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A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência

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28/01/2013 às 16:35
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3 A FORMAÇÃO DO ESTADO DE FILIAÇÃO E O RECONHECIMENTO DE FILHO

Depois de uma disposição geral acerca da filiação, tendo por conta seu desenvolvimento histórico e de concepção ao Direito Civil-Constitucional, necessária se faz a tratativa conceitual de seu moderno instituto.

Silvio Rodrigues[64] coloca a filiação como sendo “a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se tivesse gerado”. Esta assertiva, bem a rigor, correlacionada com o disposto por outros autores, no que tange à expressão de necessidade de consanguinidade para estabelecimento do estado filiativo, é um tanto quanto equivocada, vez que restringe o estabelecimento doutras espécies, tal como veremos por oportuno.

Maria Berenice Dias[65] cita a importância de que, após o nascimento de determinado indivíduo, este se coloque na posição de determinada família, vez que se torna impossível a sobrevivência do ser humano, por princípio, autonomamente. Por um longo período de tempo, este deverá ser guiado por pessoas capazes de lhe dar afeto e base estrutural para o pleno desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e metafísicas.

A nova metodologia jurídica adotada com a Constituinte de 1988 abarcou o sentido de proteção do indivíduo, trazendo-o para a concepção de formar um sujeito de direito. É neste sentido que Maria Berenice Dias[66] coloca a família, reafirmando a conotação social da lei, concluindo que:

Todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: a filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais significam que a consagração, também no campo da parentalidade, do novo elemento estruturante do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial

É com esta premissa adotada, que Paulo Lôbo aduz, conceitualmente, a noção de filho, dando encaixe em situações outras que não a restringem.

Filiação é o conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante a posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. Quando a relação é considerada em face do pai, chama-se paternidade, quando em face da mãe, maternidade. Filiação procede do latim filiatio, que significa procedência, laço de parentesco dos filhos com os pais, dependência, enlace.[67]

Nesta mesma seara interpretativa é que Maria Helena Diniz[68]se coaduna. Assim como Paulo Lôbo, a douta jurista confirma a presença doutras espécies de filiação, e cientifica a proteção jurídica, mediante disposição constitucional, ainda que intrínseca, da espécie socioafetiva.

Importante salientar que, por conseguinte, trataremos, em capítulo específico, da filiação socioafetiva, tema central deste trabalho monográfico. A citação desta espécie de filiação se faz imperiosa ao tempo, vez que a noção de filiação, com a nova constituinte, reiterando a já explicitada desvinculação do texto constitucional civil para com as regras do Direito Canônico, fez com que a origem do filho seja irrelevante para o Direito, bastando, para a compatibilização da relação jurídica entre o intitulado pai (lato senso) e o instituído filho, a relação prática e convivencial deste para com aquele.

Há a coadunação do explicitado às palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[69].

Assim, sob o ponto de vista técnico-jurídico, a filiação é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal. Remete-se, pois, ao conteúdo do vínculo jurídico entre as pessoas envolvidas (pai/mãe e filho), trazendo a reboque atribuições e deveres variados.

Se torna evidente e necessária a aplicação do disposto quando do consagrado princípio da igualdade entre os filhos, independente de sua origem de parentalidade, conforme colocação do artigo 1.596 do Código Civil Pátrio, reiterando a regra do artigo 227, §6º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Conforme preconiza Maria Helena Diniz[70], a classificação de filhos pode ser feita somente como consequência de sua didática sem que, para tanto, isto signifique uma diferenciação de tratamento. Desta maneira, serão tratados os filhos tidos matrimoniais e não matrimoniais, por conseguinte e, consequentemente, aqueles havidos por adoção, cada um em seu específico tópico.

3.1 A FILIAÇÃO HAVIDA NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO

Vê-se que a noção da família matrimonializada deixou de ser o centro da sociedade, como regra, tendo a lei respaldado também outras formas de convivência, sem que, para tanto, houvesse de discriminar as demais entidades familiares. Tal premissa se legitima com a consagração da União Estável como forma de constituição familiar, avessa ao casamento, ainda que com características ligadas a esta, por seus meios de regime dotais.[71]

Ademais, há presente em nosso sistema civil formas de reconhecimento da paternidade que legitimam-na ao ponto do estabelecimento de presunções, levando em consideração, nas palavras de Paulo Lôbo[72] “a natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou maternidade a alguém, ou então, de óbices fundados em preconceitos históricos decorrentes da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada”.

Sem adentrar, com maiores detalhes, na correspondência legal necessária da norma de legitimação da presunção de paternidade e maternidade quando da existência de vínculo matrimonial, coloquemos as regras postas no artigo 1.596 do Código Civil Brasileiro[73], tais sejam:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II  - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Maria Berenice Dias assenta a filiação havida na constância do casamento, ou seja, aquela decorrente da presunção legal de correspondência de filho por consequência do estabelecimento de um vínculo matrimonial deste para com a genitora do filho,à uma “ficção jurídica”, quando dispõe que “pai será sempre o marido da mãe”.

Seria uma correspondência direta ao princípio do pater is est quem nuptiae, algo como “pai é quem assim demonstram as justas núpcias”, adentrado diretamente e com reiteração na legislação civil de 1916.[74]

Silvio de Salvo Venosa coloca que a disposição no Código Civil Brasileiro de 1916 era:

[...] fundamentada no que usualmente ocorre, possuía um embasamento cultural e social, em prol da estabilidade da família, uma vez que impedia que se atribuísse a prole adulterina à mulher casada. A maternidade comprova-se pelo parto (arts. 241 e 242 do Código Penal). Daí a regra tradicional mantida pelo novo Código no sentido de que “não basta a confissão materna para excluir a paternidade”. [75]

Caio Mario da Silva Pereira[76] cita que, em complemento com o aduzido por Venosa, houve uma priorização da lei civil, ainda que haja disposição de entes familiares diversos, além dos compostos, por base, pelo casamento, àqueles vínculos formados por este último.

Não se podendo provar diretamente a paternidade, toda a civilização ocidental assenta a ideia de filiação num “jogo de presunções”, a seu turno fundadas numa probabilidade: o casamento pressupõe as relações sexuais dos cônjuges e fidelidade da mulher; o filho que é concebido durante o matrimonio tem por pai o marido de sua mãe. E, em consequência, “presume-se filho o concebido na constância do casamento dos pais”. Esta regra já vinha proclamada no Direito Romano: pater is est quem iustae nuptiae demonstrant. Embora todos os autores proclamem o caráter relativo desta presunção (iuris tantum), deve-se acentuar, contudo, que a prova contrária é limitada. [77]

Fica clara a intenção do legislador, quando manteve a forma de se presumir a filiação havida no casamento, a buscar a manutenção deste, preservando-o de possíveis acontecimentos que o fizessem cessar. Seria absurda, ao entendimento dos mais conservadores viventes em uma sociedade, a ideia de que um homem ou mesmo mulher, que contraia núpcias com alguém, mas que tenha filhos de outra pessoa que não aquela a que oficialmente está ligada por laços matrimoniais.[78]

Uma dicotomia se faz presente, quando tratamos da presunção pater is est, se levarmos em consideração a indisposição desta forma de reconhecimento de filho para a União Estável. Paulo Nader[79] entende que mesmo nada dispondo a norma positiva acerca da possibilidade de presunção de paternidade na União Estável, havendo esta a ser uma das entidades familiares protegidas constitucionalmente, de forma expressa, por intermédio do art. 226, cabível a incidência deste instituto, porquanto a aplicação do principio da igualdade das espécies de família.

Para Rolf Madaleno[80], aplicar-se-á, analogicamente, as regras de presunção filiativa também à União Estável, ao ponto que deverá ser visto, sempre, o bem estar do nascente e que, diante da negatória de paternidade, faz-se simples a sua desconstituição, pois, “notadamente, nos dias atuais, a ciência conferiu ao homem a possibilidade de impugnar a filiação a ele imposta por presunção “

De forma absolutamente injustificada a lei não estende a presunção de paternidade à União Estável. Tal leva boa parte da doutrina a afirmar que a presunção pater est só existe no casamento. Talvez por isso não é imposto o dever de fidelidade aos conviventes, somente o dever de lealdade (CC 1.724). A diferenciação é de todo desarrazoada. Se a presunção é de relacionamento sexual durante o casamento, esta mesma presunção existe na União Estável. Cabe um exemplo. Falecendo o genitor durante a gravidez ou antes de ter logrado registrar o filho, este terá de intentar ação investigatória de paternidade. A ação será proposta pelo filho representado pela mãe e no polo passivo vai figurar sua mãe, na condição de representante do espólio. A saída é nomear um curador ao autor, mas a solução é admitir a presunção da filiação. Assim, ainda que a referência legal seja à “constância do casamento”, a presunção de filiação, paternidade ou maternidade aplica-se à União Estável. [81]

Já Guilherme Calmon Nogueira da Gama[82] é mais cauteloso, vez que coloca os institutos do Casamento e da União Estável em igualdade de condições, conforme tutelamento pelo Estado à todas as entidades familiares, coadunado pelo art. 226, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, mas lembra que se tratam de diferentes espécies e com tratamento diferenciado legitimado pela própria Carta Magna.

[...] no âmbito das relações internas entre os cônjuges, comparativamente, ao âmbito das relações internas entre os companheiros, haverá importantes diferenças – inclusive quanto à procriação, sob determinados aspectos-, do contrário, não haveria sentido na própria previsão constitucional contida no §3º do art. 226, a respeito de a lei dever facilitar a conversão do companheirismo em casamento [...]

De forma ainda mais enfática, Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti[83] dispõe a impossibilidade de presunções de paternidade na União Estável, se colocando na corrente legalista do tema, aduzindo a alta referibilidade da lei no que tange exclusivamente às relações matrimoniais, imputando, como alternativa, a Ação de investigação de paternidade para determinação do estado filiativo. 

Quanto às duas primeiras regras de presunção paternal, tem-se uma regra positivada, objetiva, que limita a maiores discussões. Ademais, conforme referido por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[84], há correspondência direta, pelos prazos trazidos pelos incisos I e II do artigo 1.597, do período mínimo e máximo de uma gestação viável, realçando que a contagem do primeiro inicia-se com o princípio da convivência conjugal, e não da celebração do casamento.

É, inclusive, a disposição legislativa de corresponder não a celebração do casamento, mas ao período convivencial do casal, que legitimaria, além do disposto no artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil, a aplicação da presunção de paternidade aos filhos havidos na constância da União Estável. Neste sentido, inclusive, é o julgado do Superior Tribunal de Justiça[85]:

RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATOS JURIDICOS TRANSLATIVOS DE PROPRIEDADE EM CONDOMINIO. LEGITIMIDADE "AD CAUSAM" ATIVA DE FILHOS NÃO RECONHECIDOS DE CONDOMINO JA FALECIDO. A REGRA "PATER EST..." APLICA-SE TAMBEM AOS FILHOS NASCIDOS DE COMPANHEIRA; CASADA ECLESIASTICAMENTE COM O EXTINTO, SUPOSTA UNIÃO ESTAVEL E PROLONGADA. [...] (grifei)

Da mesma maneira, é o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina[86], aos termos:

TJSC. Da filiação. Reconhecimento de paternidade post mortem. Casal que vivia em União Estável. Filho nascido 134 dias após o falecimento do companheiro. Presunção de filiação. Art. 226, §3º da CRFB/88. Entidade familiar. Aplicação do art. 1.597 do CC/2002. Desnecessidade de ajuizamento de ação de investigação de paternidade. Sob a ótica do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, deve-se aplicar à União Estável o disposto no artigo 1.597 do Código Civil. Assim, se o infante nasceu 134 após o rompimento da união, pela morte do companheiro, a paternidade deve ser presumida, e é dispensada a necessidade de propositura de ação para investigação de filiação. 

Por conseguinte, coloca-se uma inovação legislativa, se compararmos com ao que se dispunha na legislação Civil de 1916: a existência das espécies homóloga a heteróloga de filiação, acompanhadas de suas possibilidades presuntivas ao estabelecimento da paternidade. Há de se diferenciar a inseminação artificial homóloga da heteróloga, para fins de compreensão do artigo 1.597, incisos III e IV, do Código Civil Brasileiro. Enquanto a primeira diz respeito ao fornecimento de material genético próprio do marido para fecundação do óvulo da esposa, o último refere-se à utilização de sêmen de terceiro. Vislumbra-se, no derradeiro caso, conforme preceituação legislativa, a necessidade de expressa autorização do marido para que assim se proceda.[87]

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Há, no caso da fecundação por intermédio de inseminação artificial heteróloga, uma correspondência direta da paternidade socioafetiva, ainda que na sua mais íntima base formativa. Segundo preconiza Maria Helena Diniz[88]:

A presunção do art. 1.597, V, visa a instaurar a vontade procracional no marido, como meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao autorizar a inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, então, apesar de não ter componente genético, terá fundamento moral, privilegiando-se a relação socioafetiva. Seria torpe, imoral, injusta e antijurídica a permissão para o marido que, conscientemente e voluntariamente, tendo consentido com a inseminação artificial com esperma de terceiro, negasse, posteriormente, a paternidade. Como admitir àquele que deu o nome à criança, tratando-a, perante a sociedade, como filha, venha a negar sua filiação, ferindo sua dignidade como ser humano? Justa não seria a permissão da propositura de ação, com o escopo de desconstituir o registro de nascimento pelo pai que reconheceu aquele filho, mesmo sabendo da inexistência do vínculo biológico, desde que esteja evidenciada a situação de paternidade socioafetiva. (grifei)

Não obstante a existência de presunções legais de filiação, caberá, à sua discordância, conforme retrogradamente explicitado, a imputação da Ação Negatória de Paternidade.

Via-se, na legislação civil anterior, que as possibilidades de se negar a paternidade eram restritas, vez que estas estavam vinculadas a disposições objetivas, além de conter prazo específico para apresentação desta impugnação.[89]

O novo Código, em sentido exatamente diverso ao adotado na anterior codificação, afasta por inteiro qualquer restrição à negatória de paternidade pelo marido [...]. Sendo nova, merece a norma cuidadosa leitura e estudo para sua adequada interpretação, considerando que, se de um lado era extremamente rigoroso o legislador anterior, permitir agora, livremente e em qualquer circunstância, a rejeição do pai presumido ao filho, pode consagrar idênticas injustiças.[90]

Ainda que sejam reconhecidamente subjetivos os motivos que levam ao consagrado pai a negar a paternidade do filho gerado na constância do casamento, há casos na lei em que se dispõe, diretamente, ao ilide da controvérsia. É o caso, por exemplo, daquele que prova sua impotência à época da concepção. Para Maria Berenice Dias, no entanto, esta assertiva é desarrazoada, por não se poder falar, ao mundo moderno, em impotência ou mesmo infertilidade. Em princípio, não se entrando na seara da filiação afetiva, o que se necessita, para fins de vínculo genético de filiação, é um simples exame de DNA, “ainda que não mereça ser sacralizado”. Assim, se torna mais simples a realização deste a se discutir se o indivíduo era impotente/estéril à época da concepção do filho gerado.[91]

No que concerne a legitimidade para proposição da referida Ação, o atual Código Civil retirou a noção privativa de que a ação negatória caberia somente ao marido da genitora, constante quando da aplicação da anterior legislação, e acrescentou que os herdeiros do impugnante prosseguirão na ação após a morte deste. [92]

Quanto ao prazo para se propor a Negatória de Paternidade, necessária se faz a brilhante sintetização arrolada por Arnaldo Wald[93]:

O prazo decadencial para propor a ação negatória de paternidade já vinha sendo desconsiderado, principalmente após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo art. 27 prescreve que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais e seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Atento à evolução da jurisprudência, da doutrina e da legislação a respeito, a ação negatória de paternidade, com a superveniência do Código Civil de 2002, passou a ser imprescritível (art. 1.601).

Desta forma, coloca-se, pormenorizadamente, a filiação havida na constância do casamento, suas formas de presunção e negação, antevendo aquela posta fora da matrimonialidade, conforme ver-se-á por conseguinte.

3.2 A FILIAÇÃO NÃO-MATRIMONIAL E SUAS FORMAS DE RECONHECIMENTO

Já viu-se que na codificação anterior, a determinação de filho era posta de forma a, em alguns casos, compatibilizar a discriminação em seu tratamento, dependendo de sua origem de parentalidade. Desta forma, somente aos filhos legítimos, ou seja, aqueles tidos dentro de uma relação de casamento, era que corresponderia a literalidade de direitos, seja ao âmbito que for.[94]

O direito anterior também conhecia, entre os espúrios, a classe dos sacrilégios, que eram os filhos havidos por sacerdote ou freira, ou seja, pessoa ligada a voto de castidade. Essa categoria desapareceu do direito brasileiro, ao se proceder à separação entre a Igreja e o Estado, de modo que, a partir de então, os filhos sacrilégios saíram da categoria dos espúrios, para serem tidos como simplesmente naturais. [95]

O Direito, dada a nova mecânica constitucional, de se centrar no indivíduo e não o patrimônio, não pôde deixar de tutelar as relações daqueles advindos de uma relação outra diferente do matrimônio. Exigiu-se, com a determinação do principio da igualdade de condições entre as espécies de filho, que o texto infraconstitucional, ou seja, a Codificação Civil, colocasse dispositivos específicos que legitimassem o reconhecimento da filiação não-matrimonial com nuances mais amplas daquelas postas na Codificação Civil de 1916.[96]

Desta maneira, colacionou-se, na legislação civil vigente, duas formas de reconhecimento, tais sejam: o voluntário e o judicial.

Quanto ao voluntário, retira-se que este deverá ser feito por escritura pública, ou mesmo documento particular a que se deve ser arquivado em cartório, por meio de testamento “ainda que nele incidentalmente manifestado e por manifestação expressa e direta perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém (cf. art. 1.609, I a IV)”.[97]

A lei nº 8.560/92 regulou especificamente a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento. Essa norma derroga os dispositivos citados no Código Civil de 1916 e do Estatuto da Criança, porque regula inteiramente a matéria. [...] Essa redação foi inteiramente mantida pelo art. 1.609 do Código Civil de 2002.[98]

Vê-se por irrevogável o reconhecimento de filho, ainda que haja arrependimento do pai/mãe após sua declaração de vontade externada voluntariamente. No caso do testamento, por exemplo, caso este seja revogado, a cláusula que estabelece o reconhecimento de determinado filho não o será, continuando a produzir seus efeitos, conforme preconizado no artigo 1.610 do Código Civil Brasileiro.[99]

[...] Claro que, a qualquer momento, sendo demonstrado em juízo que a declaração voluntária não superou a discrepância entre o registro da filiação e a verdade biológica, ou até mesmo a ocasionou, poderá o juiz decretar a desconstituição de seus efeitos, que não se confunde com a revogação, ato unilateral de vontade do declarante. Além de irrevogável, o ato de reconhecimento não pode ficar sujeito a condição ou termo. Será ineficaz a cláusula da declaração de paternidade ou maternidade que a condicionar, por exemplo, à gratidão do filho ou a limitar temporalmente. Ou seja, o reconhecimento vale e é eficaz, mas a condição ou termo não produz efeito nenhum. [100]

Tratando do tema relacionado à desbiologização da paternidade, referem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que, possível se vê o reconhecimento voluntário do filho afetivo, porquanto a desnecessidade de comprovação prévia de vínculo genético do aludido pai para com o reconhecido filho, ao ato característico de liberalidade do indíviduo que tem por vontade reconhecer alguém como procriador deste. Trata-se da socioafetividade intrínseca na noção geral da filiação. Ao tema, inclusive, aduzem a possibilidade de desconstituição da paternidade anterior, ante a existência de registro que já contenham preenchidas as condições de maternidade e paternidade. Trata-se da relativização da realidade registral, quando esta não corresponde a verdade jurídica, ou simplesmente a verdade de fato, da convivência familiar.[101]

O reconhecimento voluntário da paternidade independe da prova da origem genética. É um ato espontâneo, solene, público e incondicional. É ato livre, pessoal, irrevogável, e de eficáciaerga omnes. Não é um negócio jurídico, é um ato jurídico stricto senso. O ato do reconhecimento é irretratável e indisponível, pois gera o estado de filiação. Assim, inadmissível arrependimento. Não pode, ainda, o reconhecimento ser impugnado, a não ser na hipótese de erro ou falsidade do registro. O pai é livre para manifestar sua vontade, mas seus efeitos são estabelecidos em lei. [102]

O entendimento da possibilidade de retificação do registro civil no caso de ausência do vínculo afetivo entre pai e filho, encontra guarida jurisprudencial, quando do julgado de Apelação Cível, datado de 11-04-2012, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, quando dispôs que:

[...] A retificação do registro civil de nascimento, com supressão do nome do genitor, somente é possível quando há nos autos prova cabal de ocorrência de vício de consentimento no ato registral ou, em situação excepcional, demonstração de cabal ausência de qualquer relação socioafetiva entre pai e filho. Estando demonstrada nos autos a filiação socioafetiva, a paternidade impera sobre a verdade biológica. (grifei).[103]

Estando a retificação de registro civil adentrada também nas relações de reconhecimento judicial de filho, por meio da Ação Investigatória de Paternidade (lato senso), citemos por correspondência a segunda espécie de Reconhecimento de filhos extramatrimoniais, tal seja, a judicial.

Na eventualidade de não ocorrer o reconhecimento voluntário da paternidade (com mais frequência) ou da maternidade, o Direito brasileiro prevê a possibilidade da investigação da paternidade e da maternidade (ou reconhecimento judicial ou forçado da paternidade e da maternidade). Se, no passado, havia restrições quanto às hipóteses de investigação da paternidade e/ou da maternidade, a Constituição Federal de 1988 eliminou todas as restrições e limitações ao reconhecimento jurídico da paternidade ou da maternidade. [104]

O reconhecimento judicial de filho é resultante de sentença prolatada em ação específica que visou a aplicação do estado filiativo a que se teve por procedência. Apesar de conter caráter extremamente pessoal, conforme disposto por outrora, vislumbra-se a possibilidade dos herdeiros daquele continuarem na Ação intentada, por analogia do usufrível quando negatória anteriormente explicitada. Coaduna-se o entendimento de que passível será de sua contestação por “qualquer pessoa que tenha justo réu, seus filhos matrimoniais ou reconhecidos anteriormente, os parentes sucessíveis ou qualquer entidade obrigada ao pagamento de pensão aos herdeiros do suposto pai”. [105]

Em tema tão intrincado, em que várias verdades se superpõem, mister é estabelecer – ou menos tentar – um critério para a identificação dos vínculos de parentalidade. Até o advento da Constituição Federal, prevalecia o critério da verdade legal, ou seja, se alguém era filho porque a lei assim ordenava, mesmo que todos soubessem que não era filho biológico do marido da mãe. Tanto assim era que a lei concedia o exíguo prazo de dois meses para o marido “contestar a legitimidade do filho de sua mulher” (CC1916 178 §3º). A mudança foi radical. Agora a lei afirma que a ação é imprescritível (CC 1.601), privilegiando a verdade biológica. Cresce o movimento para emprestar maior importância ao critério socioafetivo, que se sobrepõe à verdade presumida e também à verdade biológica, pois tem por base um valor maior: o vínculo de afetividade que a constituiu. Tem prevalência até sobre a coisa julgada, pois nada deve obstaculizar o estabelecimento de vínculo jurídico para chancelar uma verdade que não existe. Comprovada a posse de estado de filho, ou melhor, o estado de filho afetivo, não há como destruir o elo consolidado pela convivência, devendo a justiça, na hora de estabelecer a paternidade, sempre respeitar a verdade da vida, constituída ao longo do tempo.[106]

Maria Berenice Dias[107] fala ainda que a verdade biológica deve sim ser prestigiada, desde que ausente a verdade socioafetiva. Nesta mesma premissa, analogicamente se faz imperiosa a assertiva da prevalência da realidade afetiva, porquanto a prova essencial para o estabelecimento da paternidade.

Não obstante a crescente predominância jurisprudencial de acatamento da verdade afetiva em detrimento da biológica cite-se a formação da Súmula 301[108] do Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2004. Ainda que a presunção de paternidade seja relativa, ante a negativa do agente em se submeter à exame genético, e que gere efeitos processuais, com base em provas de paternidade, a sua prática tem alcance material, vez que suprime a constatação doutros meios probatórios para a formação do estado filiativo.

Do conjunto dos precedentes, percebe-se que a súmula é totalmente inútil, equivocada em seus fundamentos e violadora de princípios constitucionais. Sob a sedução do progresso científico e da grande precisão do exame de DNA, parte-se de premissa falsa que contamina todo resultado e leva a decisões injustas, a saber, a de que toda paternidade seria biológica e esta seria a verdade real.[109]

O mesmo Superior Tribunal de Justiça[110], em decisão posterior à proclamação da súmula supracitada, decidiu que não seria possível a Ação Investigatória de Paternidade cumulada com anulação de registro civil sob a alegação de que havia falsidade no registro, por ter sido feito pelo pai de fato, não o biológico. Desta forma, consagrou-se o entendimento da doutrina contemporânea, conforme explicitado nos dizeres de Maria Berenice Dias, aos termos:

Em casos como o presente, o termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob autêntica posse de estado de filho, com proteção em recentes reformas do direito contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral, portanto, jurídica, conquanto respaldada pela livre e consciente intenção do reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de afetar o ato de registro da filiação, dar ensejo a sua revogação, por força do que dispõem os artigos 1609 e 1610 do Código Civil de 2002.

O centro da prova na contemporânea Ação de Investigação de Paternidade é o que chamamos de Posse do Estado de Filho, sendo esta a situação fática que estabelece a filiação de fato, aquela que é pública e notória, quando o filho já é reconhecido e amplamente conhecido onde co-habita como parente do investigante nos termos e condições do instituto filiativo.[111]

Há de se separar a busca pela origem genética, da constituição do vínculo de filiação. Ao tema, dispõem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[112]:

No campo da investigação da parentalidade, almeja-se o reconhecimento do estado de filiação, não havendo prevalência necessária do laço biológico, podendo estabelecer a condição paterno-filial por força de um vínculo genético ou socioafetivo, a depender do caso concreto. De outra banda, no âmbito da investigação de origem ancestral, o objetivo é mais simples e o objeto cognitivo do processo mais estreito: tão somente estabelecer a origem genética de alguém, independentemente de ter sido, ou não, estabelecido o vínculo filiatório. 

Estabelecida judicialmente a paternidade, por meio da Ação Investigatória proposta, dar-se-á a sentença que deverá ser levada, aos termos, a Registro de nascimento, para que seja averbado o assento do estado de filiação.[113]

Após o registro determinado pelo juiz, produz-se eficácia jurídica extunc. O reconhecimento, seja ele voluntário ou forçado, é declaratório do estado de filiação, que já existia antes dele. Os efeitos da sentença (e do ato voluntário) retroagem à data do nascimento do reconhecido. [114]

Importante salientar a legitimidade ativa do Ministério Público para intentar a Ação de Investigação de Paternidade, coadunado com a Lei 8.560/92, que antecedeu as disposições de reconhecimento da paternidade extramatrimonial diante da inaplicação e omissão, em muitos casos, dos dispositivos da Lei Civil vigente à época, com a ascensão da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Uma vez registrada somente com o nome da mãe, o Oficial de Registro Civil deve “encaminhar para o juiz corregedor certidão integral do registro com as indicações do possível pai (sob a vertente da verdade biológica) para que haja averiguação oficiosa do que é alegado pela mãe da criança”.[115]

Neste sentido, inclusive, reitera o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina[116]:

RECLAMAÇÃO. ARTIGO 243 DO REGIMENTO INTERNO DESTA CORTE. PROCEDIMENTO DE AVERIGUAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE. LEI 8.560/92. AUSÊNCIA DE RECURSO ESPECÍFICO PREVISTO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO. CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO. MÉRITO. EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO SEM A OUVIDA DA MÃE DA CRIANÇA. INFRINGÊNCIA AO RITO LEGAL. DECISÃO CASSADA. RECLAMAÇÃO ACOLHIDA.

“É dever do Oficial do Registro Civil da Pessoas Naturais remeter ao juízo da Vara dos Registros Públicos a certidão de nascimento que não conste o nome do pai, a fim de que se instaure procedimento de cunho administrativo para averiguação oficiosa da paternidade. O reconhecimento da paternidade é um direito irrenunciável, indisponível e imprescritível, motivo pelo qual deve o juízo esgotar todos os meios de busca pelo pai da criança, especialmente para garantia dos direitos constitucionalmente previstos. O art. 2º, §1º da Lei 8.560/1992 determina a oitiva da genitora acerca da paternidade, a fim de que, posteriormente, o infante, ou mesmo o Ministério Público, possa promover ação de investigação de paternidade”. (Reclamação n. 2011.046531-0, da Capital, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, j. 19.07.2012).

Desta maneira, sendo desenvolvida a noção jurídica dos institutos de reconhecimento e presunção da paternidade, imperioso se faz, para complementação da base teórico-monográfica, o estudo da adoção e seus efeitos na relação familiar, aos termos seguintes.

3.3 A ADOÇÃO FILIATIVA: O AFETO COMO LEGITIMADOR DE DIREITOS

O afeto é usualmente correspondido como legitimador da real filiação, o que denota e reitera o viés social e fático da atual normativa jurídica. “A verdadeira paternidade funda-se no desejo de amar e der ser amado”, fator esse que adentra na base formativa da adoção, que corresponde à filiação por opção, que acaba intrinsecamente ligada à paternidade socioafetiva, que é mais ampla.[117]

No novo Código Civil o instituto da adoção compreende tanto de crianças e adolescentes como a de maiores, exigindo procedimento judicial em ambos os casos (art. 1.623). Descabe, portanto, qualquer adjetivação, devendo ambas ser chamadas simplesmente de “adoção”. Foram reproduzidos, na quase-totalidade, e com algumas alterações de redação, os dispositivos do Estatuto. Contudo, o novo diploma não contém normas procedimentais, não tratando da competência jurisdicional. Mantêm-se, portanto, a atribuição exclusiva do Juiz da Infância e da Juventude para conceder a adoção e observar os procedimentos previstos no mencionado Estatuto, no tocante aos menores de dezoito anos.[118]

Trata-se do instituto criador de um vínculo jurídico paternal, por intermédio de um ato jurídico doutrinariamente visto como bilateral que impõe a precípua ideia da paternidade (lato senso) entre pessoas que não a tem biologicamente.[119] Da mesma maneira Orlando Gomes dispõe que “adoção vem a ser o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente de procriação, o vínculo da filiação. Trata-se de ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco de primeiro grau na linha reta”.[120]

A adoção é, portanto, um vínculo de parentesco civil, em linha reta, estabelecendo entre adotante, ou adotantes, e o adotado um liame legal de paternidade e filiação civil. Tal posição de filho será definitiva ou irrevogável, para todos os efeitos legais, vez que desliga o adotado de qualquer vínculo com os pais de sangue, salvo os impedimentos para o casamento (CF, art. 227 §§ 5º e 6º), criando verdadeiros laços de parentesco entre o adotado e a família do adotante (CC, art. 1.626).[121]

Segundo Caio Mario da Silva Pereira:

A adoção produz efeitos pessoais e patrimoniais. Em termos genéricos, dá nascimento a relações de parentesco. Ressalvam-se, contudo, os impedimentos matrimoniais, que, por motivos de caráter moral, vigoram entre adotante e adotado, entre o adotante e o cônjuge do adotado, entre o adotado e o cônjuge do adotante, entre o adotado e o filho do adotante, o que foi recepcionado pelo art. 1.626 do Código Civil de 2002.[122]

Via-se, na retrógrada legislação civil de 1916, que a adoção tinha como objetivo maior dar filhos a quem não os tinha pela natureza, e trazê-los para o aconchego da família[123], os fazendo suprimentos da ausência de possibilidade da filiação natural.

A filiação, sintonizada na proteção avançada da pessoa humana e da solidariedade social ganhou instrumentalização, servindo para os núcleos familiares. Abandonou-se a subordinação da família a uma função procracional, tão relevantes para efeitos econômicos. A filiação passou a ser um momento de realização humana, plenitude existencial, seja qual for a sua origem. A filiação, enfim, passou a ser única, podendo ser estabelecida por diferentes formas. E a adoção é um dos variados mecanismos de determinação filiatória, baseada no afeto e na dignidade, inserindo o adotando em um novo núcleo familiar.[124]

Há, dentro do tema adoção, que centraliza o afeto como ágama familiar incluso no contemporâneo Direito Civil, uma discussão por demais sociológica, ao ponto de demonstrar vantagens e desvantagens de sua aplicação. É dever do Estado prestar assistência ao menor abandonado, assim como demonstrar o desejo de o colocar num ambiente familiar que lhe dê a oportunidade de desenvolver, saudavelmente, suas capacidades sociais e metafísicas para a vivência em sociedade.[125]

Contemporaneamente, a adoção está assentada na ideia de se oportunizar a uma pessoa humana a inserção em núcleo familiar, com a sua integração efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo às suas necessidades de desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma psíquico, educacional e afetivo.[126]

A família, conforme bem explicitado por LuisDiez-Picazo e Antônio Gulon, é o básico instituto para a real socialização do indivíduo. É dentro da realidade familiar, na convivência, com o estabelecimento de limites comportamentais, demonstração de tradições diversas, de crenças, hábitos e correlatos, que se há de preparar o ser para a inserção na vida social, denotando um viés colaborativo, nesta premissa, tal qual quando do estabelecimento da mútua ajuda.[127]

Trilhando as sendas abertas pelo constituinte (humanista e garantista), nota-se na adoção como um mecanismo de prestígio da convivência familiar, estabelecendo a relação filiatória por perspectiva afetiva, inserindo alguém em família substituta. Aliás, de todas as formas de inserção em família substituta, a adoção é a mais ampla e completa, propiciando o enquadramento de alguém no seio de um novo núcleo familiar, transformando o adotado em membro da nova família.[128]

Luiz EsonFachin explica que a adoção encontra intrincada em sua base formativa a noção da sociafetividade, porquanto robusta a aplicabilidade deste conceito, vez que a escolha entre adotantes e adotados é a sua central correspondência.[129]

Para Arnoldo Wald, a atual adoção não mais comporta o viés individualista, como era vislumbrada, em tempos outros, quando a realidade do adotante bastava sem sequer colocar em xeque o bem estar do adotado. Não que este último não fosse verificado, mas não era predominante para a completude do processo adotivo. Atualmente, verifica-se a adoção como sendo “um instituto de solidariedade social, de auxílio mútuo, um meio de repartir por maior número de famílias os encargos de proles numerosas”.[130]

Torna-se manifesta a ligação da socioafetividade e do instituto da adoção quando mencionada a denominada “à brasileira”, citada por Maria Berenice Dias.[131]

Há uma prática disseminada no Brasil – daí o nome eleito pela jurisprudência- de o companheiro de uma mulher perfilhar o filho dela, simplesmente registrando a criança como se fosse seu descendente. Ainda que este agir constitua crime contra o estado de filiação (CP 242), não tem havido condenações, pela motivação afetiva que envolve sua prática. [132]

Há uma prevalência de vontade do pai afetivo, mesmo à negatória de paternidade intentada pelo pai biológico. Assim como na adoção legal, vislumbra-se na denominada “à brasileira”, a imutabilidade registral e de condição de pai, mesmo à manifestação de vontade contrária posterior. Nesta premissa, importante a colocação da condição do estabelecimento da posse do estado de filho, porquanto sua indução à realidade fática vem sendo utilizada para a desconstituição do Poder Familiar, ante a inexistência do trato como filho.[133]

Neste sentido é, inclusive, o entendimento de Maria Berenice Dias[134], em ação que visava a anulação de maternidade afetiva, aos termos:

Ademais, é a recorrente quem refere, na peça vestibular, ter criado a recorrida. Ora, a filiação, mais do que um fato biológico, é um fato social. O que se deve ter em conta é que a recorrente, mesmo  sem ter gerado a recorrida, é sua mãe, mãe adotiva, na medida em que foi responsável pelo seu desenvolvimento desde tenra idade. Ao depois, eventual vício de consentimento por parte da apelante, quando do registro de nascimento da apelada, restou suplantado pelo seu comportamento visto que, mesmo após ter conhecimento da declaração constante do referido assento, permaneceu desempenhando o papel de mãe da recorrida.

O maior exemplo da aplicação da socioafetividade dentro de um dos institutos do Direito de Família é quando daquela adentrada na base formativa da adoção. Na adoção, por ter intrínseco o elemento do afeto, e sendo evidente a existência do trinômio nome, trato e fama, torna-se manifesta a assertiva de que, em contraponto da filiação afetiva gênero, que não tem o nome elencado, necessariamente, a adoção o trás como legitimador da situação de fato. Ou seja, na adoção tem-se o prestígio afetivo de uma paternidade de forma expressa, quando registralmente se coloca o indivíduo como sendo de sua prole.[135]

A posse do estado de filho e, por sua vez, a composição fática da filiação socioafetiva, tem por requisitos básicos o trato e a fama, visando o nome, que lhe será dado quando postulado, seja de forma judicial ou mesmo voluntariamente, quando a lei assim o permitir.[136]

Veremos com maior especificidade, em capítulo próprio, o que vem a ser esta posse do estado de filho, critério necessário que se fale em filiação por afeto e, diante de tal, ante sua existência fática, a aplicação da habilitação deste na linha sucessória do reconhecido pai.

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Sobre o autor
Daniel Gilson Barcelos

Graduando em Direito - Universidade do Sul de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23563. Acesso em: 28 mar. 2024.

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