9- Improbidade administrativa
Um agente público que incide na prática de nepotismo comete um ato de improbidade administrativa, violando, como regra, o artigo 11 da Lei 8.429/1992[21]. Ou seja, aplica-se a lei de improbidade administrativa por conta da violação aos princípios da moralidade e da impessoalidade, sendo, neste caso, desnecessário falar-se em dano ou lesão material ao erário. Eventualmente, pode incorrer nas sanções dos artigos 9º e 10 da mesma lei se, por exemplo, nomear um parente, sob a condição de ficar com percentual de seu salário (“comissão”) ou de simplesmente receber o salário sem a contrapartida do serviço (“servidor fantasma”), o que configuraria enriquecimento ilícito.
O STJ reconhece inclusive que:
“Em tese, é possível a condenação do administrador ímprobo a restituir as despesas com contratação de servidores que, embora tenham trabalhado, o fizeram por força de ato ilegal e inconstitucional. Com efeito, a contratação de pessoas que não apresentam qualificação compatível com o cargo que ocupam ou que deixam de prestar adequadamente o serviço (o que é comum em casos de nepotismo e clientelismo, p.ex.) causa dano, direto ou indireto, ao Erário”[22].
10- Reclamação perante o STF
O Ministério Público dispõe de alguns mecanismos para coibir a prática do nepotismo: ação civil pública, recomendações e reclamação perante o STF para garantir o cumprimento da SV 13[23].
A reclamação funda-se no direito de petição (CF, art. 5º., XXXIV), tanto que qualquer do povo (“parte interessada” – que se sinta prejudicada pelo ato) pode ajuizá-la. Busca-se através desse remédio constitucional assegurar dois caros valores processuais: a efetividade e o juiz natural.
Nos termos do § 3º do artigo 103-A da Constituição da República, que prevê o ajuizamento de reclamação em face de ato administrativo ou decisão judicial que confronte os termos de súmula vinculante, o Ministério Público, através de seus órgãos de execução, pode ajuizar ação de reclamação, após esgotar os meios ordinários, para fazer respeitar a SV 13.
A Lei n. 11.417/2006, no art. 7º., §1º., dispõe que “contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas”. Isso significa que o acesso à justiça, independente de quem seja, é vedado enquanto não for esgotada a via administrativa, exatamente como ocorre com as ações referentes à disciplina e às competições desportivas (CF, art. 217 e parágrafos).
Qualquer cidadão pode utilizar-se da ação popular para anular atos que importem em prática do nepotismo:
“Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência” (CF, art. 5º, LXXIII).
11- Os vícios decorrentes do nepotismo
Com diz Keller (1967:56), a transmissão de privilégios, do grupo central (classe dirigente) de uma geração para o de outra, constitui o aspecto mais vulnerável da estratificação de classes. É aí que se encontram os maiores abusos, quando os homens exploram as suas posições em benefício de seus filhos, de suas esposas e parentes próximos.
Há um sentimento ou um sensus communis de que se deve proibir o “carreirismo apadrinhado” e a “agência familiar de emprego público” (Sampaio, 2007, p. 283). Os laços de parentesco conspiram contra o mérito e a história os condena.
As distorções da família – conceitualizadas genericamente no nepotismo - se fazem sentir rápida e desastrosamente. As vantagens facilmente adquiridas, os favorecimentos ilegítimos, o nepotismo escrachado quebram a energia das vontades, adormecem a iniciativa e habituam o favorecido à inércia improdutiva diante de energias que se atrofiam; um tedium vitae.
Do esmorecimento das energias sai o parasitismo, agarrado com suas ventosas e colchetes, para sobreviver, à famigerada rede protetora da apadrinhagem. O favorecido consome o tempo a mendigar ou a articular novas e mais ricas vantagens com seus tentáculos cobiçosos, molemente recostado nas facilidades do familismo. O trabalho profícuo (e orgânico) para ele perde inteiramente valor e passa a ser uma indignidade, pois, afinal, enquanto a fonte de padrinhos permanecer jorrando, enquanto a troca de favores for cavalheirescamente respeitada, nada há com que se preocupar.
A concorrência livre e saudável, sem auxílios artificiais e desleais, guiada pelo princípio constitucional da isonomia e tendo como critério a capacidade e mérito de cada indivíduo constitui, positivamente, a bela luta pela vida, uma justa força selecionadora a agir na sociedade humana, responsável na natureza animal pela harmonia que tanto enche e seduz o olho humano. Mas todo esse esquema social saudável vem a baixo ou sofre forte abalo com as falsas hierarquias, vantagens, superioridades e subalternidades criadas pelo nepotismo.
A luta no trabalho e na indústria, superando a luta por facilidades, gera efeitos práticos inarráveis: extinção dos privilégios de casta, diminuição dos parasitas da sociedade, aproximação dos grupos sociais, aumento do número dos que trabalham, criando vínculos de elevada solidariedade com os seus iguais. E esta perspectiva possibilita que as condições de êxito social sejam, dada a igualdade das capacidades, iguais para todos, numa nova atitude psicológica e psicossocial dos indivíduos em relação à coletividade. Teríamos, então, a base para a definição de uma sociedade democrática.
Dito isso, podemos elencar, em apertada síntese, as consequências ruinosas que o nepotismo acarreta no serviço público:
1- Cria entraves à profissionalização da gestão;
2- Quebra o princípio da impessoalidade, sobrepondo o interesse particular ao público;
3- Viola o princípio da moralidade administrativa;
4- Rompe com o consagrado princípio da isonomia, ao restringir o acesso em condições de igualdade às funções públicas;
5- Contribui para a queda da produtividade e da eficiência;
6- Ocasiona conflitos de lealdades dentro de uma organização administrativa, principalmente quando o favorecido é colocado em posição de supervisão direta sobre outro;
7- Gera ressentimento de parte do aparato burocrático contra o exclusivismo e o privilégio dos favorecidos (ou servidores “patrimoniais”);
8- Perturba a disciplina administrativa devido à falta de imparcialidade do superior para exercer seu poder de mando num plano de igualdade sobre os servidores vinculados familiarmente aos servidores com poder de decisão.
12- O alcance da SV13 e a incompletude do Direito
A súmula vinculante é tão genérica e abstrata quanto uma lei. E como norma genérica ela não consegue prever todos os casos possíveis de ocorrer no comércio cotidiano da vida. Por sua própria natureza é impotente para fornecer, por si só, todas as soluções reclamadas pela ordem jurídica (Lima, 1955:95), não se podendo exigir do STF (no caso das SV’s) ou do legislador (no caso da lei) uma inatingível onisciência.
Afirma-se, com frequência, como ensina Lumia (2003:86-87), que a completude e a coerência são características essenciais do ordenamento jurídico, mas a realidade é bem diferente, porque nem sempre o discurso do legislador é imune às contradições, nem a previsão normativa pode exaurir a casuística que a experiência, ou seja, a própria vida na multiplicidade das suas dimensões “inventa” em um processo sempre aberto e imprevisível. Afirmar o contrário seria como fechar os olhos diante da realidade do direito em nome de um ideal que é próprio de certa ideologia juspositivista, mas que se procuraria em vão realizar em qualquer ordenamento historicamente existente. No mais, o próprio legislador não ignora essa realidade, no momento em que dita as diretivas para dirimir, de fato, os conflitos de normas e para preencher as lacunas do ordenamento.
Sempre haverá, diz Hart (2009, p. 351), em qualquer sistema jurídico, casos não regulamentados juridicamente sobre os quais, em certos momentos, o direito não pode fundamentar uma decisão em nenhum sentido, mostrando-se o direito, portanto, parcialmente indeterminado ou incompleto.
O instituto da SV não tem força orgânica ou elasticidade ilimitada para abranger todos os casos concretos. O próprio constituinte derivado, sabedor dessa incompletude lógica da lei ou da norma escrita, ao atribuir ao STF o poder de editar SV’s, facultou-lhe a possibilidade de “proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei” (CF, art. 103-A, caput). A faculdade de revisão da SV é, claramente, o reconhecimento de que o entendimento sumular vinculante não abarca todas as situações concretas da vida.
Desse modo, muitas situações que ocorrem na Administração Pública no que concerne ao nepotismo não encontram pronta solução na SV 13. E isso autoriza dizer que o entendimento do STF veiculado na referida SV não impede que outras situações de nepotismo sejam vedadas com base nos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade, eficiência e isonomia.
Na sessão plenária de 21.08.2008, na qual foi aprovada a SV 13, o Min. Ricardo Lewandowski enfatizou a preocupação de que a redação da súmula jamais abarcaria todas as hipóteses da realidade fática (Arakaki/Ortiz, 2011:114).
Digamos que o STF não tivesse tido a cautela de inserir na redação da SV 13 a expressão “...compreendido o ajuste mediante designações recíprocas...”, estaria o nepotismo cruzado autorizado? A resposta, obviamente, é negativa. A Suprema Corte tem o firme entendimento de que a proibição do nepotismo (em todas as suas formas) não depende de lei formal (ou, por extensão, de outro ato normativo com força vinculante) para ser implementada; decorre, diretamente, dos princípios expressos no art. 37, caput, da CF – que gozam de eficácia imediata. E isso faz com que todos os fatos não encaixados na moldura sumular, mas violadores da Constituição, estejam interditos.
A grande e decisiva crítica que se faz à SV 13 refere-se à sua edição a “toque de caixa”, após dois pronunciamentos do STF sobre a matéria numa única Sessão Plenária. Esse procedimento contraria a Constituição que exige a edição de súmulas vinculantes após “reiteradas decisões” (CF, art. 103-A). Assim, muitas questões envolvendo essa matéria complexa não conseguiram ser abarcadas pela SV 13[24], talvez pela precipitação com que foi aprovada (sem um debate e um estudo aprofundados).
O Senador Demóstenes Torres, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ao emitir parecer sobre a PEC n. 15/2006, que pretende vedar expressamente a prática do nepotismo, assinala:
“A despeito dos propósitos moralizadores que animaram os Ministros do STF na elaboração da Súmula, ela é passível de crítica quanto ao modo como se deu sua aprovação, bem como quanto à forma como foi redigida. No que concerne às circunstâncias em que se deu a aprovação, merece registro que apenas quatro julgados serviram de precedentes ao Verbete, dois deles prolatados numa mesma ocasião, às vésperas da edição da Súmula”[25].
12.1- Situações anteriores à SV 13
O enunciado da SV 13 aplica-se às situações criadas antes de sua edição, pois não há direito adquirido à manutenção de um quadro de inconstitucionalidade ou a uma situação de nepotismo.
13- Conclusões
Diante do exposto é possível concluir:
I- A vedação do nepotismo não induz ao radicalismo de impedir a ampla acessibilidade dos cargos públicos, inclusive aos parentes[26], desde que tenham sido aprovados em concurso público ou assumam cargos de natureza política. O que se veda num ambiente democrático é o privilégio puro e simples;
II- A Súmula Vinculante n. 13 do STF não esgota as situações em que pode ocorrer a prática do nepotismo. A Suprema Corte, neste sentido, tem sólido entendimento (inclusive, previamente à edição da SV 13) de que a vedação do nepotismo em todas as suas variáveis e categorias conceituais decorre diretamente da Constituição Federal e independe de lei formal (e por extensão, de qualquer outro ato normativo geral e vinculante);
III- A SV 13 apresenta sérias limitações: 1- o círculo proibitivo limitado ao vínculo de parentesco com a autoridade nomeante ou com servidor investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento (não abarca, por exemplo, a nomeação de parentes de agentes políticos); 2- a incompatibilidade ao vínculo de parentesco apenas de servidor investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento da mesma pessoa jurídica (não pune, por exemplo, o nepotismo trocado entre pessoas jurídicas distintas); 3- ausência de disciplinamento de servidores de cargos efetivos que ocupam cargo em comissão;
IV- A grande e decisiva crítica que se faz à SV 13 refere-se à sua edição a “toque de caixa”, após curto debate no STF. Esse procedimento contraria a Constituição que exige a edição de súmulas vinculantes após “reiteradas decisões” (CF, art. 103-A) e responde por que algumas questões envolvendo essa matéria complexa não conseguiram ser abarcadas pela SV 13, como o nepotismo trocado e a nomeação de parentes de agentes políticos;
V- Uma das hipóteses possíveis de ocorrer na prática e não prevista na SV 13: nomeação de parentes de agentes políticos. Embora a situação não seja abarcada pelo círculo proibitivo da SV, a prática remanesce vedada por violar os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e eficiência;
VI- A falta de clareza conceitual entre cargos de natureza política e os de natureza técnica (ou administrativa), aliada a uma deficiente política de recursos humanos, impedem a moldagem de um perfil profissional para os cargos em comissão ou de confiança, abrindo espaço para a distribuição aleatória, arbitrária e clientelista desses cargos, favorecendo o arraigamento do nepotismo em nossa cultura política (Ribeiro, 2011; Quintans, 2011) e administrativa;
VII- O caminho que leva ao progresso exige seja largado como ferro velho o suspeito fardo dos laços de sangue. Qualquer sociedade que almeja modernizar-se deve libertar-se dum conjunto de estruturas e de grupos esclerosados que já se não adaptam às exigências da cultura e do progresso técnico, não estando à altura da civilização urbana e industrial definitivamente esboçada. Há, portanto, em qualquer agrupamento social uma luta constante contra as primitivas redes de parentesco, que aparecem como obstáculos ao livre desenvolvimento das pessoas ou atentatórias da sua dignidade. Onde o combate tende a eliminar estes laços (no que eles têm de antissociais) ou restringi-los ao legítimo espaço familiar, a modernização tende a ser um processo menos doloroso e injusto.