“Lo diré una vez más; es una absoluta ilusión suponer que un sentimiento que ha pasado de siglo en siglo, y de generación en generación, no puede ser enteramente falso”. Pierre Bayle
O direito é, desde qualquer ponto de vista, um fenômeno essencialmente humano, uma dimensão da vida cujo sentido e função surgem exclusivamente da interação ou do intercâmbio social, o qual, por sua vez, requer mais de um cérebro-mente. Resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas temos sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em sociedade. Outras espécies como as dos chimpanzés têm pressões seletivas muito similares e, ainda assim, não desenvolveram nossos sistemas de normas estabelecidos através de códigos explícitos.
Cabem poucas dúvidas acerca do caráter do direito como instrumento ou técnica destinada à solução pacífica de conflitos individuais e grupais e para manter vivo um limite, ainda que mínimo, de altruísmo e cooperação, de ordem e segurança, entre os membros de nossa espécie. Contudo, esse caráter distintivo não significa que o direito (assim como a moral) se veja livre de qualquer tipo de fator ou influência que provém das circunstâncias específicas em que se produziu a evolução coordenada do cérebro humano, dos grupos de hominídeos e de suas soluções culturais.
Pelo que se sabe, os humanos somos os únicos seres alocados na terra capazes de produzir uma estratégica ferramenta adaptativa, cultural e institucional como o direito, que permite a geração, a articulação e o desenvolvimento dos vínculos sociais relacionais com mais rapidez, segurança, previsibilidade e eficácia; quer dizer, com um sentido de garantia de previsibilidade e segurança no tráfego das relações sociais fixadas no contexto dos grupos e dos indivíduos, como destinatários naturais das normas de conduta que a si mesmos se põem e pelas quais iluminam e fundamentam a solidariedade de sua convivência ética na sociedade – que outra coisa não é, nem outro objetivo se propõe o direito.
Os sentimentos morais e nossa capacidade ética derivam de nossa arquitetura cognitiva inata e os códigos éticos e jurídicos, por sua vez, surgiram como produtos da interação entre a biologia e a cultura. A moral e a justiça, a despeito das influências culturais, têm uma base orgânica no cérebro humano ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir, compreender e aplicar. Somente os seres humanos individuais têm normas jurídicas e sentido de justiça, e os têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. Somos seres éticos por natureza e o cérebro humano, base da linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo.
E uma vez que não podem ser considerados como totalmente independentes da constituição e do funcionamento deste órgão adquirido na história evolutiva própria de nossa espécie, a ética, a justiça e o direito não se tornam inteligíveis se não os colocamos em relação sistemática com os componentes e predisposições inatas da constituição biológica humana. Como sustenta Antonio Damasio (1993), as convenções sociais e a ética constituem estratégias adquiridas para a sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, mas tais habilidades adquiridas encontram um suporte neurofisiológico nos sistemas neuronais de base que executam os comportamentos instintivos. De tal modo, ignorar ou rechaçar as justificações naturalistas e neurobiológicas dos mesmos é, sem mais, um risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate.
Mas é importante entender que se trata de um processo de influências mutuas. Nossas valorações são, em boa medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interação: (A) um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e (B) um conjunto de valores morais do grupo que é uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão) dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada época. Isso significa as primeiras expressões normativas produzidas pelo cérebro-mente humano deveram cambiar o próprio entorno de desenvolvimento da inteligência social, a qual permitiu que outras normas mais complexas encontrassem uma alocação na existência essencialmente social da humanidade.
De ser assim, nos encontramos com um papel importantíssimo da convivência social: o de dirigir o componente inato humano até certos domínios particulares. Cabe imaginar numerosos guiões evolutivos nos quais um esquema assim, de interação entre a natureza individual de seres que vivem em grupos e a presença de valores culturais coletivos, proporciona vantagens adaptativas ingentes. Mas dentro dessa multitude de hipóteses há uma que estamos obrigados a considerar de imediato: a do direito como parte do entorno cultural e como resultado dos esforços coletivos de cérebros humanos ao longo de muitas gerações.
A origem e evolução de nosso “comportamento contratual”, quer dizer, do direito como artefato da cultura, não é um produto cultural que responde muito direta e racionalmente às condições totalmente recentes, senão um aspecto intrinsecamente humano e tão próprio de nossa espécie que, expandidos múltiplas vezes a uma dimensão coletiva, evolucionaram em preceitos morais e normas jurídicas. Isto permite entender que os preceitos morais e as normas jurídicas são o resultado de um longo caminho de adaptação ao largo do tempo transcorrido desde o aparecimento de nossa espécie. Como a acumulação e a transmissão cultural é adaptativa desde sua própria origem ao permitir que os indivíduos diminuam o tempo e os custos necessários para o aprendizado (individual e social) de uma conduta em termos de eficácia evolutiva (Boyd & Richerson, 1985), respeito do artefato cultural denominado direito cabe dizer o mesmo.
Nesse sentido, o direito representa o desenvolvimento de um conjunto de estratégias normativas resultantes de um processo histórico-evolutivo como qualquer outro, que foi criando, através da interação da cultura com a biologia, um complexo desenho de normas de conduta para solucionar problemas recorrentes relacionados com a crescente complexidade da vida em grupo. Tais estratégias supõem a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando, modelando e separando por uma via não conflituosa os campos em que os interesses individuais podem (ou devem) ser válida e socialmente exercidos; isto é, plasmam publicamente não somente nossa capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sócio-cultural, nossas ações e interações sociais. De fato, a denominada “certeza jurídica” pode ser entendida muito bem como solução sócio-cultural aos problemas adaptativos relacionados com a capacidade e necessidade de inferir e antecipar as ações dos membros do grupo e suas consequências.
Esta forma de explicar o aparecimento do fenômeno jurídico sustenta que dispor de normas de conduta supõe uma vantagem adaptativa, com o qual a resposta à pergunta sobre por que existe o direito ou que constituiu (ou que constitui) a vantagem seletiva ou adaptativa do direito, implica inevitavelmente à busca dos fundamentos antropológicos da natureza e da conduta humana. Quer dizer, uma vez que o direito e a ética carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana - indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas -, é necessário, para compor o conteúdo e a função do direito e da justiça, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos. O mesmo é dizer que se as teorias, princípios, valores e normas jurídicas necessitam de determinados mecanismos cerebrais para ser processadas, elaboradas, compreendidas, obedecidas, seguidas e aplicadas, é preciso explicar qual é a razão da existência de ditos mecanismos.
Pois bem, se damos por boa a afirmação anterior, chegamos a uma cadeia causal que justifica parte do processo de surgimento do direito: o direito e as normas jurídicas existem unicamente porque o homem, como ser neuronal e como paradigma das espécies culturais, estabelece relações sociais. Não obstante, seguimos sem conhecer por que a vantagem adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez o que a quem”. Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as consequências das ações de nossos congêneres, mas, por outro lado, não somos capazes de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.
Para intentar entender e superar a obscuridade tradicional das discussões teóricas na análise do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural do mesmo, senão que intenta dilucidar para que serve o direito no âmbito da existência humana. O ponto de partida funcional não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou tradicional) de condicionar o conhecimento jurídico aos limites obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria experiência humana. Não é necessário propor a existência de verdades jurídicas independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência do direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo.
E uma vez situado este tipo de análise sobre o fenômeno jurídico em uma dimensão propriamente evolucionista e funcional, parece razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que este fenômeno se encontre nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto é, de que o direito aparece e se justifica pela necessidade de competir com êxito em uma vida social complexa. Ao enfrentarem-se nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal, apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo capazes de manejar o universo de normas e valores.
Trata-se, insistimos, de uma hipótese. Mas é ao menos a mesma que justifica o tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas (Humphrey, 1976). Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de interação de certas formas elementares de sociabilidade que parecem estar arraigadas na estrutura de nossa arquitetura mental.
Quais seriam ditas formas?
Começaremos por admitir que o objeto do discurso jurídico, como práxis de um contexto vital, ético e cultural, só pode ser o homem como in-divíduo (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos, que significa “indiviso”), como pessoa: o homem em sentido ontológico-relacional, situado no tempo e no espaço, em sua história e em sua natureza, como o originário sujeito de liberdade e autonomia – e, portanto, de responsabilidade -, capaz de altruísmo, cooperação, intercâmbio recíproco e de egoísmo no trato de suas relações sociais - e, por isso, titular de dignidade e de culpa. Quer dizer, como o conjunto de relações em que se encontra e para o qual está desenhado para estabelecer: o ser humano, em sua dimensão social, é ponto de partida e de chegada, o núcleo duro e invariável, do fenômeno jurídico.
Por outro lado, parece estar além de toda dúvida razoável o fato de que as relações jurídicas estabelecidas pelo ser humano nada mais são do que aqueles vínculos sociais relacionais que o discurso jurídico como tal identifica. Como explica Emilio Betti (1995), as relações jurídicas têm seu substrato em relações sociais existentes já antes e inclusive fora da ordem jurídica: relações que o direito não cria, mas encontra ante si, prevê e orienta na diretiva de categorias e avaliações normativas. Isso significa que sempre se legitima o direito a partir do modo em que a cada um se confere competência como pessoa, sobretudo no que diz respeito aos direitos constitutivos do indivíduo, ou seja, aos direitos que habilitam publicamente a sua respectiva existência como cidadão. E embora o direito não esgote toda a nossa relação de vida, o certo é que, uma vez definida em termos normativos, toda a relação jurídica repousa, em última instância, em uma relação social, a qual, por sua vez, tem o indivíduo como sujeito.
Por conseguinte, a função e a finalidade de todo e qualquer discurso prático normativo consiste na articulação combinada dos vínculos sociais relacionais que subjazem a um determinado tipo de relação jurídica, no sentido de e com o objetivo de, potenciando seus melhores lados e eliminando seus lados destrutivos, atuar o direito em relação da pessoa e para a pessoa , isto é, ao redor do compromisso ético que congregue liberdade, igualdade e fraternidade na construção conjunta de alternativas e possibilidades reais de uma vida digna de ser vivida.
Um direito concebido desta maneira é relacional, dinâmico, histórico e pessoal, dado que a forma primeira de toda e qualquer relação é a pessoa. Trata-se, sem mais, de conceber uma ontologia do pessoal pensada como ontologia relacional – e não de qualquer outra peculiar ontologia substancialista –, em razão da qual é de grande importância e significado o ponto de vista do reconhecimento e do respeito ao outro: somente pode ser pessoa quem reconhece ao outro como pessoa (Kaufmann, 1997). O que implica que somente o direito que garanta ao homem o que lhe corresponde em suas relações com outras pessoas pode aspirar a ver-se reconhecido na consciência dos indivíduos; quer dizer, sendo a sociabilidade parte da natureza do homem, quando dirigido à realização de valores legitimamente compartidos e das normas jurídicas que os conceitualizam.
Resulta evidente, portanto, que o tipo de natureza humana que subjaz a este tipo de argumento constitui o fundamento material, ontológico e metodológico do fenômeno jurídico aqui defendido e, em igual medida, configura e condiciona os vínculos sociais relacionais sobre os quais o direito incide. Em realidade, a concepção que adotamos acerca da natureza humana e que serve de fundamento às ideias aqui formuladas reside no fato de que o ser humano, por ser um produto mais da coevolução biológica e cultural - desenhado pela seleção natural para resolver determinados problemas adaptativos relacionados com a constituição de uma vida socialmente organizada - toma em consideração as limitações com as quais nascemos (que impõem constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória da cultura e limitam o rol das variações culturais possíveis) e que, de uma maneira ou outra, definem e circunscrevem as condições de possibilidade do direito e de sua realização prático-concreta.
E uma vez que sem vida social nada é possível para o indivíduo, nem sequer o indivíduo mesmo, seu existir separado, o problema passa a ser o de saber se é possível entender que nossa mente está dotada, a exemplo do que ocorre com o sentido da vista e a capacidade para a linguagem, de módulos específicos ou sistemas especializados dedicados a percepção e processamento de informações acerca de algo que tem um componente tão aparentemente difícil de manejar como, por exemplo, as relações sociais e, conseqüentemente, as relações jurídicas.
Centrando nosso interesse no que a analogia permite-nos compreender, diremos o seguinte: uma vez admitido que o direito define, em termos normativos, a tessitura social e que toda relação jurídica consiste, em última instância, em uma relação social, temos que reconhecer que se retiramos o “véu jurídico-normativo” que recobre as relações consideradas jurídicas nos encontramos diante de vínculos sociais relacionais já antes estabelecidos pelo homem, e sobre os quais, unicamente, as normas jurídicas incidem atribuindo direitos e deveres recíprocos aos sujeitos envolvidos. Nada mais.
Agora, são infinitos e ilimitados os tipos de relações jurídicas tuteladas pelo direito ou, ao contrário, existem constrições inatas no pensamento ético-social humano que restringem – de forma similar ao que ocorre com a linguagem – o conjunto dos vínculos sociais relacionais humanamente possíveis (que subjazem às relações jurídicas) a um subconjunto relativamente pequeno de sistemas lógicos possíveis? Qual seria o núcleo duro constitutivo desse conjunto de vínculos sociais relacionais através dos quais os humanos constroem estilos aprovados de interação e estrutura social regulados pelo direito (as relações jurídicas)? De não ser possível responder a estas questões, o sentido e a função do direito no universo do existir humano seguirá sendo um enigma, sempre aberto as mais disparatadas suposições acadêmicas. Vejamos por parte.
Em 1993, Alan P. Fiske, apoiado em suas próprias observações antropológicas e na leitura dentro de sua teoria dos descobrimentos de um grande número de autores em múltiplos campos - o que ele chama una aproximação “indutiva” -, desenvolveu um modelo de relações sociais humanas que constituem uma sorte de arquétipos fundamentais inatos, que todas as culturas humanas utilizam — normalmente combinando vários deles— para definir relações e roles típicos, com os que logo organizar os diversos âmbitos sociais. Sobre a base deste trabalho, Fiske - cuja inovadora proposta seguimos não somente por sua boa qualidade formal senão também por sua deslumbrante riqueza empírica – propõe que existem quatro formas elementares de sociabilidade, quatro modelos básicos para compreender as relações sociais.
Os modelos elementares propostos por Fiske são:
- Comunal Sharing (comunidade): Relação de equivalência em que as pessoas têm um sentido de identidade comum, isto é, se fundem para o propósito da relação, de maneira que os limites individuais se tornam irrelevantes. As pessoas se fixam na pertença grupal e na identidade comum, não na individualidade. Importa-lhes o grupo, superior a cada um dos indivíduos, a pertença a ela e o contraste com aqueles que não pertencem.
- Authority Ranking (autoridade): Relação dentro da qual cada um é considerado como possuidor de uma importância, um status ou rango social determinado por certa característica. São relações assimétricas que se materializam em uma inclusão hierárquica de sujeitos de rangos mais baixos como subordinados na esfera de outros de rango mais alto. Segundo Fiske, a subordinação que surge da aplicação deste modelo é legítima; os inferiores respeitam a relação de subordinação; mostram deferência, lealdade e obediência, a câmbio do qual recebem proteção, ajuda e apoio de seus líderes.
- Equality Matching (igualdade): Relação em que existe um vínculo relacional igualitário entre pares, que são indivíduos distintos e separados, mas iguais aos efeitos da relação. A presença social (contribuição, benefícios, influência, etc.) de cada agente corresponde “um a um” com a do outro. As equivalências categóricas permitem que as relações se equilibrem e se expressem em tomar turnos, reciprocidade em espécie, vingança “olho por olho”, distribuição em partes iguais... Para conservar a igualdade, os bens e interesses em jogo devem ser qualitativamente iguais, ou fazer-se equivalentes por um acordo social.
- Market Pricing (proporcionalidade): Relação mediada por valores determinados por um sistema de mercado. Os indivíduos decidem interagir socialmente se resulta racional fazê-lo de acordo a esses valores, que definem uma métrica universal (em preço, utilidade ou tempo) com a qual é possível comparar quantitativamente pessoas e recursos, sejam ou não qualitativamente semelhantes. A avaliação se expressa em termos de uma razão de intercambio, o preço. Os agentes estruturam sua interação de maneira proporcional a essas razões de intercambio.
Ao sustentar que estas quatro estruturas vinculantes elementares e suas variações justificam todas as relações sociais entre todos os seres humanos de todas as culturas, Fiske sugere, como única explicação possível deste fato, que estão arraigadas na complexa estrutura da mente humana, isto é, que vão estreitamente ligadas em nosso programa ontogenético ao desenvolvimento da faculdade, e ainda da necessidade emocional, de travar relações sociais. São estruturas formais; em conjunto formam uma espécie de "gramática generativa" das relações sociais, que é enriquecida de conteúdo concreto pela tradição de cada cultura. Como explica Steven Pinker (2002), cada um dos quatro modelos emerge nas diversas culturas em uma grande diversidade de ações sociais, crenças ou juízos, pelo que não podem ser o produto de condições particulares da experiência subjetiva de cada indivíduo, senão que devem ser produtos endógenos da mente humana gerados por modelos universalmente compartidos de e para as relações sociais.
Os quatro modelos são utilizados pelos participantes em uma sociedade para coordenar suas ações em relações sociais significativas: estruturam os roles focal da sociedade, permitem explicar, compreender e predizer a ação dos demais e, portanto, ajustar-se a ela de uma maneira que os outros podem por sua vez identificar e compreender. Por outra parte, possuem uma função normativa, enquanto estruturam as expectativas mútuas entre os participantes em uma relação, e também o que se espera de terceiros (por exemplo, de quem mantém outras relações com esses participantes e devem eventualmente sancionar as transgressões) e de quartos ( por exemplo, quem observa se os terceiros cumprem ou não em sancionar aos transgressores com os quais se relacionam).
Esta ideia proposta por Fiske – com exploração do significado empírico de que a arquitetura cognitiva de nossas mentes seja constitutivamente social – parece dar resposta a muitos dos interrogantes sobre a forma como a organização de domínio específico da mente humana afeta as relações sociais e condiciona nossas intuições morais: o decidir entre o que é bom e o que não o é em relação aos próprios interesses e dos demais supõe o sentido do que é socialmente apropriado no entorno em que estabelecemos nossos vínculos sociais relacionais.
Como não é possível tratar de relação jurídica (isto é, as relações pessoais dos indivíduos humanos que o discurso jurídico identifica como tal) sem tomar como referência a relação social que a consubstancia e lhe subjaz, um simples exame das características dos quatro tipos de vínculos sociais relacionais propostos por Fiske permite descobrir poderosas e firmes vias de articulação jurídica dessas formas de vida social: modos adequados de combiná-las, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos.
O substancial da contribuição de Fiske não é, claro está, somente o de demonstrar como em culturas distintas se dão atividades humanas que podem facilmente enquadrar-se em algum destes quatro modelos. O importante é que este antropólogo defende que tal difusão módulo/domínio específico se dá porque está incorporada de forma necessária na mente humana, ou seja, de que, em particular no que diz respeito ao contexto de nossa vida social, estamos cognitivamente dotados com ao menos quatro modos relativamente independentes para processar informação de tipo social relacional, cada um dos quatro provido de um peculiar filtro excludente de informação.
Outro importante aporte do trabalho de Fiske consiste precisamente em admitir que, para manifestar-se, esses quatro modelos relacionais necessitam da aplicação de regras culturais específicas. Os modelos básicos para a construção das relações sociais são adotados, aplicados, modificados e incorporados à matriz de símbolos e significados que constituem particularidades da cultura humana. Ao incorporarem-se a uma cultura particular, os modelos tomam uma forma peculiar e manifestam aspectos idiossincrásicos. Como as culturas humanas exibem uma quantidade assombrosa de variantes e combinações destas relações elementares para organizar as funções sociais básicas, a experiência histórica indica a cada sociedade que modelos ou composições deles dão bons resultados em seu contexto, movendo-a a cambiar o desenho conforme variam as circunstâncias.
Não obstante, esses quatro modelos, apesar de sua variabilidade em suas manifestações culturais são, segundo Fiske, analiticamente discerníveis. Seu status de entidades culturais é uma característica e uma importante qualidade distintiva dos modelos. Assim, os quatro modelos de sociabilidade proporcionam os fundamentos para a constituição cultural de relações sociais e de status. Isto é, proporcionam o conjunto de marcos básico para a construção cultural do mundo social. Cada cultura os estende, elabora, combina e aplica de forma diferente para alumbrar o que chamamos famílias, alianças, sistemas matrimoniais, sistemas jurídicos, políticos e econômicos, e demais relações, redes e grupos sociais.
Este é um descobrimento que, por sua natureza e riqueza empírica, deveria fazer refletir profundamente a qualquer um que pretenda fazer filosofia ou ciência jurídica. Isto pela simples razão de que se o direito não é algo meramente substancial, unicamente normativo ou simplesmente nominal, senão que acontece nas relações intersubjetivas em que os homens se reconhecem recíproca e legitimamente como pessoas, o fato de que nossa existência seja ontologicamente coexistencial se traduz em que o sentido do direito e o próprio processo de sua realização estão na convivência humana, cuja natureza repousa nas quatro formas de vida social arraigadas em nossa arquitetura cognitiva e que são exibidos por qualquer cultura humana.
O modelo proposto por Fiske permite-nos explorar o problema da função do direito e o da relação entre o natural e o cultural desde uma perspectiva distinta, capaz de articular a diversidade das formas culturais com a unidade do gênero humano: uma natureza humana comum em que a mente humana não é um recipiente vazio à espera de ser completado por um número infinito e ilimitado de relações sociais tuteladas pelo direito, senão que está constituída por um conjunto muito rico e diverso de mecanismos específicos produto da evolução natural e que inclui capacidades cognitivas relacionais especificamente sociais.
Este peculiar modelo unificado das relações sociais, fundado na natureza humana, é central para a finalidade do direito porque permite a sua utilização e manipulação para enfrentar-se, de forma real e factível, às hipertrofias e hipotrofias dos distintos (quatro) vínculos sociais relacionais; quer dizer, aos excessos e defeitos das relações de comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos sociais de igualdade nos que se inserta a própria relação de cidadania. Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também à fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições anti-acumulatórias e anti-reacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade; as restrições anti-alienatórias e anti-acumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da vida social comunitária; as restrições anti-alienatórias e anti-acumulatórias ao uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a “eterna vigilância cidadã” que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte do Estado afete a qualquer dos quatro vínculos sociais relacionais e degrade a res publica a imperium.
Em definitivo, uma vez já dado por assentado que toda a relação jurídica tem por base uma relação social – portanto, em um dos quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo homem –, isto é, que as relações consideradas jurídicas são aquelas relações sociais dos indivíduos humanos sobre as quais incide uma norma jurídica atribuindo direitos e deveres recíprocos, o objeto e a função de todo direito só pode ser o homem, residindo sua funcionalidade na articulação combinada do conjunto dos vínculos sociais relacionais em que o indivíduo se situa e para os quais parece estar desenhado para estabelecer ao longo de sua existência.
Ademais, se os conflitos sociais, em sua maior parte, estão motivados, são organizados e julgados por referência aos quatro modelos básicos, o que seja justo em uma relação concreta depende crucialmente de em que modelo relacional, ou combinação deles, se encontre modelada a relação no contexto social de referência. Cada um deles é usado como padrão para definir formas de coordenação entre as pessoas e de reconhecimento entre elas como sujeitos sociais e titulares de direitos e deveres válidos que surgem no marco do modelo elementar de que se trate. Cada modelo gera dentro de si e de sua dinâmica critérios específicos de justiça, que exigem ajustar o reconhecimento do que é devido aos agentes envolvidos segundo a natureza da relação que estabelecem. O que implica que os modelos elementares também resultam relevantes para o direito e o sentido da justiça concreta, na medida em que o conteúdo, a finalidade e a função destes residem precisamente na forma como se soluciona os conflitos parciais ou totais de interesses inerentes aos quatro tipos de vínculos sociais relacionais, cada qual dependente de um conjunto de potencialidades psicológicas exclusivas, evolucionadas e distintas segundo o padrão dos interesses convergentes e divergentes próprios de cada relação.
Isto tem uma consequência importante: na medida em que se admite que o direito tem um caráter relacional, o seu processo de realização, desde uma perspectiva instrumental, pragmática e dinâmica, passa a ser concebido como um intento, como uma técnica para a solução de determinados problemas práticos relativos à conduta humana em sua interferência intersubjetiva, no contexto dos vínculos sociais possíveis. Consequentemente, a melhor maneira de lograr que se plasmem as formas elementares de sociabilidade – comunidade, autoridade, proporcionalidade e igualdade – seria a de ir desenvolvendo instrumentos e discursos jurídicos adequados a sua justa e equilibrada articulação.
Trata-se, em síntese, de uma via que conduz a considerar o direito como práxis social e que pressupõe, utiliza e, em certo modo, dá sentido às demais perspectivas teóricas relacionadas com as dimensões estrutural, normativa, sociológica e axiológica do fenômeno jurídico. O que implica que qualquer proposta teórica ou metodológica acerca do direito deveria considerar a circunstância de que toda a vida jurídica é, em essência, uma argumentação sobre as diversas vias por meio das quais se articulam essas quatro formas de vida social arraigadas na complexa estrutura da mente humana e irredutíveis entre si.
Assim entendido, dado que os homens vivem e se desenvolvem em sociedade não porque são anjos ou criaturas dotadas de uma alma imortal, senão porque são animais, a ideia do direito emana da e está limitado pela natureza humana. Esta impõe o que poderíamos chamar as “regras do jogo”, mas não o resultado final do discurso jurídico - pois este também se nutre da história e cultura humana.
Por último, mas não por isso menos importante, o mais significativo da aproximação (“neuro”) naturalista acerca do objeto do direito é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, os limites, as condições de possibilidade e o rol das relações jurídicas humanamente possíveis e, a partir daí, desenhar um modelo normativo e institucional que evite a dominação e a interferência arbitrária recíprocas, garantindo certa igualdade material e, em último termo, permitindo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres. Pese a seu enfoque não evolucionista, a Teoria da Justiça de John Rawls se baseia precisamente nesse suposto.