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É possível uma nova ética para a atual civilização tecnológica?

Uma análise sobre o livro “O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica”, de Hans Jonas

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29/01/2013 às 18:39
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Aquilo que se deve exigir do nosso princípio não pode ser obtido pela ideia tradicional de direitos e deveres, ou seja, pela ideia de reciprocidade, segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio. Aquilo que não existe não faz reivindicações, e nem por isso pode ter seus direitos lesados.

Resumo: O “Princípio Responsabilidade” constitui-se num dos livros mais importantes do período pós segunda guerra mundial, quando vários cientistas e pensadores passaram a debater o real papel da tecnologia para a humanidade, tendo-a visto atuando, muitas vezes, em prol de catástrofes contra os próprios homens. Diante de um poder tão extraordinário de transformações, Jonas se preocupava com as regras moderadoras para ordenar as ações humanas como questão fundamental do nosso tempo, sendo que esse enorme desajuste somente poderá ser corrigido, no entendimento de Jonas, pela formulação de uma nova ética. A ordem ética está presente, não como realidade visível, mas como um apelo previdente que pede calma, prudência e equilíbrio. É a esta ordem que Hans Jonas dá o nome de Princípio Responsabilidade. E é por decorrência da amplitude do seu enfoque, pela abrangência filosófica e pela magnitude da realidade do seu debate que esse texto merece ser resenhado, refletido e trazido para o pensamento das ciência sociais.

Palavras-chave: Ética; Responsabilidade; Hans Jonas; Civilização Tecnológica.


“Se ages contra a justiça e eu te deixo agir, então a injustiça é minha”

Mahatma Ghandi

É possível uma nova ética para a atual civilização tecnológica? Sim, é a resposta de Hans Jonas, cuja argumentação será discutida nesta análise crítica que ora se apresenta.


1. Sua importante formação

Alemão de Mönchengladback, Hans Jonas nasceu em 1903 e viveu até 1993, quando faleceu em Nova Yorque, nos Estados Unidos. De origem judia, teve o período inicial de sua formação humanística na leitura atenta dos profetas hebreus. Três podem ser os momentos marcantes de sua formação filosófica.

O primeiro tem início em 1921 quando, ainda recém-formado, freqüentava, na Universidade de Freiburg, as aulas de Heidegger. Segundo o próprio Jonas, este foi, por muito tempo, seu mentor intelectual. Em 1924 Heidegger transfere-se para a Universidade de Marburg e Jonas o acompanha. Lá conhece Rudolf Bultmann, e sob sua orientação elabora uma tese sobre a gnose no cristianismo primitivo que é apresentada em 1931. Como decorrência desse trabalho inicial publica, em 1934,  o célebre "Gnosis und spätantiker Geist", considerado pelo próprio Jonas seu primeiro grande momento como filósofo. Nesse mesmo ano, no entanto, Jonas se vê obrigado a abandonar a Alemanha em função da ascensão do nazismo ao poder.

Seu segundo grande momento intelectual ocorre em 1966, com a publicação de "The Phenomenon of Life, Toward a Philosophical Biology", obra em que estabelece os parâmetros de uma filosofia da biologia. Abre um novo caminho de reflexão sobre a precariedade da vida e mostra o grande alcance filosófico dessa abordagem sobre a biologia, uma vez que reconduz a vida à uma posição privilegiada e distante dos extremos do idealismo irreal e do limitado materialismo. Essa segunda etapa está proximamente vinculada ao terceiro e culminante momento de sua vida intelectual. A busca pelas bases de uma nova ética, uma ética da responsabilidade, torna-se, agora, a meta de Jonas. Em 1979 publica "Das Prinzip Verantwortung - Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation”, traduzido para o inglês somente em 1984, e que em 2006 ganhou uma tradução em português. Eis o livro aqui resenhado.

Partidário do sionismo desde a juventude, nosso autor, ao deixar a Alemanha, integra-se em Israel a uma brigada judaica de autodefesa, e aí, como oficial da artilharia permanece até 1949. Durante a Segunda Grande Guerra alista-se no exército britânico na luta contra o nazismo. A proximidade com a realidade da morte fez crescer em Jonas a preocupação com a vida, e essa foi a meta que ele perseguiu com extrema determinação. Hans Jonas aponta para o choque causado pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki como o marco inicial do abuso do domínio do homem sobre a natureza causando sua destruição.

Essas observações fizeram até mesmo com que Jonas desafiasse a linha dominante da filosofia do idealismo da consciência, onde havia sido formado. Percebeu-a como herança do dualismo cartesiano e que muito da filosofia moderna estacionara na dicotomia entre mente e corpo. Daí o seu objetivo de repensar a ética. Daí a complexidade de Jonas e desta obra para as ciências humanas em sua plenitude, leitura quase obrigatória para se pensar elementos como a ciência e a tecnologia no mundo em que vivemos.


2. Os principais argumentos

O centro do livro consiste no incessante esforço de Jonas de propor ao pensamento e ao comportamento humano uma nova ética para a civilização tecnológica. Busca-se ultrapassar o subjetivismo dos valores para fundamentar no Ser o dever do homem moderno. A ética tradicional, segundo defende, fundava-se e acontecia apenas dentro dos limites do ser humano, não afetando a natureza das coisas extra-humanas. A natureza não era objeto da responsabilidade humana, pois cuidava de si mesma. A ética tinha a ver apenas com o aqui e o agora. Com isso, em substituição aos antigos imperativos éticos, entre os quais o imperativo kantiano, que se constitui aqui no parâmetro exemplar (“Age de tal maneira que o princípio de tua ação se transforme numa lei universal”), Jonas propõe um novo imperativo.

Este novo imperativo pode ser traduzido como “Age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica”, ou, “não ponhas em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra”. Dessa forma, ao formular o seu imperativo de responsabilidade tornado princípio, Jonas está pensando menos no perigo da pura e simples destruição física da humanidade, e mais na sua morte essencial – e esse é o ponto de fundamental relevância na sua teoria. Ou seja, aquela destruição que advém da desconstrução e da aleatória reconstrução tecnológica do homem e do ambiente.

Hans Jonas não está falando da consciência de um apocalipse brusco, mas do sentimento de um apocalipse gradual decorrente do progresso técnico global e do seu uso inadequado. Até então, o alcance das prescrições éticas reduzia-se ao âmbito da relação com o próximo no momento presente. Era uma ética antropocêntrica e voltada para a contemporaneidade. A moderna intervenção tecnológica, contudo, mudou drasticamente essa serena realidade, colocando a natureza para uso humano e passível de ser alterada radicalmente. O homem passou a manter com a natureza uma relação de responsabilidade, pois ela se encontra sob seu perigoso poder.

Grave, também, além da intervenção na natureza extra-humana, é a manipulação do patrimônio genético do ser humano que poderá introduzir alterações duradouras de imprevisíveis conseqüências. Daí ser necessária, do seu ponto de vista, uma nova proposição ética que contemple a natureza e não somente a pessoa humana. Esse novo poder da ação humana impõe alterações na própria natureza da ética. Jonas aponta para uma interação entre a pesquisa e o poder. Essa nova configuração da ciência leva a um conhecimento anônimo que não é mais produzido para obedecer à verdadeira função do saber durante toda a história da humanidade, a de ser incorporada nas consciências, na busca mediata e ponderada da qualidade da vida humana.

Para haver responsabilidade, destaca o nosso autor, é preciso existir um sujeito consciente. O problema, no entanto, é que o imperativo técnico-lógico elimina a consciência, elimina o sujeito e elimina a liberdade em proveito de um determinismo. A hiperespecialização das ciências tem mutilado e deslocado a noção mesma de ser humano. É  esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética que fez com que Jonas propusesse novas dimensões para a responsabilidade, visto que a técnica moderna introduziu ações de magnitudes tão diferentes, com objetivos e conseqüências tão imprevisíveis, de modo que os marcos da ética anterior já não podem mais contê-los.

A teoria da responsabilidade proposta estaria construída em torno das categorias de bem, de dever e ser, e encontraria na relação pais e filhos seu arquétipo primordial. A adequação entre o Ser e o “dever ser” tem sido tarefa fundamental na história da humanidade desde os seus primórdios, e o entrelaçamento entre essas três categorias (bem, dever e ser) é apresentada como a base de configuração da nova ética que ele propõe.

Vale lembrar que a época de Jonas não é exatamente a nossa, embora esteja próxima, principalmente na realidade dos seus argumentos. Para um tempo localizado na segunda metade do século XX, este pensador elabora uma teoria em que se critica o ideal tecnocrata e a utopia marxista. Assim, toma-se distância de paradigmas e modelos que vigoravam até então para orientar o ser humano em sua aventura ética, estética e teórica. E verá no fim da utopia o passo necessário para uma ética da responsabilidade, ética esta que deverá combater o defeito mais forte e favorecer o lado menos beneficiado pelas circunstâncias.

A tese de partida de Jonas no livro é que a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça, ou a ameaça se associou à tecnologia moderna de forma indissolúvel. Portanto, ela vai além da ameaça física. É o “Prometeu definitivamente acorrentado” – tal como o autor se refere metaforicamente a esse processo – ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia apresenta um infatigável impulso, a característica central do nosso tempo. Tempo este que clama por uma ética que, por meios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformarem em uma desgraça para eles próprios.

Antes concebida para a felicidade humana, a submissão da natureza - e que agora se estende à própria natureza do homem -  conduziu ao maior desafio já posto ao ser humano pela sua própria ação. Como se trata não apenas do destino do homem, não apenas de sobrevivência física, mas também da integridade de sua essência, a ética que deve preservar a ambas precisa ir além da sagacidade e tornar-se uma ética do respeito. Deve estender-se até a metafísica, pois só ela permite que se pergunte por que homens devem estar no mundo, portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegura-lhes a existência no futuro. Aí que a aventura da tecnologia impõe, segundo Jonas, com seus riscos extremos, o risco da reflexão extrema. Nesse ponto, os seus fundamentos devem estar na contramão da renúncia positivista-analítica própria à filosofia contemporânea. Para essa tarefa, o autor retoma, do ponto de vista ontológico, as antigas questões sobre a relação entre ser e dever, causa e finalidade, natureza e valor, de modo a fundamentar no Ser, para além do subjetivismo dos valores, esse novo dever do homem, que acaba de surgir. É desse dever recém-surgido que emerge, então, o tema central do livro, expresso no conceito de responsabilidade.

Desse contexto, contrapondo-se a tarefa mais modesta que obriga ao temor e ao respeito, que consiste exatamente em conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade de sua liberdade que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir, seu mundo e sua essência contra os abusos de seu próprio poder. Podendo o projeto de Jonas ser comparado com um ensejo de boas intenções, o próprio autor faz questão de salientar que o que não falta na atualidade são boas intenções e propósitos irrepreensíveis, algo como declarar-se do lado do bem e contra o pecado, pela prosperidade e contra a destruição. No seu projeto, nesse sentido, busca-se algo mais “duro” e “indispensável”, tal como ele próprio assegura.

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3. O homem, a natureza e a mudança na ética

Utilizando-se do famoso canto coral da Antígona, de Sófocles, Jonas trata do opressivo poder humano na sua irrupção violenta e violentadora na ordem cósmica, além da sua  invasão atrevida nos domínios da natureza por meio de sua incansável esperteza. Como se diz no coral: “Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o homem! Singrando os mares espumosos, impelidos pelos ventos do sul, ele avança e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor!”. Dessa maneira, o homem, com a faculdade auto-adquirida do discurso, da reflexão e da sensibilidade social, constrói uma casa para sua própria existência, algo como uma “cidade”. A violação da natureza e a civilização do homem caminham, portanto, de mãos dadas.

O homem, todavia, não é falível em absoluto, pois a morte o derruba, independentemente das incontáveis doenças para as quais ele encontre a cura. Resulta daí que sua vida foi se desenvolvendo entre o que permanecia – a natureza, apesar das alterações sofridas a partir das intervenções humanas – e o que mudava – suas próprias obras, cuja obra maior é a “cidade”, esse ambiente de socialização. Na relação do homem com o mundo exterior, a techne (habilidade) era eticamente neutra, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de agir. A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto do homem com o homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo, daí toda ética tradicional ser antropocêntrica.

Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti  mesmo” ou “Instrui o teu filho no caminho da verdade”, ou “Submete o teu bem pessoal ao bem comum”. Em todas essas máximas, aquele que age e o outro são partícipes de um presente comum. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera de ação. Se uma ação é boa ou má, tal é inteiramente decidida no interior desse contexto de curto prazo, e sua autoria nunca é posta em questão, assim como sua qualidade moral é imediatamente inerente a ela.

Contudo, argumenta Jonas, tudo isso se modificou com a técnica moderna, que introduziu ações de uma ordem inédita de grandeza, com novos objetos e conseqüências que a moldura da ética não consegue mais enquadrá-las. Aquele fantástico poder do homem, presente na Antígona, soaria bem diferente nesse novo momento. Também os deuses não estão mais presentes, cujos direitos reconhecidos poderiam contrapor-se às fantásticas ações humanas. Antigas prescrições da ética do “próximo”, como as prescrições da justiça, da misericórdia e da honradez continuam válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, porém essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. A importância disso para a ética é que decorre dessa mudança a imposição à ética de uma nova dimensão de responsabilidade, antes nunca sonhada.

Sob tais circunstâncias, o saber torna-se um dever prioritário, mais além de tudo o que anteriormente lhe era exigido, e o saber deve ter a mesma magnitude da dimensão causal do nosso agir. Mas o fato de que o saber previdente permaneça atrás do saber técnico que confere poder ao nosso agir, ganha, ele próprio, significado ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre o nosso excessivo poder.

Nessas ponderações estritamente inter-humanas, outro aspecto ético aparece no fato de que a techne, como esforço humano, ultrapassou os objetivos pragmaticamente delimitados dos tempos antigos. Se no passado a técnica era um tributo cobrado pela necessidade, e não o caminho para um fim escolhido pela humanidade, hoje a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento mais significativo. Com isso, a vocação dos homens na modernidade revela-se no contínuo progresso desse empreendimento, superando-se sempre a si mesmo, rumo a feitos cada vez maiores. O triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo significa que a tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que ela agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana.

Como salienta o próprio Jonas, não há nada melhor que o sucesso, assim como nada nos aprisiona mais do que o sucesso no mundo que vivemos. O que quer que pertença à plenitude do homem fica eclipsado em prestígio pela extensão de seu poder, de modo que essa expansão é acompanhada de uma contração do conceito do homem sobre si próprio e de seu Ser. Então o horizonte da responsabilidade é fornecido muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Com a esfera do produzir invadindo o espaço do agir essencial, a moralidade também invade a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública. A questão levantada pelo autor, desse modo, é a de que nunca antes a política pública teve de lidar com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. Nesse sentido, a natureza modificada do agir humano altera também a natureza fundamental da política.

Ainda no campo da moralidade ética, o imperativo categórico de Kant dizia “Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral”. Já, segundo Jonas, um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”, ou expresso negativamente, “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”. Assim, o imperativo que propõe volta-se muito mais à política pública do que à conduta privada; já o imperativo categórico de Kant era voltado para o indivíduo, e seu critério era momentâneo, já que exortava cada um de nós a ponderarmos sobre o que aconteceria se a máxima de sua ação atual fosse transformada em um princípio de legislação geral.

Em contraposição, portanto, a essa reflexão racional que admitia qualquer probabilidade de que minha escolha privada fosse de fato lei geral, ou que pudesse de alguma maneira contribuir para tal generalização, Jonas lança mão da sua proposta:

“O princípio não é aquele da responsabilidade objetiva, e sim o da constituição subjetiva de minha autodeterminação. O novo imperativo clama por outra coerência: não a do ato consigo mesmo, mas a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro” (JONAS, p. 48).


4.  Enfim: A busca pela teoria da responsabilidade

Na busca de uma ética da responsabilidade a longo prazo, Jonas recorre à previsão de uma deformação do homem, que nos revela aquilo que queremos preservar do conceito de homem. Enquanto o perigo for desconhecido não se saberá o que há para se proteger e por que devemos fazê-lo. Por isso, contrariando toda lógica e método, o saber se origina daquilo contra o que devemos nos proteger. Acontece que o reconhecimento do malum é infinitamente mais fácil do que o do bonum. O mau nos impõe a sua simples presença, enquanto o bem pode ficar discretamente ali e continuar desconhecido, destituído de reflexão. Muitas vezes só temos certeza do bem quando dele nos desviamos. Por isso, para investigar o que realmente valorizamos, sua proposta é de que a filosofia moral consulte primeiramente o nosso medo antes do nosso desejo. Com isso, embora a heurística do medo não seja a única palavra na procura do bem, ela deve ser uma palavra muito útil.

A incerteza que ameaça tornar inoperante a perspectiva ética de uma responsabilidade em relação ao futuro, a qual evidentemente não se limita à profecia do mal, tem de ser ela própria incluída na teoria ética e servir de motivo para um novo princípio, que, por seu turno, possa funcionar como uma prescrição prática. Essa prescrição afirmaria que é necessário dar mais ouvidos à profecia da desgraça do que à profecia da salvação. A experiência tem ensinado que os desenvolvimentos tecnológicos postos em marcha pela ação tecnológica com objetivos de curto prazo tendem a se autonomizar, adquirindo, conforme Jonas chama atenção, sua própria dinâmica compulsiva, com um crescimento espontâneo graças ao qual eles se tornam não só irreversíveis como também autopropulsionados, ultrapassando de muito aquilo que os agentes quiseram e planejaram. Seria a história do provérbio que diz que temos liberdade para dar o primeiro passo, mas nos tornamos escravos do segundo e de todos os passos subseqüentes.

Pode-se dizer que os perigos que ameaçam o futuro modo de ser são, em geral, os mesmos que, em maior escala, ameaçam a existência. Por isso, evitar os primeiros passos significa a fortiori evitar os outros. Com isso, aquilo que se deve exigir do nosso princípio não pode ser obtido pela ideia tradicional de direitos e deveres, ou seja, pela ideia de reciprocidade, segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio. Aquilo que não existe não faz reivindicações, e nem por isso pode ter seus direitos lesados. A reivindicação de existência só se inicia com o existir, mas a ética almejada lida exatamente com o que ainda não existe, e o seu princípio da responsabilidade tem de ser independente tanto da ideia de um direito quanto da ideia de uma reciprocidade.

Conforme Jonas, a natureza cultiva finalidades e objetivos. Como corolário, ela também atribui valores, pois independentemente da forma como ela estabelece suas finalidades e as persegue, alcançá-las constitui um bem e fracassar constitui um mal. E é com essa distinção que se inicia a imputabilidade de valor.  Considerando, então, que a finalidade como tal é o primeiro dos bens e que, em termos abstratos, reivindica a sua realização, ela já compreende um querer dos fins, por meio dos quais, como condição da sua continuidade, ela se quer a si mesma como finalidade fundamental.

Como toda teoria ética, uma teoria da responsabilidade deve se formar com dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, o fundamento racional do dever, ou seja, o princípio legitimador que está por trás da reivindicação de um “deve-se” imperativo, e o fundamento psicológico da capacidade de influenciar a vontade, ou seja, de ser a causa de alguma coisa, de permitir que sua ação seja determinada por ela. Dessa forma, a ética tem um aspecto objetivo – tratando da razão, – e outro subjetivo – tratando da emoção. Ao longo da história, no entanto, um aspecto ou outro estiveram no âmago da teoria ética, e tradicionalmente o aspecto objetivo ocupou preferencialmente a atenção dos filósofos. Entretanto, como defende nosso autor, a existência factual do sentimento, presumivelmente um potencial humano universal, é, por isso, o elemento cardinal da moral, e como tal, já implícito no “deve-se”.

Ao defender uma noção de responsabilidade, Jonas trata de uma responsabilidade que não concerne ao cálculo, mas à determinação do que se tem a fazer. É uma noção em virtude da qual o indivíduo se sente responsável, em primeiro lugar, não por sua conduta e suas conseqüências, mas pelo objeto que reivindica seu agir. Responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar de outros, que considera determinadas ações não só do ponto de vista da sua aceitação moral, mas se obriga a atos que não têm nenhum outro objetivo. É esse tipo de responsabilidade e de sentimento de responsabilidade que Jonas tem em vista quando fala na necessidade de ter hoje uma ética da responsabilidade futura, e não um tipo de responsabilidade formal e vazia de cada ator por seu ato.

Na busca por essa responsabilidade, deve reiterar-se que o que está em jogo neste debate é o destino do homem, o conceito que possuímos dele, a sobrevivência física da humanidade e do planeta e a integridade da sua essência. Isso tudo, pois, é que nos levará ao conceito de responsabilidade, elemento central nesta nova ética. Com efeito, emerge daí uma pergunta das mais importantes na sua reflexão: Só porque temos a capacidade de alterar os modelos atmosféricos em grandes regiões da Terra e criar novas formas de vida, será que temos, também, o direito de fazer tais coisas? E aí resulta que o problema não é o conhecimento por si só, é antes a aplicação que se lhe dá. Logo, a questão que subsiste para o futuro não tem tanto a ver com o desenvolvimento das próprias tecnologias, mas sim com a forma sábia de implementá-las nas nossas vidas. Por isso, esta nova ética, além de responsabilidade, exigiria também, sabedoria, conhecimento e humildade.

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. É possível uma nova ética para a atual civilização tecnológica?: Uma análise sobre o livro “O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica”, de Hans Jonas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3499, 29 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23575. Acesso em: 19 nov. 2024.

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