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Sobre anjos, homens e julgamentos

18/12/2012 às 13:35
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Afinal, o que estamos tentando “salvar” por meio da pena? Em tempos de mensalão, compensaria o crime? Mas, se não são anjos, seriam os réus monstros cuja redenção virá pelo castigo?

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos. Que me aconteceu? — pensou. Não era nenhum sonho.             

(Franz Kafka)

O julgamento da ação penal 470, popularmente conhecido como “o julgamento do mensalão”, tem engendrado debates extremamente interessantes e análises profícuas a partir das mais diversas perspectivas. Em uma das sessões do Supremo Tribunal Federal, o ministro relator, opondo-se ao posicionamento de seu colega, revisor, acerca de aspectos relativos à dosimetria da pena a ser aplicada a um dos réus, foi incisivo ao expor sua insatisfação em relação ao suposto processo de canonização dos acusados realizado pelo tribunal, ou, nas palavras do próprio ministro, em concebê-los como “anjos”.

Não estamos, aqui, a propor uma análise pertinente à atuação dos ministros no caso em questão, tampouco nos preocupam, neste momento, as tormentosas questões referentes à individualização da pena – embora estas, de fato, tenham se tornado objeto de parte considerável dos desentendimentos entre os julgadores – mas nos interessa compreender a percepção da Suprema Corte e, de modo geral, dos atores jurídicos a respeito da figura do “criminoso”, antítese do homem moderno (bourgeois), civilizado, portador de valores que se afiguram como referências para a sociedade; nas palavras de Nietzsche, o último homem: “orgulhoso de sua cultura e formação, que o elevaria acima de todo passado, o último homem crê na onipotência do seu saber e do seu agir”[1].

Com razão, Salo de Carvalho[2] afirma que a representação do criminoso no imaginário coletivo como um indivíduo fisicamente degenerado, moralmente corrompido e socialmente degradado tem auxiliado no processo de construção do delito como atributo específico de uma minoria de insanos que não logrou ultrapassar as etapas do processo evolutivo.

Esse homo criminalis, expressão da barbárie que se opõe ao projeto civilizatório ocidental, quase sempre tem sido associado aos segmentos sociais subalternos das sociedades capitalistas e, neste ponto, o “julgamento do mensalão” suscita algumas indagações e fornece contradições aparentes, porém, em sua essência, não apresenta nenhuma novidade, pois não rompe com a criminologia positivista nem se contrapõe às perspectivas idealistas, mas continua a reproduzir o discurso hegemônico no âmbito das ciências criminais.

Na realidade, com o julgamento da ação penal 470 o que se percebe é a consolidação da imagem do homem civilizado e da dicotomia “criminoso” versus “cidadão de bem”. Embora estejamos diante de um julgamento emblemático, repleto de simbolismos, as discussões travadas pelos ministros confirmam a dificuldade do Poder Judiciário em se libertar do dogma da verdade única e do discurso criminológico construído com base no indisfarçável desejo de defesa social.  

A condição socioeconômica dos réus (que não são anjos!) no caso do “mensalão” não fragiliza em nada o discurso crítico, mas reforça o aspecto simbólico inerente a um julgamento que tenta oferecer à sociedade respostas para a demanda irracional (re)produzida pelos meios de comunicação de massa em prol da intensificação da intervenção punitiva. Na prática, é a exceção que confirma a regra.

Mas se não são anjos, o que são esses réus? Em vários momentos do julgamento, alguns ministros, desconfortáveis com seus próprios posicionamentos e no afã de fornecer algum tipo de justificativa para entendimentos que vão de encontro ao “clamor popular” e ao senso comum teórico que lhe serve de substrato, sustentam que não estão sendo lenientes com delinquentes ou que não desejam estimular a impunidade. Em contrapartida, outros julgadores, é verdade, têm se mantido firmes em sua postura, declarando-se favoráveis à defesa intransigente dos direitos e garantias fundamentais dos acusados, pois embora figurem no polo passivo da relação jurídico-processual, a condição de réu não tem, ou não deveria ter, a capacidade de despojar alguém de sua humanidade.

Em meio aos acalorados debates, nos perguntamos mais uma vez: mas, afinal, o que estamos tentando “salvar” por meio da pena? Em tempos de mensalão, compensaria o crime? Mas, se não são anjos, seriam os réus monstros cuja redenção virá pelo castigo? A desumanização sempre foi um artifício eficientemente utilizado pelas agências de controle penal para legitimar a exclusão, para justificar posturas dissociadas do arcabouço teórico garantista que deveria embasar a práxis dos sujeitos processuais, sendo atribuído ao juiz, nesse contexto de maximização do poder punitivo, o papel de coordenar os diversos saberes para formatar o indivíduo ao padrão normal[3].

Talvez estejamos apenas sonhando e, de fato, essa “metamorfose punitiva” – a crença de que o crime transforma homens em monstros e, no sentido oposto, de que o direito penal possui a inexplicável capacidade humanizá-los por meio da imposição do sofrimento – tão disseminada pelo discurso oficial, possa, em algum momento, contribuir para elevar os réus à condição de pessoas.

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Quanto ao resultado do julgamento, parece que atualmente no Brasil todos têm sido condenados, alguns, “protagonistas da cena do sacrifício”, a penas privativas de liberdade decorrentes de sentenças permeadas por um discurso maniqueísta que a tudo resume em bem ou mal, outros a uma vida aprisionada à ilusão de que por meio do sistema penal alcançaremos paz e segurança.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

GIACÓIA Jr., Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Disponível em: <www.nead.unama.br>. Acesso em: 21 jul. 2012.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão no processo penal como bricolage de significantes. Tese de doutoramento em direito. Orientação: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, dez., 2004.


Notas

[1] GIACÓIA Jr., Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 56.

[2] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão no processo penal como bricolage de significantes. Tese de doutoramento em direito. Orientação: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, dez., 2004.

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Sobre o autor
Raphael Boldt

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Graduado em Direito e Comunicação Social. Professor de Direito Processual Penal da FDV. Professor Convidado da Escola Superior da Advocacia (ESA/ES). Professor de Direito Penal no Centro de Evolução Profissional (CEP). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLDT, Raphael. Sobre anjos, homens e julgamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3457, 18 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23266. Acesso em: 18 abr. 2024.

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