O presente artigo pretende problematizar a questão do acesso pleno a um sistema solucionador de conflitos sociais como direito fundamental do cidadão[1], incluindo aquele marcado pela vulnerabilidade social, cultural ou econômico-financeira.
Nesse respeito, deve ser consignado, preliminarmente, que a expressão “sistema solucionador de conflitos sociais” abarca muito mais do que o mero acesso aos tribunais.
De fato, no Brasil tem-se dado cada vez maior ênfase às formas alternativas de solução de conflitos.
Cuida-se aqui dos caminhos extrajudiciais que atingem o mesmo objetivo, por vezes com menos angústia para as partes, em menor tempo e com custo reduzido para o Estado e, consequentemente, para a própria sociedade que, em última análise, mantém a estrutura para dirimir controvérsias entre seus membros.
A eficácia das vias alternativas tem sido vista como a melhor forma de resolver disputas dos mais diversificados objetos.
Apesar do ceticismo de uma parcela dos operadores do Direito, meios como a justiça terapêutica, o arbitramento, a conciliação e a mediação têm conquistado cada vez mais espaço como opções viáveis à judicialização contenciosa.
Se restar, porém, superada sem sucesso a etapa das formas de composição alternativas, o caminho é recorrer ao Estado-Juiz.
E neste caso, como diz STOLZ (2010, p. 318), dentre os princípios que fundamentam o Estado Democrático de Direito está o de que os tribunais sejam de fácil acesso a todos os membros da comunidade política.
Com efeito, a própria Constituição da República, em seu art. 5º, XXXV, consigna de forma inequívoca, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (BRASIL, 1988)
A mensagem, aparentemente dirigida ao legislador, possui um âmbito de abrangência notadamente mais amplo, eis que se nem mesmo ao legislador é dado atuar para excluir lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário, quanto mais atados a este limite estão o aplicador e demais atores do sistema.
Há aí a consagração da “tutela judicial efetiva, que garante a proteção judicial contra lesão ou ameaça a direito.” (MENDES, 2008, p. 494)
A questão que se levanta, entretanto, quando se adentra o tema do acesso à justiça como direito fundamental, é se, de fato, se trata de uma necessidade suficientemente relevante para ser incluída no rol das que integram o que se convencionou denominar “mínimo existencial”.
Segundo parte da doutrina, a resposta é positiva.
O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos. (BARROSO, 2002)
A lógica de que água, alimento e abrigo são mais essenciais do que acesso à justiça, deve ser pensada mediante análise dos conceitos de essencialidade e urgência.
É certo que a circunstância de viver em meio a um conflito armado, por exemplo, pode limitar o mínimo existencial ao estritamente imprescindível à sobrevivência do indivíduo e de sua família.
Na ausência de conjunturas extremas, porém, o mínimo existencial deixa de estar circunscrito, de forma reducionista, à sobrevivência, para contemplar garantias e direitos que vão além das necessidades fisiológicas.
Segundo SCHMIDTZ:
Existe uma hierarquia de necessidades, em que as necessidades fisiológicas formam a base da pirâmide e as transcendências espirituais formam o ápice, enquanto coisas como seguranças, participação, estima e autorrealização formam alguns dos níveis intermediários. Qualquer um desses níveis é privilegiado? Realmente não. Todos eles são importantes. (SCHMIDTZ, 2009, p. 245)
Em suma, a hierarquização das necessidades tem cabimento somente em estágios mais primitivos de desenvolvimento social ou sob circunstâncias extremas oriundas da desestabilização de elementos estruturais do Estado ou de conflitos internos ou externos que impossibilitem a atuação das instituições, públicas e privadas, que dão sustentação à sociedade.
Os “direitos sociais, como os direitos civis e políticos, demandam do Estado prestações positivas e negativas”, incluindo o “aparato de justiça, que garante o direito ao acesso ao Judiciário.” (PIOVESAN, 2008, p. 403)
A prestação positiva consistente na provisão, pelo Estado, de estrutura para a administração de conflitos é condição indispensável para a garantia e efetivação dos direitos humanos previstos no texto constitucional, o que inclui oferecer e manter um aparato que viabilize o ingresso em juízo dos cidadãos para a busca dos seus direitos.
A UNIVERSALIDADE DO DIREITO DE ACESSO
Os direitos fundamentais são caracterizados pela universalidade no que pertine à amplitude de seus efeitos em determinada ordem jurídica, sendo destinatários todos os seres humanos, indistintamente.
O exercício desses direitos fundamentais não representa problema para a parcela dos cidadãos que tem condições culturais, sociais e econômico-financeiras de demandar para defesa de seus direitos, mas, por vezes, esta fora do alcance de outra parte da sociedade, a que a Constituição da República conceitua "necessitados" (art. 134).
Para esses, surge a necessidade de atuação estatal, para que tenham garantido o seu direito de acesso, na mesma proporção dos demais.
Cualquiera que declare que se toma “los Derechos en serio”, y que elogie a nuestro gobierno por respetarlos, debe tener alguna idea de qué es ese algo. Debe aceptar, como mínimo, una o dos ideas importantes. La primera es la idea, vaga pero poderosa, de la dignidad humana [...] La segunda es la idea, más familiar, de la igualdad política, que supone que los miembros más débiles de una comunidad política tienen derecho, por parte del gobierno, a la misma consideración y el mismo respeto que se han asegurado para sí los miembros más poderosos, de manera que si algunos hombres tienen libertad de decisión, sea cual fuere el efecto de la misma sobre el bien general, entonces todos los hombres deben tener la misma libertad (DWORKIN, 1997, p. 44).
Há que se admitir que não é isso o que hodiernamente se observa, pese o avanço da estrutura de garantia dos direitos fundamentais experimentada no séc. XX e início do séc. XXI.
Ao contrário, por todo o mundo os direitos fundamentais têm sido desrespeitados.
Todavía hay millones de personas en el mundo cuyos derechos y libertades fundamentales son atacados o suprimidos: tortura, violación, sistemas judiciales corruptos, la servidumbre, hambre, falta de servicios sanitarios, de vivienda, de higiene y de agua - (ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS, 2000)
E, frise-se, não se trata de pretender eliminar a pobreza do mundo, como se fosse possível acabar com as desigualdades sociais e satisfazer de forma plena a demanda dos necessitados na vigente ordem político-jurídica mundial.
Antes, significa garantir que as disparidades existentes entre grupos sociais não inviabilizem a participação dos mais carentes na solução das questões que determinarão seu futuro.
Em relação, portanto, ao acesso à ordem jurídica, diferenças sempre existirão, sendo inaceitável, porém, que os mais vulneráveis tenham o acesso obstado devido à hipossuficiência.
Assim, os necessitados e os não-necessitados têm, e sempre terão diferenças significativas no que concerne à defesa de seus direitos: por exemplo, quando em litígio judicial, estes últimos serão atendidos num ambiente dotado de requintes de decoração, no dia e horário que lhes for mais conveniente e pelos profissionais de sua escolha, enquanto aqueles terão que se adequar a um sistema despido de tais comodidades, em ambiente sóbrio, e em dia e horário que provavelmente exigirão certo ajuste em sua rotina.
Devem ter, entretanto, à sua disposição serviços de qualidade, que garantam a defesa integral e eficiente de seus interesses. É o que é devido a cada um dos cidadãos necessitados.
A gratuidade dos serviços não pode significar déficit de qualidade que torne inócua a prestação, devendo o Estado propiciar os meios para a solução das crises surgidas no seio da sociedade.
Neste diapasão:
Toda vez que o Estado prevê gratuidade, a menos que desprezemos os contornos da interpretação sistemática da Constituição Federal, deve dar os meios para se alcançar esse objetivo. (BRASIL, 2007).
Dentre estes "meios" destacam-se, por exemplo, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, cujos critérios norteadores são a oralidade, a celeridade e economia processual, a informalidade e a simplicidade, todos os quais foram idealizados para permitir o acesso do jurisdicionado, em demandas menos complexas.
Ressalte-se ainda, que em tais órgãos da justiça ordinária há ênfase, até por expressa disposição da Lei nº 9099/95, aos métodos alternativos de solução de conflito, como a conciliação e a mediação.
Por outro lado, há a previsão constitucional da Defensoria Pública, qual instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados, a teor do que preconiza o art. 134, caput, da Lei Maior.
A estruturação de Juizados Especiais e Defensorias Públicas de forma ampla em todo o território nacional constitui providência que vai ao encontro do ideal de dar efetividade aos direitos fundamentais.
Uma prova incontestável de que esse direito fundamental é desrespeitado no Brasil é o fato de que vinte e quatro anos depois de a Constituição da República prever a criação das Defensorias Públicas, estas ainda padecem em todo o país de sérios problemas estruturais, o que resulta na prestação de serviços de forma limitada, em desconformidade com o idealizado pelo constituinte.
Pior, vinte e quatro anos após a promulgação da Lei Suprema ainda há um Estado da Federação - Santa Catarina - em que a Defensoria Pública sequer foi criada.
Mais do que qualquer outra providencia, o estabelecimento de Defensorias Públicas capazes de atender a parte vulnerável da população constitui garantia de acesso à ordem jurídica justa como direito fundamental de todos. Constitui dever do Estado.
No dizer de autorizada doutrina:
Em vista do exposto, pode-se sintetizar que o direito de acesso à justiça, deriva do due process of law, com vistas a assegurar o direito fundamental de defesa dos direitos e dos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico. Tal garantia impõe um dever de proteção ao Estado por meio de normas que garantam a abertura da via judiciária a partir da norma constitucional prevista no art. 5.º, XXXV da CR/88. (FERRAZ; MACEDO, 2011, p. 516)
A manutenção de um eficiente sistema de tutela dos interesses dos necessitados permite a ocupação do vácuo criado pela histórica desigualdade entre os grupos sociais, com ações positivas em prol da igualdade de acesso e de participação.
O acesso à ordem jurídica pelos necessitados, não é a única demanda destes, mas integra o rol de direitos fundamentais que devem ser respeitados e cuja defesa deve ser propiciada, sob pena de retrocesso no desenvolvimento político e social.
Um sistema amplo, eficiente e permanente de solução de conflitos constitui sem dúvida um direito do cidadão, mais do que isso, um direito fundamental de todos, inclusive daqueles que, por sua condição de vulnerabilidade, não se mostram aptos para a defesa de seus interesses.
O Estado, sobretudo o Estado Democrático de Direito, não pode e não deve se furtar ao seu desiderato de prover e manter este sistema.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3208>. Acesso em: 25.05.2011.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e terra, 1998.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Toda vez que o Estado prevê gratuidade deve dar meios para alcançar esse objetivo. Ação direta de inconstitucionalidade nº 3768-DF, Relator Ministro Marco Aurélio Mello, 2007. Disponível em: < http:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=491812>. Acesso em: 06.06.2011.
DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2011. 317 p.
DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1997.
FERRAZ, Cristina; MACEDO, Fernanda. Condomínios edilícios no âmbito dos juizados especiais cíveis: legitimidade ativa e a efetividade do princípio do acesso à justiça. In: Revista Prisma Jurídico., São Paulo, v. 10, n. 2, p. 511-524, jul./dez. 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.
Organización de las Naciones Unidas. Los derechos humanos e Naciones Unidas, 2000. Disponível em: <http://www.un.org/spanish /geninfo/faq/hr2.htm.> Acesso em: 20.05.2011
PIOVESAN, Flávia. Dignidade Humana e a proteção dos direitos sociais nos planos global, regional e local. MIRANDA, Jorge (Coord.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo, Quartier Latin, 2008.
SCHMIDTZ, David. Os elementos da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
STOLZ, Sheila. Estado de direito e democracia: velhos conceitos e novas realidades frente aos direitos humanos. RODRIGUEZ, José Rodrigo; COSTA, Carlos Eduardo Batalha da Silva; BARBOSA, Samuel Rodrigues. Nas fronteiras do formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010.
Nota
[1] Cidadão neste artigo deve ser compreendido em seu sentido amplo e não com o contorno conceitual estrito que lhe confere a dogmática jurídica, qual seja, titular de direitos políticos.