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A emendatio libelli antecipada: pelo direito de o juiz (e não a acusação) escolher o procedimento criminal a ser seguido

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17/02/2013 às 16:22
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Seria possível o juiz conferir, no ato de recebimento da denúncia, definição jurídica diversa para os fatos ou deveria aguardar todo o processo para, ao final, assim decidir e, enfim, abrir a possibilidade de suspender o processo?

Resumo: De acordo com o entendimento judicial dominante, a emendatio libelli só é admissível após a instrução processual. Há casos, porém, em que se questiona se não seria mais razoável antecipá-la para o momento do recebimento da denúncia. Imagine-se, por exemplo, a hipótese em que o órgão de acusação denuncia alguém por uso de documento público falsificado, evitando, desse modo, intencionalmente ou não, a concessão de suspensão condicional do processo para o réu. Ao receber a denúncia, antes ou depois da resposta à acusação, o juiz percebe que se tratava, na verdade, de documento particular. Nesse caso, seria possível o juiz conferir, desde logo, no ato de recebimento da denúncia, definição jurídica diversa para os fatos ou deveria aguardar todo o processo para, ao final, assim decidir e, enfim, abrir a possibilidade de suspender o processo? O presente estudo visa justamente discutir a possibilidade da antecipação da emendatio libelli, permitindo-se, desse modo, que o Juiz e não o órgão de acusação decida qual o procedimento adequado para os fatos narrados na denúncia.

Palavras-chave: Processo Penal – Emendatio Libelli – Decisão Judicial.

Sumário: Introdução. - 1.Revisão dogmática da emendatio libelli antes da reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08. – 2. A quem cabe escolher o procedimento no processo penal? Os perigos do abuso do poder de acusar. – 3. A Lei nº 11.719/08 e o recebimento da denúncia como momento mais oportuno para a definição do procedimento a ser seguido. – 4. A Lei nº 11.719/08 e o recebimento da denúncia como momento mais oportuno para a definição do procedimento a ser seguido. 5.Considerações finais: por uma leitura constitucional da emendatio libelli. Referências.


Introdução.

A Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, conferiu nova redação ao art. 383 do Código de Processo Penal, que trata da possibilidade de o juiz atribuir definição jurídica diversa daquela ofertada na acusação. Além da reforma no caput desse preceito legal, foram incluídos também dois parágrafos cuja repercussão no processo penal brasileiro ainda não está, sob nossa perspectiva, suficientemente examinada.

Analisar os reflexos dessa reforma na prática processual é o objetivo desse estudo. Para tanto, inicialmente, discorreremos sobre a forma como a chamada emendatio libelli era disciplinada na lei antes da reforma, como ela era compreendida pela doutrina e como ela era aplicada na prática forense. Em seguida, traremos ao debate casos concretos em que, mesmo antes da reforma, já se mostrava necessário um juízo prévio sobre a qualificação jurídica dos fatos. Por fim, com base na experiência extraída desses casos, analisaremos a possibilidade de ser realizado um ajuste na capitulação dos fatos na decisão que aprecia o recebimento da denúncia, sugerindo, ainda, a forma como entendemos deveria ser a emendatio aplicada de agora em diante.


1. Revisão dogmática da emendatio libelli antes da reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08.   

A emendatio libelli é o poder-dever atribuído ao juiz para, no processo penal, ajustar a qualificação jurídica elaborada na acusação sobre os fatos nela apresentados[1]. Fundamenta-se na ficção da onisciência jurídica do magistrado e na arrogância inquisitiva de sua auto-suficiência para a prolação de uma justa decisão. A premissa é a de que o juiz conhece o direito (iura novit curia), bastando que lhe sejam apresentados os fatos para que ele se pronuncie sobre o direito (da mihi factum, dabo tibi ius). Como conseqüência, mesmo antes da reforma implementada pela Lei nº 11.719/08, poderia o juiz emendar a denúncia, inclusive, para agravar a pena a ser imposta ao réu, sem a necessidade de que este se pronunciasse sobre a nova capitulação, já que assentado o entendimento antidemocrático de que o réu se defende sobre os fatos e não sobre posições ou teses jurídicas. 

Na sua redação originária, o art. 383 do Código de Processo Penal previa que:

Art. 383.  O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação anterior à Lei nº 11.719/08).

Como destaca Hélio Tornaghi, esse dispositivo foi inspirado no art. 477 do Codice di Precedura Penale da Itália, de 1930, aliás, como de resto, boa parte de nosso Código de Processo Penal[2].

Essa possibilidade de o juiz modificar a definição jurídica atribuída aos fatos pela acusação despertava, já antes da reforma, debates em torno de dois aspectos jurídicos. O primeiro referia-se à eventual violação ao princípio da ampla defesa diante da possibilidade de, com a emendatio, agravar-se a situação do réu sem que sobre essa questão tenha podido ele (especialmente, sua defesa técnica) se manifestar[3]. O segundo é exatamente o que constitui objeto de nosso estudo e refere-se ao momento processual em que deveria ser realizada a emenda à acusação.

Sustenta-se, até hoje, que, por razões topográficas, a emendatio só seria cabível no momento da prolação da sentença. Com efeito, o art. 383 encontra-se inserido no Título XII do Livro I do Código de Processo Penal, isto é, na parte destinada justamente à regulação da sentença. Argumentava-se, assim, que não haveria amparo legal para que o juiz procedesse, no momento do recebimento da denúncia, à modificação da definição jurídica atribuída ao fato, juízo este que seria incompatível com a mera delibação própria dessa fase inicial. Nesse sentido, no julgamento do Habeas Corpus nº 87324, firmou-se no âmbito do Supremo Tribunal Federal o entendimento de que não era possível a emendatio libelli na fase liminar do processo. Confira-se:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. IMPOSSIBILIDADE DE MODIFICAÇÃO DA CAPITULAÇÃO NO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. CONCESSÃO DE SURSIS PROCESSUAL: IMPOSSIBILIDADE. NÃO-APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 168-A, § 2º, DO CÓDIGO PENAL. ARREPENDIMENTO POSTERIOR. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. Não é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar. 2. Não-aplicação, por analogia, do § 2º do art. 168-A, do Código Penal, à espécie, quanto à extinção da punibilidade do Paciente, em razão de ter ele restituído a quantia devida à vítima antes do oferecimento da denúncia. 3. O trancamento da ação penal, em habeas corpus, apresenta-se como medida excepcional, que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de justa causa, o que não ocorre quando a denúncia descreve conduta que configura crime em tese. 4. Ordem de Habeas corpus denegada[4].

Esse precedente foi repetido em diversos julgados também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, inclusive, em casos mais recentes, do que é exemplo o que se segue:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PACIENTE DENUNCIADO PELA SUPOSTA PRÁTICA DOS CRIMES DE HOMICÍDIO, OMISSÃO DE SOCORRO E DE PERIGO PARA A VIDA. TESE DE ERRO NA CAPITULAÇÃO DO CRIME PELA EXORDIAL ACUSATÓRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE.

1. Cotejando os tipos penais incriminadores indicados na denúncia, com as condutas supostamente praticadas pelo Paciente, vê-se que, conquanto sucinta, a acusação atende aos requisitos legais do art.41 do Código de Processo Penal, de forma suficiente para a deflagração da ação penal, bem assim para o pleno exercício de sua defesa.

2. A emendatio libelli e a mutatio libelli - previstas, respectivamente, nos arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal - são institutos de que o Juiz pode valer-se quando da prolação da sentença. Não há previsão legal para utilização destes em momento anterior da instrução. Precedentes.

3. Explicite-se: "[n]ão é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar (STF, HC 87.324/SP, 1.ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJ de 18/05/2007).

4. A existência de eventual erro na tipificação da conduta pelo Órgão Ministerial não torna inepta a denúncia, e menos ainda é causa de trancamento da ação penal, pois o Acusado defende-se do fato ou dos fatos delituosos narrados na denúncia, e não da capitulação legal dela constante.

5. Eventual desclassificação de delito somente poderá ser discutida na instrução criminal, durante o livre exercício do contraditório.

6. Ordem denegada[5].

Esse entendimento conduzia ao inevitável questionamento sobre qual deveria ser o procedimento do magistrado que, desde logo, a partir da simples leitura da inicial acusatória ou mesmo depois de ser alertado pela defesa, discordasse da capitulação engendrada pela acusação. Deveria ele rejeitar a denúncia ou simplesmente deixar prosseguir o processo, resguardando a análise da imputação jurídica para o momento da sentença? Como se percebe dos votos que conduziram aos julgados acima citados, o entendimento que prevaleceu na prática judicial foi o de deixar prosseguir o processo, adotando-se o rito eleito pelo Ministério Público na sua denúncia.

Em sede doutrinária, Walberto Fernandes de Lima sustentou, contudo, a primeira solução, com fundamentação que chama a atenção[6]. Para ele, a aplicação da emendatio libelli no momento do recebimento da denúncia implicaria violação ou incompatibilidade com o sistema acusatório, pois o juiz estaria substituindo o Ministério Público no papel de acusador. De acordo com suas palavras:

No juízo de delibação não deve ocorrer o aprofundamento na valoração da prova de modo a se desclassificar uma imputação feita pelo autor para aquela que o magistrado entenda ser a cabível, isto porque cabe ao Ministério Público promover com exclusividade a ação penal pública e ao querelante a ação penal privada. Do contrário, ou se teria uma acusação implícita, ou pior, um processo deflagrado pelo Estado-juiz sem acusação formal, atingindo-se, assim, as cláusulas constitucionais da ampla defesa e do contraditório, cujo resultado incontestável seria o renascimento das funções persecutórias do juiz, o que já não se compadece com o sistema acusatório.

Enfim, na hipótese ora ventilada, de desclassificação judicial limiar da incoativa, haverá, na realidade, o não recebimento da denúncia ou da queixa, total ou parcial, o que então desafiará, por conseqüência, a interposição do competente Recurso em Sentido Estrito (art. 581, I, do Código de Processo Penal)[7].

Embora concordemos com a idéia de que a emendatio libelli (em prejuízo do réu) implicaria violação ao sistema acusatório[8], não podemos admitir a solução proposta no texto reproduzido. Isso porque o seu autor, embora tenha esse posicionamento quanto à emendatio no limiar do processo, aceita-a naturalmente para a fase da sentença. Ora, essa postura nos parece absolutamente contraditória, pois, de qualquer modo, no início ou no final, estaria o juiz arvorando-se no papel de acusador para realizar imputação jurídica mais gravosa ao réu, não pensada pelo acusador originário, e, sem que tenha o réu sequer se manifestado sobre essa inovadora imputação jurídica, condenando-o nos novos e surpreendentes termos de sua imputação.

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De qualquer modo, alguns casos práticos podem demonstrar a necessidade de rever o entendimento sobre o não cabimento de aplicação antecipada da emendatio libelli. È o que examinaremos no tópico seguinte.


2. A quem cabe escolher o procedimento no processo penal? Os perigos do abuso do poder de acusar.

O procedimento não é apenas a forma como se revela o processo. O processo é um caminhar para frente (pro cedere). Assim, essa forma, isto é, o procedimento não pode ser qualquer soma de atos tumultuados ou multidirecionais. Deve ter uma ordem (crono)lógica. A relevância do procedimento encontra-se, pois, hoje, destacada em razão de sua função de conferir unicidade à diversidade de situações jurídicas que se estabelecem no processo. Nesse sentido, Antônio Scarance Fernandes destaca que:

Os atos singulares que o compõem estão postos pelo legislador de forma sucessiva, um constituindo consequência do precedente e condição necessária do sucessivo. Por outro lado, esses atos, apesar de permanecerem distintos, estão todos ordenados para o alcance do mesmo resultado. A razão da unidade do procedimento está em que todos os seus atos visam a preparar um mesmo ato, dando cada um a sua contribuição para esse fim. No processo jurisdicional, o ato perseguindo pelo juiz e pelas partes, a sentença, resume todo o procedimento, constitui o seu resultado e é dotado de eficácia externa[9].  

Ora, se o procedimento é uma série complexa de atos concatenados de acordo com uma ordem preestabelecida destinados a um mesmo fim e se esse fim não é outro senão o pronunciamento judicial sobre o objeto do processo, não pode ser a sentença (o fim) o momento para a definição do procedimento (o meio). Com efeito, atualmente, os procedimentos são definidos de acordo com a qualificação jurídica (e a correspondente pena) atribuída aos fatos, de modo que não pode o juízo de tipicidade ficar adstrito à fase final do processo.

Como visto anteriormente, nos moldes do entendimento judicial e doutrinário prevalecente, o magistrado só pode atribuir definição jurídica diversa aos fatos imputados na denúncia na fase da sentença. Mesmo percebendo, logo no início do processo, eventual equívoco na capitulação dos fatos, deveria o juiz, conforme os defensores dessa tese, proceder de acordo com essa errônea qualificação jurídica e, somente ao fim do processo, se for o caso, anular todo o processo, para, depois de ajustada a tipificação, corrigir também o procedimento (hipótese, por exemplo, em que a mudança na tipificação importa alteração da competência). Esse comportamento, contudo, não parece consentâneo com a idéia de marcha para frente e de ordem lógica dos atos processuais.

Além disso, como se demonstrará a seguir, a escolha do procedimento influi severamente no direito de defesa do acusado e, o que é mais importante, pode repercutir diretamente no seu direito de liberdade. A relevância do debate pode ser percebida a partir da análise de casos concretos.

Sobre o tema, Eduardo Mahon já chamava a atenção para aquilo que denominou de drama processual[10]. Embora sua análise se reporte à antiga legislação de drogas, o exemplo por ele mencionado de confusão entre tráfico e uso de drogas ainda permanece inquietante. Como se sabe, a atual Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) continua conferindo tratamento absolutamente distinto em relação ao usuário, que alimenta o circuito das drogas por meio da demanda, e o comerciante, que dá a sua contribuição com a circulação da oferta. Para quem demanda a droga (o usuário), a lei reserva procedimento penal simplificadíssimo (conforme se pode observar de seu art. 48, que determina a aplicação do rito previsto na Lei nº 9.099/95), que pode resultar em penas antecipadas de mera advertência, de medida educativa ou de prestação de serviços à comunidade. Por outro lado, para aqueles que oferecem a droga, a Lei prevê procedimento integralizado, com penas que podem chegar a mais de 15 anos de reclusão.

No que tange ao tema aqui versado e ao drama processual referido por Eduardo Mahon, o problema surge quando o membro do Ministério Público considera que a situação de alguém que foi preso em flagrante com quatro cigarros de maconha e com cem reais em cédulas diversas no bolso deve ser qualificada como a de porte para tráfico (procedimento integralizado) e o juiz, depois de apresentada a resposta à acusação, convence-se de que não havia na denúncia lastro probatório suficiente para formação de cognição, ainda que sumária, sobre a intenção do réu de traficar, reputando-o como usuário. O que deve fazer o juiz, nessa situação?

Se optar por receber a denúncia nos termos pretendidos pelo Ministério Público, será imposto ao réu um procedimento mais demorado e, considerando a gravidade da pena, será de bom alvitre que o réu disponha de defesa técnica especializada e que sejam produzidas todas as provas possíveis para afastar a possibilidade de ser interpretada sua conduta como a de tráfico de drogas, ainda que, desde o início, não houvesse o membro do Ministério Público sequer se desincumbido do ônus de apresentar indicações de que o réu efetivamente intencionava comercializar a droga.

Os critérios que devem ser utilizados pelo magistrado para definir se alguém deve ser considerado usuário ou não de drogas estão previstos, ainda que atecnicamente, no art. 28, §2º, da Lei nº 12. 343/06:

Art. 28. [...]

 §2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Imagine-se, pois, que, na defesa prévia, tenha o réu apresentado documentos que revelassem internações para tratamento do vício da droga, certidão de bons antecedentes criminais, e, ainda, declarações de vizinhos informando que o réu apresenta boa conduta social, apesar do vício particular, e que sabem ser ele usuário de drogas. Será razoável submeter o acusado ao longo e tortuoso (e, porque não dizer, oneroso) procedimento previsto para os casos de tráfico de drogas? Acreditamos que não.

Do mesmo modo, a importância do debate em torno da admissibilidade da atribuição antecipada de definição jurídica diversa aos fatos imputados na denúncia pode ser aduzida dos casos em que se admite a suspensão condicional do processo.

O art. 89 da Lei nº 9.099/95 estabelece que é cabível a suspensão condicional do processo nos casos em que a pena mínima prevista para o crime for igual ou inferior a um ano. Imagine-se, então, a hipótese em que o órgão de acusação oferece denúncia contra uma pessoa imputando a esta o crime de uso documento público falsificado, cuja pena mínima, por força do art. 304 c/c 297 do Código Penal, é de reclusão de dois anos e multa. O magistrado, por seu turno, após a resposta a acusação, percebe que se trata, em verdade, de documento particular, o que implicaria, nos moldes do art. 298, em pena mínima de um ano. Seria razoável submeter o acusado a todo o processo para somente no momento da prolação da sentença aplicar o art. 383 do Código de Processo Penal e permitir a suspensão condicional do processo? Acreditamos que, além de não ser razoável, essa solução não é consentânea com a noção acima mencionada de procedimento como série preordenada de atos destinados a um fim. É absolutamente contra-producente do ponto de vista administrativo, para dizer o mínimo, e, acima de tudo, injusto com o ser humano processado.     

Percebe-se, de fato, facilmente, que o cabimento ou não da suspensão condicional do processo depende fundamentalmente do juízo de tipicidade que se realiza sobre a conduta imputada pelo órgão de acusação. Se a finalidade da suspensão condicional do processo é evitar que o réu se submeta às cerimônias degradantes e ao processo de estigmatização social decorrente do próprio procedimento criminal[11], esse juízo deve ser realizado no início do processo e não depois[12].

Mesmo antes da reforma, Tourinho Filho, embora defendendo que a sentença seria o momento propício para a perfeita qualificação jurídica dos fatos já defendia que o juiz poderia dar definição jurídica diversa da que consta na acusação, em alguns casos, especialmente quando essa mudança interferisse na liberdade do cidadão. Nesse sentido, sustentava ele que:

Não obstante o momento propício para o Juiz dar a perfeita qualificação jurídico-penal ao fato seja o da prolação da sentença (art. 383 do CPP), o certo é que, em determinadas hipóteses, ele não só pode como deve fazê-lo no ato de recebimento da peça acusatória. [...] É lícito ao Juiz, portanto, no momento do despacho liminar, analisar e investigar com escrúpulo a pretensa qualificadora, para evitar que o cidadão sofra injustificável restrição no seu direito de liberdade[13].

A solução, contudo, parece ter vindo com a Lei nº 11.719/08, que, ao modificar o procedimento comum, com o intuito de simplificá-lo, criou um momento decisório antecipado e, embora não tenha regulamentado expressamente o momento para a emendatio libelli, incluiu dois parágrafos no art. 383 do CPP, que, sob nossa ótica, devem ser, por questões de lógica e economia processual, aplicados nessa fase inicial. É o que sustentaremos a seguir.

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Sobre o autor
André Carneiro Leão

É Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. É Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Professor convidado do Instituto de Magistrados de Pernambuco-IMP. É Defensor Público Federal. Titular do 9ª Ofício Criminal da DPU/PE. Ex-chefe da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Vice-Diretor da Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU). Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Foi professor universitário de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito de Olinda (AESO/BARROS MELO). Foi professor de cursos para concursos. Foi Professor e Coordenador da disciplina Direito Previdenciário da Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA/PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Carneiro. A emendatio libelli antecipada: pelo direito de o juiz (e não a acusação) escolher o procedimento criminal a ser seguido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3518, 17 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23740. Acesso em: 29 mar. 2024.

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