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O depósito antecipado do cheque pré-datado como fato gerador de dano moral.

Desnaturação Ou Evolução?

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Sumário: 1. Introdução. 2. As estruturas internas e externas da lei: do caos ao cosmo.3.O cheque "pré-datado" e o dano moral decorrente de sua apresentação antecipada 4. o cheque "pré-datado" como fato gerador de dano moral. 5. Conclusões


1. Introdução

Figura relativamente recente no direito brasileiro, o dano moral encontra-se plenamente inserido no ordenamento jurídico nacional, como reza a Constituição Federal, em seu artigo 5º, V e X, que veio sedimentar o entendimento dos adeptos da reparabilidade do dano moral, estabelecendo um marco final na estéril discussão entre estes, estribados principalmente nos artigos 159, 1.537, 1.538, 1.547, 1.548 e 1.550 do Código Civil e na Lei n.º 5250/67(Lei de Imprensa), e os adeptos das teorias que negavam a reparabilidade do dano moral.

O advento do dano moral, entretanto, trouxe novas questões à apreciação do judiciário, as quais passam pela análise da natureza de certos institutos de direito, pelos usos e costumes em voga no país, além da própria hermenêutica exercida caso a caso.

O presente texto objetivou analisar a transformação do instituto do cheque em sua modalidade "pré-datado"(na realidade, pós-datado), à luz do judiciário brasileiro, no que concerne, respectivamente, à existência, validade e eficácia da relação jurídica originária do dito "cheque "pré-datado" e se a apresentação antecipada do título de crédito pós-datado pode fundamentar pretensão indenizatória, a título de dano moral.

Tal análise passa pela análise das estruturas fundamentais da norma jurídica, subsídio necessário para demonstrar-se as raízes sócio-jurídicas do instituto do cheque e do crédito em si, onde se observará que adquiri o cheque "pré-datado" natureza jurídica completamente distinta do cheque, passível pois de ser fato gerador de dano moral.


2. As estruturas internas e externas da lei: do caos ao cosmo

Analisar a configuração do cheque "pré-datado" é, em última análise, considerar as estruturas fundamentais da norma jurídica em seus aspectos externos e internos, isto é, observar os planos sobre os quais assenta-se o fenômeno jurídico(a existência, a validade e a eficácia da lei, latu sensu)e em que aspectos esses planos diferenciam-se daqueles em que está assentado o cheque.

Tomando o plano de existência como ponto de partida de nossas considerações, observamos que o direito, embora de humana criação, assenta-se sobre os fatos da vida, que podem ser de natureza biológica, política, moral, religiosa, ou, mais usualmente, de natureza econômico-financeira, caso do cheque "pré-datado", aqui tratado.

O fato da vida, reiteradamente praticado, adquire contornos mais ou menos específicos e reclama a sociedade que o Estado tutele os conflitos produzidos pelo atrito social, ocasião em que, definidas as dimensões e situações peculiares ao fato, passa este ao plano da validade, em que do gênero fato da vida passa à espécie fato jurídico, latu sensu, no qual são enunciadas em lei as características para que um fato da vida possa ser considerado um fato jurídico e produza os seus efeitos no mundo jurídico, em lei descritos.

Entretanto, para que os efeitos, de vetor positivo ou negativo, oriundos do fato jurídico, se façam sentir, é indispensável que sejam dimensionados estes no tempo e no espaço, estabelecendo o estado os instrumentos para a defesa judicial daqueles efeitos adrede estabelecidos.

Efetivada tal situação, passa-se ao plano da eficácia, na qual o primitivo fato da vida, posteriormente alçado à condição de fato jurídico, afinal torne-se um fato gerador de direito subjetivo, reconhecido e tutelado pelo Estado.

Desse modo, tem-se que, no plano da existência, o documento que atesta a realidade de um débito trata-se de um título de dívida; se tal documento reveste-se de determinadas características e efeitos chancelados pelo Estado, em especial aqueles descritos na Lei Uniforme de Genebra, trata-se de um título de crédito, alçando o plano da validade.

Ao instrumentalizar-se a tutela estatal dos efeitos do título de crédito, este passa ao plano da eficácia, constituindo-se em um título executivo extrajudicial, descrito pelo Código de Processo Civil, no livro II, que trata do processo de execução.

Analisada a estrutura externa da norma jurídica, resta analisar sua internalidade, perquirindo sobre os elementos internos da norma já consagrados pelos doutrinadores e dessa análise exsurge a fundamentação que cremos embasar a possibilidade de ser a apresentação antecipada de cheque "pré-datado" fato gerador de dano moral, ao mesmo tempo em que demonstra a inexistência dos argumentos dos que pensam em contrário.

A essência da norma jurídica, esta entendida como a unidade fundamental do todo e qualquer ordenamento jurídico, é o encontro de energias jurídicas opostas, de um lado o Estado, que necessita impor determinada ordem à sociedade para que esta mantenha um mínimo de coesão social, até como forma de manutenção da situação de poder estatal.

No outro pólo está a sociedade, que se mantém em constante evolução, que demanda contínuas e freqüentes mudanças no paradigma legislativo, evolução essa indispensável ao avanço material e social da espécie humana.

A tarefa do jurista consiste em equilibrar, através da interpretação e da aplicação da lei, o jogo de forças jurídicas entre Estado e sociedade, de modo a seguir-se uma linha em que poder estatal e coesão social sejam, na medida do possível, equânimes, a fim de salvaguardar-se a ordem e executar-se o progresso.


3. O cheque "pré-datado" e o dano moral decorrente de sua apresentação antecipada

Aplicando a pequena compilação de dados acima ao cheque "pré-datado", podemos vislumbrar as fontes, meios e finalidades do citado título de crédito, bem como o processo de sua desnaturação.

A fonte, isto é, o fato da vida que propicia a alteração do instituto do cheque, previsto em nosso ordenamento jurídico na Lei n.º 7357/85, artigo 32, como instrumento de pagamento à vista, pagável no dia da apresentação, é o enraizado costume nacional de realizar compras emitindo cheques datados para um dia futuro àquele da emissão de fato, como se nesse dia tivesse sido emitido, as quais a população denomina, em curiosa inversão gramatical, de "cheque "pré-datado".

Entretanto, a legislação pátria, que daria juridicidade ao fato da vida, não reconhece o cheque "pré-datado" como fato jurídico, latu sensu, considerando que o cheque supostamente emitido em data posterior à sua emissão é pagável normalmente(artigo 32 da Lei n.º 7.357/85, que trata do instituto do cheque); nesse contexto, o depósito antecipado de cheque "pré-datado" é ato jurídico sadio, pleno de juridicidade e incapaz de tornar-se fato gerador de dano moral.

Tal entendimento, a princípio plenamente jurídico, desconsidera, que, além de ser o "pré-datado" prática comum entre a população, há inegáveis danos resultantes da apresentação antecipada de cheque com data diferida, já que a massa assalariada da população freqüentemente utiliza-se do "pré-datado" para fazer frente as suas necessidades de consumo, já que, na maior parte dos casos, os populares servem-se do cheque desnaturado como ordem de pagamento à vista exatamente por não dispor nem de outro instrumento assemelhado(cartão de crédito, por exemplo), nem de fundos em conta-corrente, no momento da avença, para honrar o compromisso assumido.

Pode-se facilmente imaginar os resultados de um depósito antecipado de "pré-datado" na conta-corrente de um trabalhador que utilizou-se desse expediente, a fim de prover a despensa familiar com a compra mensal de alimentos, contando, para "cobrir" o cheque emitido, com seu salário vincendo.

Em tempos como os de hoje, de bancos inamistosos e juros elevados, é patente que há dano efetivo, tanto material, pelos juros a serem pagos, como moral, caso o cheque seja devolvido ou a conta encerrada, sendo incluído o nome do(ex)cliente nos cadastros nacionais de proteção ao crédito(SPC e Serasa, por exemplo).

Em que argumente-se contra o dano moral decorrente da apresentação antecipada de cheque "pré-datado" através do brocardo dura lex, sed lex, há que se considerar que facilitar o manuseio dos instrumentos de crédito é incentivar o consumo, incrementar a produção e a criação de empregos, o que, efetivamente, é fator de tranqüilidade e coesão social, finalidade última do direito, a quem cabe também resguardar do dano, a qualquer título, os participantes do comércio jurídico.


4. O cheque "pré-datado" como fato gerador de dano moral

A proposta inicial deste trabalho, que é analisar se a apresentação antecipada do cheque "pré-datado" constitui-se em fato gerador de dano moral indenizável, consiste, grosso modo, em consignar se o cheque "pré-datado" conserva sua identidade, ou se esta se altera e os argumentos que embasam tal alteração de natureza.

À primeira vista, o "pré-datado" trata-se de hábito flagrantemente antijurídico, mas há que se observar, além da questão da hermenêutica, questões de direito material e processual, a questão da natureza de título de crédito do cheque e a questão da finalidade do crédito em si considerada. Ressalte-se que são questões que se fundem e se entrelaçam, sendo que a análise de um tema não prescinde da análise dos demais.

Assim, compulsando a Lei de Introdução do Código Civil, repositório da teoria geral do direito brasileiro, verifica-se que o artigo 5.º estabelece que

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Equivale a transcrição do caput do artigo 5º a dizer que o juiz, ao aplicar a lei, deverá ater-se, como limite final de sua exegese, ao fim teleológico da lei, isto é, à regulamentação que a mesma dá a um fato da vida, tornando-o um fato jurídico.

Cabe, então, perquirir sobre qual é o fim social a que prende o artigo 32 da lei n.º 7357/85, bem como a Lei Uniforme de Genebra, bem como qual é a exigência do bem comum que reclama proteção jurídica, reflexo do fim social.

Na realidade, o dispositivo legal, tanto na legislação pátria como na alienígena, que determina a natureza de ordem de pagamento à vista do cheque tem a finalidade social de proteger o crédito, entendido como a troca mercantil diferida no tempo. Há que se observar, contudo, o singular mecanismo que fundamenta o exercício do crédito, em relação ao cheque.

Sendo da natureza instrumental do cheque sujeitar o seu pagamento ao provimento de fundos em poder de terceiro, o emitente, implicitamente, declara a existência de tais fundos ao emitir o cheque; em contrapartida, o credor do cheque, também implicitamente, declara que crê na existência de fundos, ao aceitá-lo em pagamento, posto que ninguém está obrigado a aceitar pagamento em cheque.

Da soma de ambas as declarações desenvolveu-se a presunção de que há fundos imediatamente disponíveis, em poder de terceiro, bastando que o credor apresente o cheque ao banco para pagamento.

Assim, em garantia da segurança das relações jurídicas, atendendo ao princípio geral da boa-fé, determina a lei que o cheque seja pagável na apresentação, independente de qualquer outra estipulação já que o crédito é a negociação de obrigação futura, e traz ínsito a idéia de confiança e de lapso de tempo, pois sem ambos os elementos, não há que se falar em crédito.

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É a confiança, pois, o valor que busca-se prestigiar, como "exigência do bem comum", na rebuscada linguagem do Código Civil, valor através do qual vitaliza-se e articula-se o crédito, tendo em vista que um crédito confiável permite um comércio jurídico saudável em benefício de todo o corpo social.

Se considerarmos, como base social de tal idéia, que todo homem é astuto por instinto, necessitando que a Lei lhe imponha um limite, chegaremos à mesma conclusão do italiano MALATESTA, no sentido de que:

"O homem que não tiver fé em seus semelhantes verá nestes inimigos e não saberá viver em comunidade. Além disso, este homem não será mais que um selvagem cheio de ódio, buscando na selva o seu refúgio"(MALATESTA, Nicola Framarino; A lógica das provas em matéria criminal; Trad. Alexandre Augusto Correia; São Paulo, Ed. Saraiva, 1960, vol.2)

Assim, observa-se facilmente que, analisada a origem social da legislação que determina a natureza de pagamento à vista do cheque, o "pré-datado" não ofende qualquer bem jurídico, já que pauta-se pelos mesmos princípios e razões que levaram à constituição da presente legislação, como se passa a demonstrar.

Dentro da natureza instrumental do cheque, na emissão do "pré-datado", declaram expressamente as partes que não há fundos, no momento, para que se proceda a apresentação do cheque, razão pela qual lança-se data futura à cártula, como sendo a data de emissão, sendo que o cheque torna-se pagável a partir dessa data vindoura.

Ocorre, na realidade, uma inversão do mecanismo geral do cheque, através da convenção de uma segunda obrigação, que, violada, dá azo à pretensão indenizatória: a parte aceitante concorda em receber cheque com data diferida, contanto que haja fundos quando da apresentação, enquanto a parte ofertante concorda em deixar em poder da aceitante título executivo, contanto que esta aguarde até a data avençada para o vencimento da dívida.

O comum acordo entre as partes é expresso, seja por acordo verbal, seja por contrato escrito(a impressão a carimbo "Bom para" ou "Chorãozinho") sendo que o "pré-datado" respeita o crédito, já que trata-se de obrigação diferida no tempo, fundada na confiança mútua entre as partes contratantes, confiança essa que, violada, dá margem à pretensão indenizatória, a título de dano moral.


5. Conclusões

Em face de todo o exposto, chegamos às seguintes conclusões:

A pretensão indenizatória fulcrada em depósito antecipado de cheque "pré-datado" é lícita e jurídica, frente aos argumentos sócio-jurídicos declinados, não considerando-se a obrigação primária(o pagamento do cheque), que encontra-se plenamente regulada em lei, mas a obrigação secundária(o depósito posterior), diante da análise realizada.

Tal pretensão alicerça-se na premissa de que, apresentado cheque "pré-datado", celebra-se, ao lado da obrigação representada pela entrega do cheque, uma nova obrigação, representada pela apresentação posterior do cheque e consubstanciada no lançamento de data diversa àquela da emissão à cártula.

Violada tal obrigação, contratada expressamente pelas partes, seja verbalmente ou por instrumento, ainda que mero carimbo, exsurge fato gerador de dano moral indenizável, em virtude de prováveis e desagradáveis conseqüências da apresentação do cheque "pré-datado" em data distinta daquela avençada previamente.

Considerando o aspecto da prática forense, além das providências salutares de praxe, tratando-se de ação indenizatória por dano moral(produção de um laudo psicológico acerca do dano existente, fixação em petição do quantum indenizatório, citadas a título de exemplo), há que se considerar a produção de prova acerca também da celebração do contrato secundário, expresso ou tácito, bem como do negócio jurídico subjacente à avença.

Equivale a dizer que o autor deve provar, além dos elementos básicos da responsabilidade civil contratual, que avençou-se, expressamente, a segunda obrigação.

Nesse aspecto, cabe o autor demonstrar, através de prova documental, testemunhal ou pericial, que celebrou-se a obrigação secundária, seja pela exibição de cópia da nota fiscal, indicando a realidade da avença ter sido realizada em torno de "pré-datado", seja através de testemunhos e depoimentos pessoais dos envolvidos, seja através da análise do microfilme do cheque apresentado, o mesmo valendo para a demonstração do negócio jurídico subjacente.

Por outro lado, como em qualquer petição, há que se considerar, pois, a produção de prova acerca de dois gêneros de argumentos que podem fundamentar, com razoável possibilidade de êxito, a resposta da parte contrária.

No caso do "pré-datado", o primeiro gênero de argumentos contrários cinge-se à inexistência da segunda obrigação, frente a prova documental(nota fiscal ou canhoto mecanografado) de que tratou-se de venda à vista, sendo que o cheque tenha sido entregue com data distinta por engano do autor, por exemplo.

O segundo gênero de argumentos contrários trata das excludentes de responsabilidade civil, especialmente a ausência de nexo causal, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior, que, demonstrados através de prova cabal, excluem a responsabilidade civil, e, por conseqüência, a pretensão indenizatória, a qualquer título, inclusive moral.


BIBLIOGRAFIA

ABRÃO, CARLOS HENRIQUE. Contra-ordem e oposição no cheque. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1990.

BULGARELLI, WALDÍRIO. Títulos de Crédito. Rio de Janeiro: Atlas, 1994.

DÓRIA, DYLSON. Curso de Direito Comercial, Vol.1. São Paulo: Saraiva, 1990/1991.

LACERDA, PAULO MARIA DE. O cheque no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Jacintho R. Santos Editor, 1923.

MALATESTA, NICOLA FRAMARINO. A lógica das provas em matéria criminal, Vol. 2 trad. Alexandre Augusto Correia; São Paulo, Saraiva, 1960.

MARTINS, FRAN. O cheque segundo a nova lei. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

PAES, P.R. TAVARES. Curso de Direito Comercial; Vol.2. São Paulo: Saraiva, 1986.

REQUIÃO, RUBENS. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1988.

RESTIFFE NETO, PAULO. Lei do Cheque - anotações à Lei Uniforme de Genebra. São Paulo: RT, 1975.

SIDOU, J.M. OTHON. Do Cheque: lei nacional combinada com a Lei Uniforme. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

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Sobre o autor
Iwao Celso Tadakyio Mura Suzuki

advogado em São Paulo (SP), professor universitário, mestrando em Direito pela UNESP/Franca

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SUZUKI, Iwao Celso Tadakyio Mura. O depósito antecipado do cheque pré-datado como fato gerador de dano moral.: Desnaturação Ou Evolução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2369. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, volume 12, Dezembro/2000

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