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Nepotismo no serviço público brasileiro e a Súmula Vinculante nº 13

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30/01/2013 às 08:02
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4- Prova do elemento subjetivo no nepotismo

Na análise do fenômeno nepotismo há dois aspectos, consoante percuciente análise de R. Tourinho (2011): um de natureza objetiva e outro de natureza subjetiva. O aspecto objetivo do nepotismo concentra-se na efetiva relação de parentesco existente entre o nomeante e o nomeado. Assim, havendo a relação de parentesco, estar-se-á diante do nepotismo, considerado no seu aspecto objetivo. O elemento subjetivo, por sua vez, consiste no propósito deliberado de atender a interesses pessoais com a nomeação do familiar ou de privilegiar o vínculo sanguíneo. Ou seja, estará presente o aspecto subjetivo do nepotismo quando a finalidade da escolha do parente para ocupação do cargo em comissão ou função de confiança for a satisfação pessoal gerada pelo laço familiar.

Tecnicamente, para a existência do nepotismo faz-se necessária a presença dos elementos objetivo e subjetivo. Há exemplos de casos que objetivamente constituem nepotismo (como o exercício de cargo de natureza política ou parentes que ocupam cargos através de concurso público), mas não subjetivamente. No entanto, diz R. Tourinho (2011), a comprovação do elemento subjetivo é de difícil concretização, razão pela qual a simples presença do aspecto objetivo, relação de parentesco, vem se mostrando suficiente para caracterizar a prática.

O caráter objetivo da constatação da situação a envolver nepotismo, torna irrelevante, até por indecifrável em muitos casos, o elemento anímico presente no ato de nomeação[6].

Todavia, há casos fronteiriços que para a configuração do nepotismo ilícito requerem a cabal comprovação do elemento subjetivo. Em parecer lançado na PEC n. 15/2006, que pretende vedar expressamente a prática do nepotismo, o Senador Demóstenes Torres aduz um caso emblemático:

“Ao vedar que parentes ocupem cargos em comissão em uma mesma pessoa jurídica, a Súmula dá ensejo à configuração de situações de todo absurdas. Imagine-se o caso de um ocupante de cargo em comissão de assessor do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, cujo tio exerce uma função de confiança de chefe de seção do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Como o Ministério e o Tribunal integram uma mesma pessoa jurídica – a União –, haveria, nessa hipótese, ofensa à Súmula. Cumpre indagar, contudo, se tal situação realmente se caracterizaria como um caso de nepotismo.

Somente por inspiração torquemadiana se poderia entender que parentes de terceiro grau, que mantivessem entre si pouco ou nenhum contato, vivessem em locais diversos, trabalhassem em órgãos federais distintos e exercessem cargos em comissão de menor nível hierárquico pudessem um influenciar a nomeação do outro. Mais ilógico ainda seria o quadro, se o nomeado em último lugar ocupasse um cargo superior hierarquicamente ao de seu parente. Alguém poderia ser impedido de exercer o cargo de Secretário Executivo de um Ministério simplesmente porque seu irmão é chefe da seção de almoxarifado da Superintendência da Receita Federal do Brasil no Rio Grande do Sul”[7].

 Em tais casos, em prol do princípio da razoabilidade, a SV 13 não pode ser aplicada em seu teor literal, faz-se necessária a comprovação do elemento anímico.


5- Vedação constitucional do nepotismo e a inexigência de lei formal

A Constituição Federal, através dos princípios da moralidade, impessoalidade[8], eficiência[9] (art. 37) e isonomia (igualdade de tratamento e iguais oportunidades de acesso aos mais diversos níveis da Administração Pública), aplicáveis à Administração Pública, veda o nepotismo. Isso significa que não é necessária nenhuma lei para que a regra seja respeitada por todas as entidades políticas.

Bem antes da aprovação da SV 13, o STF já tinha entendimento firme nesse sentido:

“MANDADO DE SEGURANÇA. NEPOTISMO. CARGO EM COMISSÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA.

Servidora pública da Secretaria de Educação nomeada para cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região à época em que o vice-presidente do Tribunal era parente seu. Impossibilidade.

A proibição do preenchimento de cargos em comissão por cônjuges e parentes de servidores públicos é medida que homenageia e concretiza o princípio da moralidade administrativa, o qual deve nortear toda a Administração Pública, em qualquer esfera do poder.

Mandado de segurança denegado”[10].

A SV 13 conferiu ao princípio da moralidade e da impessoalidade (para ficar apenas nos princípios expressos) o caráter de auto-aplicabilidade, sem a necessidade de recorrer à edição de lei em sentido formal.

A conduta do administrador público deve-se limitar não apenas à disposição literal da lei, mas também à aplicação da moralidade, dos bons costumes, ao poder-dever de probidade, que resguarde a confiabilidade do administrado (Di Pietro, 2007. p. 70; Ávila, 2006. p. 38).

A vedação do nepotismo atinge ocupantes de cargos em comissão, função de confiança e emprego de contratação excepcional ou temporária. Se o parente em exercício de função gratificada ou comissionada for servidor efetivo não há incompatibilidade, pois, de acordo com o artigo 37, caput, V, da CF, as funções de confiança são exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo.

Entende-se por cargos em comissão aqueles cujo provimento dispensa concurso público e são ocupados, precariamente, por pessoas do círculo de confiança da autoridade nomeante, que pode exonerar livremente.

As funções de confiança são preenchidas pela livre escolha da autoridade competente, mas o nomeado deve integrar o quadro interno da Administração Pública (aspecto que as distinguem dos cargos em comissão). 

Para efeito de aplicação SV 13, o nepotismo só pode ser considerado existente se dentro da mesma pessoa jurídica houver nomeação de parentes (até terceiro grau) da autoridade nomeante ou se houver, dentro dessa mesma pessoa jurídica, parente da pessoa nomeada também investida em cargo em comissão ou função gratificada[11]. Compreendem-se, no mesmo esquema (ou seja, dentro da mesma pessoa jurídica), as designações ou nomeações recíprocas (nepotismo cruzado).


6- Situações em que não ocorre nepotismo

Ocorrem algumas situações nas quais, embora presentes alguns elementos constitutivos da prática vedada, não se verifica o nepotismo constitucionalmente proibido: 

I- Quando o parente já é servidor efetivo numa determinada entidade política. Não pode, por exemplo, mesmo sendo efetivo ser cedido para outra entidade.

II- Nomeação de parente para ocupar cargo de natureza política, como: Ministros, Secretários de Estado e Secretários Municipais.

III- O servidor (efetivo ou não) já exercia cargo em comissão (ou de confiança) ou função gratificada antes de seu parente ser eleito ou nomeado (no caso de secretários ou ministros).

Neste sentido, STJ[12]:

“Não há nepotismo quando a designação ou nomeação do servidor tido como parente para a ocupação do cargo comissionado ou de função gratificada for anterior ao ato de posse do agente ou servidor público gerador da incompatibilidade”.

IV- Também não se verifica a prática vedada quando o casamento, ou o início da união estável, for posterior ao tempo em que os cônjuges ou companheiros já estavam no exercício dos cargos ou funções, em situação que não caracterize ajuste prévio[13].

V- A contratação de serviços ou produtos de empresas pertencentes a parentes de gestor, desde que se tenha submetido a processo regular de licitação.  

6.1- Cargos de natureza política

A vedação do nepotismo, tal como veiculado na SV n. 13 do STF, não atinge também os cargos de natureza política, exercidos por agentes políticos, mas os cargos administrativos, criados por lei. Todavia, mesmo em se tratando de cargo político (cargo estrutural do primeiro escalão de governo[14]), é possível incidir a vedação do nepotismo, desde que se configure o nepotismo cruzado (ou impróprio). Se, por exemplo, o prefeito nomeia um parente do presidente da Câmara como Secretário de Saúde e o vereador nomeia um parente do prefeito para servir à Câmara, há, nesse caso, a incidência da conduta proibida.

A definição de cargo político oferece suporte para a completa distinção entre servidor público e agente político. A figura do agente político pode ser eleito, como são, por exemplo, o Presidente da República, os Governadores, os Prefeitos, os Senadores, os Deputados Federais, os Deputados Estaduais ou os Vereadores, ou nomeado, como são, por exemplo, os Ministros, os Secretários de Estado e os Secretários Municipais (Magalhães, 2009).

Os agentes políticos integram cargos estruturais na organização das entidades políticas (União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal) e ajudam a formar a vontade superior do governo. A natureza da vinculação desses agentes é política e não profissional (ou administrativa).

Esse entendimento do STF[15] (e de outros Tribunais[16]) sobre eximir os cargos políticos do âmbito de incidência da SV 13 não se furta a críticas bem razoáveis. José Sérgio Monte ALEGRE (2008:64) assaca uma, que pela pertinência merece transcrição:

“É honesto deixar de nomear mulher, filhos, sobrinhos, companheira, pai, mãe, avós, para cargos de pequena expressão, na Administração Pública, inclusive de menor repercussão financeira, não importando a boa qualificação que possam ostentar, mas é honesto fazê-lo para cargo de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou de Município? Após a Súmula, Governador de certo Estado nomeou seu irmão para ser Secretário desse mesmo Estado e tudo foi considerado como bom, firme e valioso (Medida Cautelar na Reclamação n. 6650-9/PR, Rela. Min. Ellen Gracie, no DJe n. 184, p. 99-100, 2008). Todavia, se o houvesse nomeado para chefe do almoxarife do Palácio do Governo, bem, aí violaria a Constituição!”.

Como decorrência dessa hermenêutica sustentada pelo STF tem-se, na prática, duas modalidades de nepotismo: o nepotismo ilícito (ofensivo aos princípios constitucionais já referidos) e outro perfeitamente lícito (compatível com tais princípios). Além disso, esse entendimento jurisprudencial tem estimulado a que muitos prefeitos e governadores criem novas secretarias com o intuito de promover seus familiares de funções comissionadas subalternas para cargos de natureza política no primeiro escalão da Administração Pública, migrando do nepotismo ilícito para o nepotismo lícito.

Este posicionamento do STF, como diz R. Tourinho (2011), reacende o debate sobre o alcance do conteúdo dos atos políticos. Atualmente o entendimento que prevalece é no sentido de que nenhuma categoria de ato está excluída da observância da Constituição e, principalmente, dos princípios administrativos. Nesta linha de raciocínio nada justifica a exclusão dos agentes políticos, Ministros e Secretários de Estados, Distrito Federal e Municípios, da regra estabelecida para o nepotismo. Quando o Chefe do Executivo Municipal nomeia um irmão para ocupar o cargo de Secretário de Saúde do Município obviamente que se configura o nepotismo, com a presença dos dois aspectos, o objetivo e o subjetivo. Não há motivo de excluí-lo da regra geral, uma vez que houve a violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa.

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A exclusão dos mencionados agentes políticos do alcance da súmula vinculante n. 13 revela um contrassenso em total desacordo com a moderna doutrina dos atos políticos. Ademais, revela o desconhecimento da Suprema Corte dos reais problemas enfrentados nos milhares de municípios brasileiros, no que concerne à prática do nepotismo. O beneficiamento de parentes com cargos de primeiro escalão de governo tem gerado consequências nefastas às Administrações Públicas locais.


7- Casos específicos de nepotismo reconhecidos pela jurisprudência

A casuística jurisprudencial oferece situações em que podemos reconhecer a prática proibida:

- Nomeação, por juiz, de parente, cônjuge, consanguíneo ou afim, bem como de amigo íntimo, como perito do juízo, comportamento esse que macula a imagem do Poder Judiciário, corrói a sua credibilidade social e viola frontalmente os deveres de “assegurar às partes igualdade de tratamento” e “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça” (CPC, art. 125, I e III)[17].

- A nomeação de cunhado da autoridade nomeante ou indicado por ela para ocupar cargo em comissão no Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás viola os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e eficiência[18].

- Nomeação de menor impúbere para o exercício de cargo comissionado. Caracteriza-se ato de improbidade administrativa a nomeação de filho menor de 18 anos para a função pública, uma vez que ofende os princípios da administração[19].


8- Contratação temporária versus nepotismo

O servidor nomeado a título precário, de modo temporário após teste seletivo simplificado, não goza de estabilidade equivalente ao concurso público formal. Assim, à Administração Pública é permitido promover a dispensa do servidor, a seu alvedrio e conveniência, a qualquer tempo, sem a necessidade de prévio processo administrativo ou justificativa do ato.

A extinção do contrato temporário, diante da prática de nepotismo, não configura qualquer ilegalidade[20].

Para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constitui prática de nepotismo:

“A contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem como de qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento” (art. 2º., inc. IV, da Resolução n. 07, de 18.10.2005).

Embora a Resolução 07/2005 do CNJ restrinja-se ao âmbito do Judiciário, nada impede que os princípios norteadores desse ato normativo sejam observados por toda a Administração Pública, vez que decorrem diretamente da Constituição.

As contratações por tempo determinado, formalmente adequadas às determinações constitucionais, também deverão se submeter aos ditames da moralidade e probidade administrativas, pois não podem se constituir em instrumento de pessoalidade pela reiteração das contratações nepóticas, assim como não deverão se constituir em subterfúgio à excepcionalidade temporária do interesse público, visando unicamente o desvirtuamento do permissivo de exceção constitucional, em afronta à norma geral do recrutamento público (Vasconcelos, 2005).

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Nepotismo no serviço público brasileiro e a Súmula Vinculante nº 13. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3500, 30 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23582. Acesso em: 19 abr. 2024.

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