Contextualizando: existem normas constitucionais incoerentes com os próprios fundamentos da Constituição?
Uma Constituição representa o alicerce, o núcleo e a estrutura medular de um ordenamento jurídico, dirige o agir político-estatal, conforma e delimita o conteúdo das leis, fundamenta e orienta a construção e aplicação do Direito, enfim, constitui o próprio Estado. Nesse sentido nos ensinam brilhantes constitucionalistas, como J. J. Canotilho, Paulo Bonavides e Lenio Streck1.
Entretanto, não se há como negar, existem, de fato, incoerências entre dispositivos do texto constitucional, sobretudo de normas constitucionais originárias, as quais, por óbvio, não se sujeitam a qualquer controle de validade. Por certo, nem se poderia contestar sua validade, pois há muito já se consolidou o entendimento de que não pode haver inconstitucionalidade de normas emanadas do poder constituinte originário. Como assevera o insigne Professor Jorge Miranda2: “não pode haver inconstitucionalidade da Constituição”. Contudo, a revogação pelo constituinte derivado é perfeitamente possível, desde que atendidos os requisitos do art. 60 (CF/88).
Um claro exemplo dessas incoerências encontra-se, pois, no parágrafo único do artigo 7º, dispositivo que vem ganhando visibilidade após ter-se iniciado o processo de aprovação da proposta de emenda que prevê a sua revogação, a PEC 478/10, conhecida como a “PEC das domésticas”. Assim dispõe o referido dispositivo: “são assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua integração à previdência social”.
Numa leitura apressada (e isolada) poderíamos entender se tratar de uma norma que institui direitos sociais para a categoria dos trabalhadores domésticos, os quais, deve-se ressaltar, sempre foram e ainda são discriminados em relação aos demais trabalhadores, bastando lembrar o art. 7º do CLT, que exclui expressamente de seu âmbito de aplicação os empregados domésticos.
Todavia, devemos de início observar o caput do art. 7º da Constituição, onde se dispõe: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]”, e então se seguem seus trinta a quatro incisos. Ora, se o artigo 7º institui direitos a todos os trabalhadores, e seu parágrafo único dispõe que à categoria dos empregados domésticos (os quais, obviamente, também são trabalhadores) são assegurados apenas alguns dos direitos enumerados no art. 7º, logo, este dispositivo restringe direitos sociais fundamentais. Em outras palavras, mantendo o sentido, poderíamos ler este parágrafo único da seguinte forma: “aos trabalhadores domésticos não são assegurados os direitos previstos nos incisos [...] (ou seja, nos demais incisos). Isso é discriminação, flagrante, incontornável, incoerente.
Retornemos aos fundamentos da própria Constituição, isto é, aos fundamentos e objetivos fundamentais da nossa República Federativa, em seus artigos 1º e 3º, especialmente quanto ao valor social do trabalho (art. 1º, IV), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a promoção do bem-estar de todos, sem quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV).
Indago: o valor social do trabalho de um empregado doméstico é diferente do valor social do trabalho de um mecânico, de um telefonista, de um engenheiro, ou um médico? O trabalho do empregado doméstico é inferior ao de outro trabalhador? É compatível com o objetivo de uma sociedade livre, justa e solidária tamanha restrição de direitos a uma determinada categoria de trabalhadores? É possível negar a uma categoria de trabalhadores um rol de direitos garantidos a todos os demais trabalhadores sem com isso promover uma injusta discriminação?
Apesar da evidência das respostas a tais indagações (negativas, por óbvio), há quem sustente a necessidade de uma, digamos, “diferenciação” da categoria dos empregados domésticos em relação aos demais trabalhadores. Façamos a seguir um breve exame de dois dos principais argumentos.
O princípio da isonomia aplicado ao trabalho doméstico
No primeiro argumento, diz-se que há uma situação específica, determinante das condições do trabalhador doméstico, que exerce seu trabalho num âmbito familiar, tendo como empregador uma outra pessoa natural, no mais das vezes também assalariado. Daí, esses fatores implicariam na necessidade de uma diferenciação quanto aos seus direitos trabalhistas. Trata-se, assim, de um apelo à velha máxima aristotélica: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
De início, é preciso lembrar que tratar as especificidades de cada categoria de trabalhador é um pressuposto elementar do direito trabalhista, e isso se faz no sentido de se atribuir direitos específicos a cada categoria, de acordo com sua condição peculiar. Por exemplo, existem direitos específicos de categorias como as dos ferroviários, bancários, metalúrgicos, trabalhadores da construção civil, etc. Contudo, no caso dos trabalhadores domésticos a diferenciação é no sentido contrário, ou seja, no sentido de negar a essa categoria direitos que são atribuídos a todos os demais trabalhadores, direitos que não são específicos de uma ou outra categoria, mas que são de todos, isto é, todos menos os trabalhadores domésticos. E isso, definitivamente, é discriminação.
Mas, continuemos. Haveria, afinal, nas condições de exercício da profissão do trabalhador doméstico, algo que justificasse essa discriminação? Podemos aqui nos reportar à consagrada tese de Celso Antonio Bandeira de Mello3, sobre o princípio da igualdade, e intentar aferir se neste caso aplicam-se os critérios baseados nos três aspectos elementares para se identificar a adequação ao princípio da isonomia: i) deve-se primeiro identificar o elemento admitido como fator de discriminação, que deve ser intrínseco à pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ii) deve haver correlação lógica entre o fator de discriminação e a desigualdade no tratamento jurídico atribuído à pessoa, coisa ou situação objeto da discriminação; e iii) este vínculo de correlação entre fator discriminante e tratamento desigual deve estar fundamentado em normas constitucionais.
Seguindo, quanto à condição do empregador, isto é, se considerarmos o fato de que o empregador também é, pelo menos na maior parte dos casos, um assalariado, e que por isso tem dificuldades em cumprir todas as obrigações a ele impostas, seria então o caso de um ônus excessivo que recai, digamos, sobre o “patrão assalariado”? Tal situação configuraria um fator discriminante?
Voltemos aos fundamentos: o valor social do trabalho se verifica no exercício da atividade laboral praticada pelo trabalhador e não em condições peculiares de cada empregador, e uma sociedade justa e solidária se constrói pela valorização daquele que desempenha o trabalho, independente de quem seja o empregador, seja uma grande empresa, ou uma pequena empresa, ou mesmo uma pessoa física, enfim, a justiça social se faz pela valorização de quem disponibiliza e emprega sua energia para o trabalho, no sentido de prover as condições materiais de existência da comunidade.
Decerto, qualquer forma de discriminação do trabalhador deve ser medida em razão de quem realiza o trabalho e não de quem paga pelo trabalho. Ora, os direitos constitucionais do trabalhador devem sempre ser respeitados, seja o empregador uma multinacional, uma microempresa ou uma pessoa física. Noutras palavras: não deve ser a condição específica do empregador um fator determinante para se restringir direitos do trabalhador, seja qual for a categoria.
Evidentemente, o trabalhador não deve sofrer um tratamento desigual estabelecido a partir de um fator de discriminação que não é inerente a ele mesmo, mas é imanente a outra pessoa, ao empregador. Afinal, os direitos são do trabalhador, é este a quem a Constituição e o Estado Democrático de Direito devem proteção, porquanto as obrigações do empregador são mera decorrência lógica daqueles direitos.
Em outro aspecto, quanto ao ambiente em que são exercidas as atividades do trabalhador doméstico, ou seja, o âmbito residencial da pessoa ou família (empregador), seria esta uma condição apta a justificar uma restrição de direitos, nos termos aqui discutidos?
Essa pergunta deve nos levar a outras indagações, correspondentes especificamente aos direitos previstos no art. 7º da Constituição, como, p. ex., no caso da jornada máxima de trabalho e das horas extras, pergunta-se: as horas trabalhadas em um ambiente residencial valem menos do que as horas trabalhadas num escritório, ou numa loja, ou numa fábrica? Noutro ponto, a hora de trabalho noturno em uma residência teria o mesmo valor da hora de trabalho diurna? O grau de dificuldade seria o mesmo para ambos os períodos? E no caso do FGTS, pelo fato de trabalhar em uma residência, tal sujeito não necessitaria da proteção do fundo de garantia do trabalhador? E no caso do salário-família, do seguro-desemprego, etc.? Enfim, são perguntas fáceis de se responder e que nos mostram que o fato de trabalhar em um ambiente residencial está longe de justificar a restrição de direitos do trabalhador doméstico e de descaracterizar a igualdade entre estes e as demais categorias no que se refere ao rol de direitos do art. 7º (CF/88).
Mais uma vez com os critérios do Prof. Bandeira de Mello, vê-se que não há, portanto, correlação lógica entre o fator descriminante, consistente nos aspectos do ambiente em que a atividade laboriosa é exercida, e o desigualamento jurídico proposto, isto é, a restrição de direitos imposta ao trabalhador domésticos, pela negação de direitos já assegurados aos demais trabalhadores.
O valor social do trabalho e a realidade do trabalhador doméstico
O segundo argumento, de cunho estritamente (e exageradamente) pragmático, seria o de que ao se ampliar direitos dos trabalhadores domésticos, atribuem-se mais obrigações aos seus empregadores, e, consequentemente, cria-se uma maior dificuldade de formalização dessa relação de trabalho, ou seja, essa ampliação de direitos resultaria no aumento da informalidade e até mesmo na restrição e diminuição do mercado de trabalho para a categoria. Diz-se, assim, que a ampliação de direitos imposta pela PEC 478/2010 traria, na prática, prejuízos aos próprios empregados domésticos.
De fato, a categoria dos trabalhadores domésticos sofre, desde sempre, com uma profunda carência de concretização de direitos trabalhistas básicos. Isso é, obviamente, um fato inconteste, notório e lamentável. Estudos indicam, p. ex., que apenas cerca de 27% das empregadas domésticas têm sua relação de emprego devidamente formalizada4. Contudo, os direitos do trabalhador não podem, em pleno Estado Democrático, ser mitigados, ou negligenciados, em virtude de situações fáticas indesejáveis e incompatíveis com a própria ordem constitucional.
É claro que Direito e realidade não devem, jamais, ser dissociados, sobretudo quando se trata das condições sociais vivenciadas em nosso cotidiano. A própria Constituição dispõe nesse sentido, quando determina que a justiça social é um dos objetivos fundamentais da nossa República (art. 3º). Contudo, quadros fáticos que revelam um déficit na concretização de direitos trabalhistas não devem ser simplesmente assimilados pela ordem jurídica, como se fossem uma realidade inevitável, com a qual tivéssemos de nos resignar. Ao contrário, devem ser combatidos por uma atuação legislativa compatível com o que se dispõe no art. 3º da nossa Constituição.
Ora, dizer que o implemento do rol de direitos do trabalhador doméstico poderia trazer-lhes prejuízos no plano fático seria, no mínimo, uma profunda incoerência. Fosse assim, poderíamos afirmar que se extinguindo outros direitos da categoria, já conquistados, como, p. ex., férias, garantia de salário mínimo e direitos previdenciários, a situação da categoria tenderia a “melhorar”, pois ficaria mais “fácil” para os patrões efetivarem a formalização da relação de emprego. Ou seja, por esse raciocínio, quanto mais se subtraia ou se relativize os direitos trabalhistas, mais vantajoso seria para o empregado. A toda evidência, a falsidade de tal argumento é flagrante, pois se baseia numa situação supostamente vantajosa para o trabalhador, que na verdade está fundada numa premissa inaceitável, qual seja, a supressão ou a mitigação de direitos desse mesmo trabalhador.
No mesmo caminho se acha a afirmação de que essa ampliação de direitos poderia vir a causar desemprego para a categoria. Se a afirmação fosse verdadeira seria possível inferir que a ampliação de direitos trabalhistas produz desemprego e que a extinção de alguns direitos trabalhistas poderia possibilitar a contratação de mais trabalhadores, e assim, quanto menos direitos, mais próximo do pleno emprego se chegaria. Enfim, mais uma falácia, por óbvio.
É preciso lembrar que as dificuldades enfrentadas pelo empregador não podem servir de justificativas para limitar direitos do trabalhador, ainda que o empregador se encontre em uma situação de certa “hipossuficiência”, se assim pudermos colocar. Em outros termos, o empregador não poderá suprir essa sua hipossuficiência às custas de direitos constitucionalmente assegurados ao trabalhador. Afinal, esses direitos são indisponíveis. Por exemplo, se um trabalhador, ou um certo grupo de trabalhadores, de forma voluntária, resolvem abdicar de direitos trabalhistas indisponíveis, em razão de uma situação fática que os leve a tal opção, isso poderá até ser vantajoso no que se refere à diminuição do desemprego, ou quanto a outro aspecto econômico, mas para o Direito, tal situação é inaceitável, pois esses direitos representam, em nossa ordem jurídico-constitucional, a valorização do trabalho, e do trabalhador. São, pois, inegociáveis, e ainda que sua “flexibilização”, em certos casos, aparente ser, pelo menos do ponto de vista econômico, mais vantajosa, ou mais viável (o que é outra falácia, mas essa seria outra discussão), a nossa Constituição nos impõe, inexoravelmente, a valorização do trabalhador, e disso não podemos nos esquivar.
No Constitucionalismo Contemporâneo5, direito e realidade social caminham juntos. Uma compreensão adequada dessa realidade, estruturada sobre o alicerce dos princípios constitucionais, assenta-se no pressuposto básico de que ao trabalhador doméstico devem ser atribuídos os mesmos direitos fundamentais assegurados aos trabalhadores em geral. Trata-se de um imperativo elementar, uma imposição constitucional, decorrente dos princípios da isonomia, da valorização do trabalho e da justiça social. E isso não deve ser entendido como mera teoria, pois se assim entendêssemos, estaríamos nos resignando diante de fatos contrários à Constituição, estaríamos aceitando o fato de os trabalhadores domésticos serem tratados como se fossem uma categoria profissional “inferior”, como uma categoria fadada a depender da boa vontade de seus patrões.
A realidade, portanto, não está no simples fato de que apenas 25 ou 30% das relações de trabalho domésticas sejam formalizadas, ou em outros dados estatísticos dessa natureza. São fatos, por óbvio, mas que não representam, por si só, a realidade social desta categoria. De outro modo, o que caracteriza precisamente essa realidade é o fato de que os trabalhadores domésticos continuam sendo injustamente explorados, muito mais do que as outras categorias profissionais, donde se evidencia uma enorme dívida de toda a sociedade para com essa categoria.
Finalizando: o direito do trabalhador não está à disposição do empregador
Ainda que se diga que os empregadores também enfrentam muitas dificuldades, que também são assalariados e que já estão fazendo o melhor possível para propiciar boas condições a seus empregados, não há, entretanto, como se negar o fato da exploração. Ora, se o próprio patrão é também um trabalhador e tem seus direitos trabalhistas respeitados, como se pode aceitar que ao seu empregado (o doméstico) sejam negados esses mesmos direitos? Aceitar isso seria o mesmo que dizer que o trabalho doméstico tem menos valor social do que as demais profissões.
Muitos empregadores podem até dizer: “eu não sou explorador, pois minha empregada está plenamente satisfeita e grata pelo emprego que tem”. De fato, talvez a maioria dos empregados domésticos estejam mesmo satisfeitos com seus empregos, e até mesmo com seus patrões, mas isso não desfaz o fato da exploração. Talvez o patrão não tenha mesmo culpa, mas isso também não desfaz o fato da exploração. Talvez a culpa deva ser atribuída à própria sociedade, em sua totalidade, mas, ainda assim, a exploração continua sendo um fato.
Enfim, precisamos lembrar que a isonomia e os direitos do trabalhador não estão à disposição do empregador. Se a realidade ainda é de baixa efetividade desses direitos, se o trabalhador doméstico ainda se encontra à mercê da conveniência do empregador, o que devemos fazer é buscar mudar essa realidade, em vez de acatá-la passivamente. Portanto, se a situação de exploração é o que mais fielmente representa a realidade do trabalhador doméstico, faz-se necessária uma profunda transformação social, no sentido de garantir-lhes a isonomia em relação aos demais trabalhadores, e nisso o Direito pode (e deve) desempenhar um papel fundamental.
Notas
1Nesse sentido poderíamos mencionar inúmeras obras dos referidos autores, valendo citar aqui, pela abrangência e notória relevância, as seguintes: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998; STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011.
2MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, II. Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p. 291.
3MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 2007.
4Dados constantes de relatório do Grupo de Trabalho – Trabalho Doméstico, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República. Disponível em: < http://www.sepm.gov.br/noticias/ documentos-1/relatorio%20do%20grupo%20de%20trabalho%20A5%20b.pdf >.
5Considerado o termo no sentido de preeminência do texto constitucional na consolidação dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, que consubstanciam os objetivos fundamentais inscritos em seu art. 3º, bem como na obrigatoriedade de interpretação das leis a partir de uma compreensão constitucional do direito. Nesse sentido, cf.. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011; dentre outras obras do autor.