As reflexões presentes neste artigo giram em torno do debate acerca dos fundamentos de observânciado direito, vale dizer, sobre o que exatamente constitui a base de legitimação do Direito. O tema é amplo e as polêmicas são intermináveis. Todavia, o tamanho do desafio não pode servir de escusa para não enfrentá-lo. Assim, ainda que de forma breve e objetiva, os apontamentos aqui presentes visam a fomentar a crítica, a incitar questionamentos e a ampliar os limites do estudo do direito.
De início, os professores Eneá de Stutz e Almeida e José Bittencourt Filho afirmam que“o Direito em si mesmo é um sistema de legitimação, isto é, cria um efeito de obediência consentida naqueles cuja liberdade vai ser limitada pelas normas. Por isso se trata do instrumento por excelência do controle social formal e estatal”[1]. Para tanto, continuam os autores, precisa de um consenso em torno do fundamento de sua obrigatoriedade.
De acordo com Kelsen, ao tentar separar os domínios do ser e do dever-ser, a juridicidade redunda de uma verdadeira petição de princípio – o direito deve ser observado porque é direito. Consoante a lição de Fábio Konder Comparato, “para Kelsen, o Direito pertence integralmente a mundo do dever-ser; logo, não há de pensar, juridicamente, com base no que é ou acontece no mundo dos fatos, pois o dever-ser não deriva do ser nem vice-versa. Uma norma só encontra fundamento justificativo em outra norma, pois pelo fato de que algo é, não se segue, logicamente, que deva ser. Fatos não geram normas, só uma norma pode engendrar outra”[2]. Vale dizer: para ele, a ordem jurídica pode existir separada de princípios éticos[3].
De outro lado, o fundamento dessa obrigatoriedade, para Max Weber, encontra-se no conceito de “autoridade consentida” (consenso legítimo). O autor afirma que o Direito se impõe não pela força, mas pela autoridade (dominação legítima). Segundo ele, seriam três as espécies de dominação: a dominação tradicional (que tem base nos costumes); a dominação carismática (age no plano do afeto) e a dominação racional.
Deve entender-se por dominação a probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos específicos... Um mínimo de vontade de obedecer, ou seja, de interesse em obedecer é essencial em toda relação autêntica de autoridade... A crença na legitimidade da dominação é outro fator. (Weber, Economia e Sociedade)
A legitimação do Direito, após estudo de Weber, atua no campo da dominação racional, porque sua obrigatoriedade deriva de um pacto, com regras gerais e abstratas; de modo que, ao obedecer ao regramento se está obedecendo ao Direito, e não a uma pessoa ou líder. Em poucas palavras, é a dominação pelo saber. Ou, nas palavras de Eloá e José: “A dominação depende, em grande parte, do domínio econômico, mas também do domínio simbólico. ‘Conhecimento é poder’, na proporção em que representa capital simbólico acumulado”[4].
Como exemplo do até aqui exposto, ao cingir a proteção jurídica apenas aos bens essenciais, sem prevertutela em relação aossupérfluos, o direito busca resguardar a igualdade entre todos, ainda que dentro de uma sociedade de consumo. Por outro lado, se levarmos em conta que o epicentro do conceito de status na sociedade atual é o capital cultural[5], diretamente relacionado ao consumo, a aplicação do princípio da igualdade tal qual conhecemos acaba por impedir ou dificultar a mobilidade entre as classes, servindo o Direito como sistema de perpetuação da ordem estabelecida.
Pois bem. Partindo-se da premissa de que o Direito é em si um sistema de legitimação (para o bem e para o mal), o que confere legitimidade ao Direito? A resposta, aqui defendida, é: o consenso democrático.
Para exemplificar, valho-me de dois julgados paradigmáticos da Suprema Corte Americana: Roe v. Wade, sobre a possibilidade de aborto; e Brown v. BoardofEducation, que condenou a discriminação racial nas escolas americanas.
Ao analisar o motivo da permanência até os dias atuais da regra firmada a partir do julgamento de Brown v. BoardofEducation, o professor Bruce Ledewitz aponta o consenso democrático como fator importante a ser considerado, uma vez que Brown não foi o primeiro precedente a condenar a discriminação racial:
Brown not only illustrates democratic ratification of a judicial decision on a crucial constitutional matter, but also illustrates the role of leadership in the formation of democratic consensus. The decision was not the first federal governmental blow against legal racial discrimination. Nor was it the first judicial decision to move in the general direction of racial equality. But it was a dramatic announcement of a large-scale challenge to a widespread racial ideology. Without Brown, the dismantling of legal apartheid in the United States would not have proceeded as quickly and as surely as it did. Though democratic consensus is obviously a manifestation of popular judgment, there is still the necessity of wise leadership.[6]
Para corroborar sua tese, Ledewitz faz interessante comparação com o julgado Roe v. Wade. Como dito, ambos representam célebres decisões da Suprema Cortedos Estados Unidos, mas o nível de consenso democrático de um e outro é diferente, o que pode ser verificado no modo como se dão as comemorações dos aniversários de julgamento de ambos os casos[7].
Arrisca-se a afirmar que o grau de consenso democrático de um julgado está diretamente relacionado à possibilidade futura de alteração da regra nele estabelecida, ou seja, quanto mais aceita socialmente determinada decisão, menor a chance de ser alterada posteriormente. A “autoridade social”, portanto, deve também ser levada em conta na equação da legitimidade do Direito.
A afirmação da democracia, igualmente, exerce um papel de proteção do Estado de Direito, como bem analisou o Professor Cláudio Pereira de Souza Neto. Segundo ele, “a democracia deliberativa não restringe o princípio democrático à possibilidade de o povo eleger representantes durante os períodos eleitorais; ela se exerce também pela via do debate sobre as questões de interesse público. No espaço público, os atores políticos não estatais podem criticar as decisões tomadas pelos governantes, e essa crítica exerce um papel legitimador e racionalizador. Para que as decisões sejam aceitas pela comunidade é necessário que o governo as justifique com boas razões, e, se não o fizer, será criticado no âmbito de um espaço público livre e igualitário.”[8].
Assim, caso não exista consenso democrático – ou o mesmo não seja forte o suficiente – as decisões judiciais, e em última análise o próprio Direito, tende a não se perpetuar no tempo. Uma vez mais, o direito “necessita da construção de um consenso que o legitime, isto é, um consenso em torno do fundamento de sua obrigatoriedade”[9].
Antes de concluir, oportunaa lição de Norberto Bobbio sobre os diversos tipos de consenso: “não são iguais todos os tipos de consenso e que será mais legítimo o Estado onde o consenso tem condições de ser manifestado mais livremente, onde, em suma, for bem menor a interferência do poder e da manipulação e, portanto, bem menor o grau de deformação ideológica da realidade social na mente dos indivíduos. O consenso será, pois, mais aparente, e consequentemente de pouca consistência real, na medida em que for forçado e tiver um caráter ideológico.”[10]
Considerando o exposto acima, ao contrário de Kelsen, Bobbio integra ao conceito de legitimação a ideia de valor, concluindo que “um Estado será mais ou menos legítimo na medida em que torna real o valor de um consenso livremente manifestado por parte de uma comunidade de homens autônomos e conscientes, isto é, na medida em que consegue se aproximar à ideia-limite da eliminação do poder e da ideologia nas relações sociais.”[11]
Em síntese, existindo o consenso democrático, o Direito age sim como meio de transformação social, e não como “modelo universal”, a ser dirigido a todos os povos e nações.
Bibliografia:
ALMEIDA, Eneá deStutz e, e BITTENCOURT FILHO, José. Direito e Violência Simbólica – um ensaio, CEAD/UnB.
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5. ed., vol. 2. Brasília: Editora UnB, 2000.
COMPARATO, Fábio Konder. Sobre a legitimidade das constituições. In: Constituição e Democracia – Estudos em homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006.
LEDEWITZ, Bruce. Justice Harlan’s Law and Democracy.HeinOnline, 20 J.L. & Pol. 373, 2004.Disponível em: http://heinonline.org, acesso em 26 de março de 2012.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa – um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
Notas
[1]ALMEIDA, Eneá de Stutz e, e BITTENCOURT FILHO, José. Direito e Violência Simbólica – um ensaio, CEAD/UnB, p 22.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Sobre a legitimidade das constituições. In: Constituição e Democracia – Estudos em homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 54.
[3]A existência de uma correlação entre os princípios que regem os Direitos Fundamentais e o conceito de Violência Simbólica pode ser refletida em outra citação de Kelsen, para quem “O catálogo dos direitos e liberdades fundamentais, o qual forma um elemento típico das modernas constituições, nada mais é, em sua essência, do que uma tentativa de impedir que tais leis venham a ser editadas.” (COMPARATO, Fábio Konder. Sobre a legitimidade das constituições. In: Constituição e Democracia – Estudos em homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 56).
[4]ALMEIDA, Eneá de Stutz e, e BITTENCOURT FILHO, José. Direito e Violência Simbólica – um ensaio, CEAD/UnB, p 23.
[5]Diversamente de Weber, Bourdieu traz para o núcleo do conceito de status não o capital econômico, mas o capital cultural. Isso porque, de acordo com Bourdieu, o que distingue os indivíduos em sociedade, mais do que a capacidade aquisitiva/econômica, é o "gosto", o que e de qual modo os indivíduos consomem os bens ("aesthetictaste"). A ideia de consumo, portanto, é central no conceito de status de Bourdieu, o que torna o estudo de sua teoria muito importante em tempos de sociedade de consumo. Juridicamente, portanto, protege-se não apenas a manutenção da riqueza, mas também da influência que a classe dominante possui sobre o que se consume e como se dá o consumo. Assim, ainda que haja (alguma) mobilidade entre as classes sociais em razão da distribuição da riqueza, a diferença entre as classes permanece em virtude do fator cultural.
[6] LEDEWITZ, Bruce. Justice Harlan’s Law andDemocracy. HeinOnline, 20 J.L. & Pol. 373 (2004), p. 401. Disponível em: http://heinonline.org, acesso em 26 de março de 2012.
[7] “The public responses to the anniversaries of Brown and Roe illustrate the differences in acceptance. The fiftieth anniversary of Brown led to celebrations across the country. In contrast, the anniversary of Roe each year leads to large outpourings of dissent. Nor is this difference explained by mere passage of time. The Roe decision is now over thirty years old. By that time, Brown and other cases were already enshrined in the constitutional cannon. I do not mean to suggest that Roe has been abandoned by the people. The decision is supported by a substantial group in the electorate. Yet, it is also opposed by a substantial group. Another group lies in the middle, troubled by the rhetoric on both sides of the issue. But this lack of consensus does not support Roe”. LEDEWITZ, Bruce. Justice Harlan’s Law and Democracy.HeinOnline, 20 J.L. & Pol. 373 (2004), p. 404. Disponível em: http://heinonline.org, acesso em 26 de março de 2012.
[8] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa – um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 59.
[9]ALMEIDA, Eneá de Stutz e, e BITTENCOURT FILHO, José. Direito e Violência Simbólica – um ensaio, CEAD/UnB, p. 22.
[10] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5. ed., vol. 2. Brasília: Editora UnB, 2000. p. 679.
[11] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5. ed., vol. 2. Brasília: Editora UnB, 2000. p. 679.