a solução de conflitos de leis no tempo, o chamado conflito intertemporal de leis.
A cessação da vigência das lei é verificada de dois modos. Pode a lei conter um elemento pelo qual a vigência se extingue naturalmente, caso em que estar-se-á diante de lei de temporária. Pode, por outro lado, não conter elemento delimitador da vigência, possuindo duração indeterminada, o que caracteriza as leis de vigência permanente. Neste caso, a cessação da vigência só será possível, pela superveniência de outra norma, possuidora de conteúdo revogatório.
Revogar é tornar sem efeito uma norma, retirando a sua obrigatoriedade(7), que pode ser entendida do ponto de vista da extensão da norma superveniente (ab-rogação e derrogação) ou sob o ângulo da forma de atuação da norma revogatória (revogação tácita e expressa)
Quanto ao grau de extensão a norma revogatória pode operar a derrogação ou a ab-rogação da norma pretérita. Estamos diante da ab-rogação quando há supressão integral da norma anterior, em razão da nova lei regular inteiramente a matéria. Estamos diante da derrogação quando a lei nova modifica ou altera a norma anterior parcialmente sem efeito, que assim não perde sua vigência, haja vista que somente os dispositivos maculados é que não mais vigerão, permanecendo incólume a parte não atingida pela norma derrogatória.
Relativamente à forma de atuação, a lei revogadora pode ser expressa, se houver declaração de qual dispositivo será revogado, ou tácita. Consoante lição de Maria Helena Diniz, ocorrerá revogação tácita, "quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial (derrogação) ou inteiramente (ab-rogação) a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão ´revogam-se as disposições em contrário´, por ser ser supérflua".(8)(grifo não-original).
A revogação das normas é tratada pelo artigo 2º e seu § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que assim preceitua:
"Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1.º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior"
Relembradas as coordenadas da lei de Introdução ao Código Civil ressumbra evidente que a Lei n.º 9.099/95 não se enquadra na classificação de lei temporária, ao contrário, cuida-se de lei de vigência permanente, uma vez que o seu texto não traz nenhum dispositivo estabelecendo o término da sua vigência, razão pela qual, permite-se concluir ser inteiramente aplicável o disposto no artigo 2º e seu §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil à Lei n.º 9.099/95.
Como bem observa Caio Mário da Silva Pereira: "No Direito Brasileiro, como no novo Código Italiano(art.15), não ficou ao arbítrio do intérprete pesquisar quando ocorre a revogação tácita. Entendeu o Legislador fixar sob a forma normativa e obrigatória regras que norteiam o próprio intérprete quando se lhe defronta com o problema da investigação se a lei nova, sem mencioná-la expressamente, trouxe revogação à lei antiga"(9)
Como se vê, a Lei nova operou a revogação tácita da lei anterior. Nesses casos, o princípio informador é o da incompatibilidade, segundo o qual, é inadmissível que o legislador, aprovando uma contradição material de seus próprios comandos, adote uma atitude insustentável e disponha diferentemente de um mesmo assunto. Na incompatibilidade da convivência simultânea de normas incompatíveis, toda a matéria constante da revogação tácita sujeita-se ao critério da posterioridade da lei, no qual, prevalece a lei mais recente, quando o legislador tenha manifestado vontade contraditória.(10)
Na lição de Hans Kelsen, "se se tratar de normas gerais estabelecidas pelo mesmo órgão em diferentes ocasiões, a validade da norma editada em último lugar sobreleva à norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz".(11) Trata-se da aplicação do critério "lex posterior derogat legi priori", segundo o qual estando as duas normas no mesmo nível hierárquico, a mais recente prevalece sobre a remota.
Portanto, a Lei n.º 10.259/01, no que se refere à utilização de quantidade de pena cominada aos crimes, para definir a menor potencialidade ofensiva, abarcando os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 anos, acabou por efetuar a derrogação tácita do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, na parte que considera infração penal de menor potencial ofensivo, os crimes que a lei comine pena máxima até 1 ano, uma vez que ambos dispositivos disciplinam a mesma matéria, utilizando-se do mesmo critério determinante, o tempo. A Lei 9.099/95 entendeu de balizar a menor ofensividade adotando como baliza o tempo máximo de 1 de sanção penal. A Lei 10.259/01 também adotou o critério temporal como determinante dos tipos penais de menor potencial ofensivo mas ampliou para 2 anos de sanção penal o tempo como elemento identificador. Podemos então entender que a menor ofensividade no Brasil, seja para os crimes de competência da Justiça Federal seja para os da Justiça Comum está delimitada para todas as espécies penais cuja reprimenda sancionatória não for superior a 2 anos.
VI - O PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENIGNA
O conflito temporal de leis penais é resolvido, basicamente, por dois critérios. O primeiro, trata-se da irretroatividade da lei penal, consectário do princípio da reserva legal, expressamente previsto no artigo 5º, XL, primeira parte, da Constituição Federal e no artigo 2º, caput, do Código Penal, segundo o qual, "ninguém pode ser sancionado penalmente em relação a um fato que na época de sua realização era irrelevante (ou prejudicial ao réu) para o Direito Penal"(12). Contudo, este princípio não é absoluto, sofrendo significativa relatividade, que se constitui no segundo critério tendente a solucionar a sucessão de leis penais no tempo.
Por este segundo critério, aplica-se o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no mesmo dispositivo constitucional supra-aludido, em sua segunda parte, e no parágrafo único do artigo 2 º do Código Penal, que assim estatui:
"Art. 2º [...]
Parágrafo único. A lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado"
Na lição de Cezar Roberto Bitencourt "Pode ocorrer que a lei nova, mesmo sem descriminalizar, dê tratamento mais favorável ao sujeito. Mesmo que a sentença condenatória encontre-se em fase de execução, prevalece a "lex mitior" que, de qualquer modo, favorecer o agente, nos estritos termos do parágrafo único do artigo 2º do CP".(13)
No caso de a lei ordinária alargar o conceito jurídico de infração penal de menor potencial ofensivo, como é o caso da Lei n.º10.259/01, há um inegável benefício aos agentes que praticaram esta espécie de ilícito penal. Como é cediço, com a criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil, instaurou-se um novo modelo de Justiça Penal, pautada, na consensualidade e com vistas à despenalização. A propósito, vale colacionar a opinião de Ada Pellegrini Grinover, et al:
"O Poder Político (Legislativo e Executivo), dando uma reviravolta na sua clássica política criminal fundada na "crença" dissuasória da pena severa (deterrance), corajosa e auspiciosamente, está disposto a testar uma nova via reativa ao delito de pequena e média gravidade, pondo em prática um dos mais avançados programas de despenalização do mundo."(14)
Na esfera penal, o impacto de uma infração penal ser considerada de menor potencial ofensivo foi e é enorme, basta lembrar as hipóteses em que os crimes, anteriormente considerados de ação penal pública incondicionada e que, após a instituição dos Juizados Especiais Criminais, passaram a figurar como crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, como foram os casos da lesão corporal leve ou culposa (art. 88, da Lei n.º 9.099/95).
Os institutos despenalizadores, tais como, composição do danos civis, transação penal e suspensão condicional do processo penal influenciaram diretamente no jus puniendi, pois mitigaram a indisponibilidade da ação penal pública, bem como, criaram um ambiente em que a jurisdição penal passou a adotar a consensualidade , no ressarcimento dos prejuízos à vítima, na renúncia ao direito de queixa, o que acabou por relativizar o poder de punir do Estado.
A ampliação do conceito de menor potencialidade lesiva, operada pela Lei n.º 10.259/01, alcançando crimes cuja pena máxima de privação de liberdade cominada não ultrapasse 2 (dois) anos, é absolutamente benéfica ao réu, culminando, destarte, com a derrogação da Lei n.º 9.099/95, neste particular, haja vista que esta lei define a menor potencialidade lesiva como característica dos crimes cuja pena máxima privativa de liberdade não exceda a 1 ano.
Assim, em homenagem ao princípio da retroatividade da Lei Penal mais benéfica e, considerando que a Lei em epígrafe é superveniente à Lei n.º 9.099/95 e trata da mesma matéria, forçoso concluir-se que a Lei 10.259/01 derrogou aquela, sendo absolutamente irrelevante esta considerar que os requisitos aptos a conceituar as infrações penais de menor potencial ofensivo são aplicáveis somente para os efeitos da Lei n.º 10.259/01. Desta forma, os processos em curso ou ainda não ajuizados perante à Justiça Estadual que noticiem a ocorrência de crimes, cuja pena máxima cominada no tipo legal não seja superior a 2 anos, embora supere o limite de 1 ano, devem receber a incidência dos institutos despenalizadores, contidos na Lei dos Juizados Especiais, em respeito ao princípio da retroatividade da lei penal mitior.
Contudo, como os princípios jurídicos caracterizam-se pela função harmonizadora do sistema, ao nosso sentir, a retroatividade da lei benéfica só alcançará os processos em curso ou ainda não ajuizados, não tendo o condão de alcançar aqueles em que já houver sentença transitada em julgado, conseqüência do princípio da coisa julgada, expressamente positivado no art. 5º, inciso XXXVI, da Consttuição Federal.
VII – CONCLUSÕES:
1 – A referência às infrações penais de menor potencial ofensivo, contida no art. 98, I, da Constituição Federal, quanto à aplicabilidade, inclui-se dentre as normas constitucionais de eficácia limitada. Assim, perfeitamente possível ao legislador ordinário preencher o conteúdo desta norma, ampliando o seu conceito em norma superveniente à Lei n.º 9.099/95.
2 – O art. 2º, par. único, da Lei n.° 10.259/01, ao conceituar crime de menor potencial ofensivo com base no critério de cominação máxima de pena aplicada (2 anos), efetuou a derrogação tácita do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, por ser lei posterior e cuidar do mesmo assunto, evidenciando a incompatibilidade das normas, neste particular.
3 - Com a ampliação do conceito de menor potencialidade lesiva, operada pela Lei n.º 10.259/01, numa exegese sistêmica entre as duas leis que tratam dos Juizados Especiais Criminais, pode-se afirmar que são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo:
A) Todas as contravenções penais;
B) Os crimes punidos com pena de multa, desde que cominada isoladamente;
C) Os crimes punidos com pena privativa de liberdade, cuja pena máxima não seja superior a 2 (dois) anos, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
4 – Considerando a superioridade hierárquica dos princípios jurídicos sobre as normas, é possível afirmar que a expressão limitadora do conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, contido na Lei 10.259/01, aos feitos de competência na Justiça Federal, não tem nenhum efeito, uma vez que fere frontalmente o princípio da isonomia, sendo imperiosa a extensão do conceito aos feitos que tramitam na Justiça Estadual.
5 – Considerando que os institutos despenalizadores, instituídos pelos Juizados Especiais Criminais possuem natureza penal, uma vez que influem diretamente no jus puniendi e na natureza da ação penal de determinados delitos, a ampliação do conceito de crimes menor potencial ofensivo, abarcando aqueles cuja pena máxima comina não ultrapassa 2 anos, retroagirá para alcançar os crimes perpetrados antes de sua vigência, desde que não tenha havido trânsito em julgado de decisão penal em respeito ao princípio da retroatividade da lei penal benéfica ao réu.
Notas
1.É a lição de José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 118.
2.Celso Antônio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993, p.35.
3.Neste sentido, Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 56.
4.Obra citada, p. 34.
5.Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional.. São Paulo:Saraiva, 1998, p. 182.
6.É a posição de Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva,1996, p.3-4.
7.Conforme conceitua Maria Helena Diniz, op. cit. p.64.
8.op. cit.p. 65.
9.In Instituições de Direito Civil. Vol I. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 20.
10.Neste sentido, Caio Mário da Silva Pereira. op. cit. p. 84.
11.Hans Kelsen, citado por Maria Helena Diniz, in op. cit. p. 70.
12.Luiz Regis Prado. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: RT, 2000, p. 104.
13.Cezar Roberto Bitencourt. Manual de Direito Penal. Pare Geral. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 108.
14.Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei n.º 9.099, de 26/09/1995. São Paulo: RT, 1996, p. 16.