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Aspectos do Direito Internacional Constitucional: manifestações constitucionais da ordem jurídica internacional

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24/02/2013 às 15:30
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A constitucionalização do Direito Internacional implica a crescente sistematização da ordem normativa internacional, ainda que se conservem suas características clássicas: Estados soberanos, ausência de centralização de poder, produção normativa dispersa e atomizada.

Resumo: Com base em perspectiva que destaca o processo de constitucionalização do direito internacional, e com fulcro no critério da profundidade do consenso entre os atores internacionais, o autor explica, neste artigo, que existem, pelos menos, dois grupos de normas que integram o direito internacional constitucional. No primeiro grupo, encontram-se normas sobre temas que alcançaram profundo consenso internacional (paz, diplomacia, tratados, direitos humanos). No segundo grupo, por sua vez, estão normas acerca de temas relevantes e gerais, cujo tratamento ainda não é consensual (e.g. meio ambiente). O autor, ao proceder à divisão nesses dois conjuntos normativos, pretende demonstrar que a constitucionalização do direito internacional implica a crescente sistematização da ordem normativa internacional, ainda que se conservem as características clássicas do sistema internacional: Estados soberanos, ausência de centralização de poder, produção normativa dispersa e atomizada.

Palavras-chave: direito internacional constitucional; governança; sistema internacional anárquico; direitos humanos; meio ambiente


1. Considerações teóricas

Na perspectiva dos estudos jurídicos, o direito internacional constitucional, a despeito de sua forma incipiente, pode ser considerado sub-ramo do direito internacional ou derivação do direito constitucional. Ainda que não se vislumbrem objeto e metodologia claramente definidos, a disciplina tem suscitado o interesse de acadêmicos e de pesquisadores, os quais, por conseguinte, debatem sua aplicabilidade e seu alcance prático. Como, desde sua origem, o direito internacional constitucional apresenta aspectos de interdisciplinaridade, seu estudo torna-se desafiador e, até mesmo, inviável àqueles que, anacronicamente, compreendem os ramos do direito como se fossem categorias incomunicáveis.

Na fase inaugural em que se encontra a disciplina, os juristas tratam de indagações diversas, inclusive daquelas concernentes à nomenclatura mais apropriada para o novo ramo de estudos: direito internacional constitucional e direito constitucional internacional teriam significados equivalentes? Seus objetos de estudo seriam os mesmos? A despeito de a incerteza terminológica revelar algum interesse, optou-se, neste artigo, por não discorrer acerca do problema, e por assumir a primeira denominação como a mais adequada para o propósito do trabalho.

O direito internacional constitucional, em seu estágio atual, é caracterizado por, ao menos, duas perspectivas distintas, que, apesar de complementares em muitos aspectos, tratam o fenômeno com base em premissas diferentes. Na primeira perspectiva, que poderia ser denominada de constitucionalista, destacam-se aspectos referentes à internacionalização das constituições e, por conseqüência, concernentes às alterações do direito constitucional em decorrência da globalização, da regionalização e da progressiva interdependência entre os países. Sob a segunda perspectiva, diferentemente, a qual será adotada neste artigo, destacam-se os aspectos da ordem jurídica internacional que indiciam a progressiva constitucionalização do direito internacional. Em princípio, esse processo ocorre mediante a formação de consenso sobre alguns aspectos jurídicos basilares e por meio do entendimento e da coordenação entre os atores internacionais em temas relevantes acerca dos quais ainda não ocorre plena convergência de interesses.

Com fulcro na primeira perspectiva, denominada de constitucionalista, é possível avaliar, por exemplo, a consolidação de um núcleo comum de direitos no âmbito das constituições dos mais diversos Estados do mundo contemporâneo, aspecto que acarreta a aproximação material dos ordenamentos jurídicos em temas relevantes como direitos humanos e garantias democráticas. Essa perspectiva adquire maior importância em razão da formação de blocos regionais, uma vez que esse fenômeno demanda a progressiva harmonização das legislações nacionais dos Estados participantes dos processos de integração.

O caso da União Europeia é paradigmático nesse sentido, pois, a despeito da rejeição do projeto de constituição e das dificuldades econômicas enfrentadas por seus países nos últimos anos, houve inegável aproximação do conteúdo dos ordenamentos jurídicos dos Estados europeus, por meio da identificação de valores compartilhados que foram normativamente expressos nas constituições nacionais. O processo de integração europeia, além disso, tem gerado profunda interdependência entre os sistemas legais dos Estados-membros. Christoph Grabenwarter, por exemplo, identifica as influências recíprocas que as ordens constitucionais dos Estados-membros exercem umas sobre as outras. Essas influências podem decorrer das mudanças legislativas determinadas pela participação na UE e pelo processo dialético - constituído de tensões e de convergências múltiplas - que caracteriza a acomodação das ordens nacionais ao arcabouço normativo comunitário. O jurista austríaco esclarece que “o legislador, os tribunais e a jurisprudência constitucional de um Estado respondem a tensões entre os sistemas legais estatais e as normas européias; essas respostas, mediante comparação de institutos legais, são recepcionadas por outros Estados” (p. 126).

Por meio da segunda perspectiva, por sua vez, que será denominada de internacionalista, torna-se possível a análise da consolidação, no âmbito do direito internacional, de ordem normativa equiparável ao conceito tradicional de constituição: norma fundamental e superior que organiza o exercício do poder mediante regulação da produção e da aplicação de normas inferiores, sem prejuízo de um núcleo duro e irredutível de direitos materiais. A superioridade hierárquica de algumas normas internacionais, a generalidade de sua aceitação pelos sujeitos de direito internacional e a relevância dos temas de que tratam são características que indicam sua natureza constitucional implícita.

Deve-se notar, de antemão, que a aceitação do direito internacional constitucional gera reflexos consideráveis que extrapolam o âmbito epistemológico, pois admitir sua existência significa atribuir grau não desprezível de sistematicidade ao direito internacional, mesmo que diverso daquele que caracteriza os ordenamentos nacionais. Essa sistematicidade, por sua vez, seria efetiva, no âmbito das relações internacionais, a despeito da ausência de poder centralizado, da inexistência do monopólio da força por órgão supremo, da descentralização da produção normativa e da conservação da soberania pelos Estados, características inerentes à sociedade internacional desde a Paz de Vestfália.

A identificação dessa sistematicidade, apesar de seu aparente ineditismo, não é nova para os estudiosos dos fenômenos internacionais em sentido amplo. Em sua obra Sociedade anárquica, Hedley Bull, autor importante para juristas e para cientistas políticos, em evidente contraposição ao realismo político clássico de origem hobbesiana, predominante na vertente estadunidense dos estudos de política internacional, explica que, apesar de desprovida de autoridade central, a sociedade internacional apresenta uma ordem mantida por instituições amplamente aceitas pelos Estados, entre as quais o direito internacional (BULL, p. 38).

Ainda que não estivesse interessado na perspectiva jurídica das relações internacionais, Bull oferece uma das premissas para compreensão do direito internacional constitucional, pois ele, indiretamente, evidencia que a ordem e a sistematicidade não dependem, necessariamente, da centralização do poder e do monopólio do uso da força por entidade supranacional. Esse raciocínio do autor é relevante para mitigar a importância da analogia do sistema internacional com os sistemas estatais. De igual maneira, arvorado no pensamento de Bull, infere-se que a prática de comparar a constitucionalização do direito internacional com o processo de formação das constituições nacionais pode acarretar análises açodadas e superficiais, já que são fenômenos distintos, baseados em conceitos diferentes de sociedade.

Com base na ideia de que a sociedade internacional apresenta, no mínimo, características de anarquia ordenada, Brun-Otto Bryde explica que, na atualidade, em razão elevada interdependência entre os povos (p. 103) – a qual é exemplificada pelos intensos vínculos econômicos entre os Estados, pelos problemas ambientais comuns da humanidade e pelos desafios políticos transacionais (e.g. terrorismo, tráfico de drogas) – a sociedade internacional pode ser considerada uma comunidade altamente organizada (p. 111), constatação que corrobora o conceito de direito internacional constitucional. Por essas razões, essa sociedade difere-se profundamente do estado hobbesiano de guerra permanente, além de constituir estágio mais desenvolvido e complexo do que aquele observado na ordem estatista explicada por Bull.


2. O direito internacional constitucional na perspectiva internacionalista

Na perspectiva internacionalista, o objeto do direito internacional constitucional consiste no conjunto de normas, decorrentes de fontes diversas, que - em razão de seu conteúdo, de sua ampla aceitação e de sua relevância – apresentam características que possibilitam a organização da sociedade internacional, a convivência entre os Estados e outros sujeitos de direito internacional, a atuação de organizações internacionais, a produção e a aplicação de normas jurídicas, a criação coletiva de um núcleo normativo duro e inviolável (jus cogens), oponível inclusive àqueles que não expressaram, voluntariamente, concordância com seus preceitos. Ao lado desse primeiro conjunto de normas, existe outro que, não obstante seja relevante, encontra-se em processo embrionário de aceitação paulatina. Esse segundo grupo de normas abarca temas cujo tratamento não alcançou ampla concordância entre os atores internacionais. Para usar o vocabulário da ciência política, os Estados, atores fundamentais, concordam que temas como meio ambiente e desenvolvimento, por exemplo, devem ser objeto da agenda internacional, mas discordam sobre a maneira de tratamento legal desses temas (e.g. grau de obrigatoriedade dos compromissos ambientais, tratamento discriminatório para Estados em desenvolvimento etc.).

2.1. Grandes consensos do direito internacional

Alguns aspectos do direito internacional alcançaram elevado consenso ao longo dos anos. A necessidade de uma organização internacional dedicada precipuamente aos temas da guerra e da paz, a excepcionalidade das relações diplomáticas e consulares, a observância de certas regras para elaboração de compromissos internacionais, a proscrição de atos que atentem, em sentido amplo, contra a existência do ser humano são entendimentos que, principalmente na segunda metade de século 20, adquiriram amplo consenso na sociedade internacional. Essa convergência de valores e de interesses possibilitou a consolidação de normas específicas, cuja aplicabilidade encontra pouca resistência dos Estados soberanos. Por isso, a Carta das Nações Unidas, as Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares, as Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados e o sistema global de proteção dos direitos humanos podem ser considerados os primeiros elementos do arcabouço normativo do direito internacional constitucional[1].

2.1.1. A proscrição de guerras, a defesa da paz e o uso controlado da força

As características do mundo contemporâneo originam-se, em grande parte, dos fatos ocorridos na primeira metade do século 20. As duas guerras mundiais, a crise econômica da década de 1930, o fim da hegemonia europeia, a ascensão política e econômica dos EUA foram alguns dos acontecimentos mais importantes da história recente da humanidade. A sociedade internacional e, por conseqüência, o direito internacional foram fortemente afetados por esses fatos. Em grande medida, a organização da sociedade internacional, no período subsequente à Segunda Guerra Mundial, decorreu do esforço concertado dos países Aliados, sob liderança dos Estados Unidos, na consolidação de nova ordem mundial. A Carta das Nações Unidas, juntamente com o Estatuto da Corte Internacional de Justiça, além de prescreverem os meios de funcionamento da Organização e de seu órgão de solução de controvérsias, contem disposições sobre aspectos fundamentais do direito internacional. O uso da força (cap. VII da Carta), a autodeterminação dos povos (art. 1.º da Carta), a soberania dos Estados (art. 2.º da Carta), os direitos humanos (preâmbulo, art. 1.º, art. 55 da Carta), as formas de solução pacífica de litígios (cap. VI da Carta), as fontes do direito internacional (art. 38 do Estatuto da CIJ) são alguns dos temas juridicamente seminais contidos nesses dois documentos, o que indica sua característica constitucional, a qual, portanto, extrapola, respectivamente, a natureza de simples tratado de fundação de organização internacional e de estatuto de órgão judicial.

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A despeito de sua estrutura desigual, das diversas críticas que enfrenta desde o momento de sua fundação, da inércia em momentos críticos (e.g. durante muitos momentos da guerra fria), de seu orçamento limitado, a ONU, principal organismo dedicado à segurança internacional (SEITENFUS, p. 115), pode ser considerada verdadeiramente universal. Esse universalismo, por sua vez, pode ser compreendido de duas formas distintas: da ONU participam, na atualidade, praticamente todos os Estados do mundo; os grandes temas internacionais, ao lado disso, são, direta ou indiretamente, tratados por seus organismos especializados. Dessa forma, mesmo que a legitimidade da organização seja, por vezes, contestada, os Estados - inclusive aqueles que, claramente, adotam práticas políticas que destoam dos princípios das Nações Unidas - não renunciam à participação no quadro de membros da ONU. As reuniões periódicas de sua Assembléia Geral e a diversidade temática de seus organismos, além disso, possibilitam a discussão multilateral dos grandes problemas da agenda internacional, com ampla repercussão na opinião pública, o que indica sua preocupação com todos os grandes temas da humanidade.

2.1.2. A convivência pacífica e diuturna entre os sujeitos de direito internacional

Ao lado da Carta das Nações Unidas e do Estatuto da CIJ, no que concerne às regras de convivência entre os Estados, devem ser citados dois importantes tratados multilaterais do começo da década de 1960. Tanto a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) quanto a Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963) – as quais são consolidações de antigos costumes internacionais amplamente aceitos – asseguram a continuidade e a estabilidade das relações rotineiras entre os Estados, por meio do reconhecimento de imunidades e de privilégios aos seus agentes diplomáticos (e.g. art. 29 da CV de 1961) e consulares (art. 43 da CV de 1963), bem como mediante a garantia de inviolabilidade das missões (art. 30 da CV de 1961), das correspondências e de outras formas de comunicação (art. 27 da CV de 1961). 

As relações entre os Estados são igualmente reguladas pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados (1969), documento que também consolida antigas práticas costumeiras no que concerne à assunção voluntária de obrigações pelos Estados. A despeito de suas normas predominantemente propedêuticas, esse tratado constitui um dos documentos mais relevantes do direito internacional. Juntamente com a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Organizações Internacionais e Estados e entre Organizações Internacionais (1986), a Convenção de 1969 regula e padroniza a produção das normas convencionais (jus scriptum), as quais consistem, hodiernamente, na fonte mais relevante, segura e freqüente do direito internacional. Nas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados, além disso, foi previsto o conceito de norma imperativa de direito internacional (jus cogens). Por meio desse conceito, cujo conteúdo é propositalmente aberto, materializa-se verdadeira hierarquia entre as normas de direito internacional, uma vez que passa a existir um núcleo de direitos que, em razão de sua essencialidade, não pode ser derrogado pela vontade pactuada dos Estados. Essas normas imperativas de direito internacional, além disso, conforme art. 53 da Convenção de Viena, não podem ser derrogadas por disposições do direito interno dos Estados.

2.1.3. Os direitos humanos e o indivíduo como destinatário das normas internacionais

Apesar da imprecisão conceitual, no núcleo substancial do jus cogens, no entendimento de parcela considerável da sociedade internacional, não devem estar ausentes os direitos humanos, como se infere das atas das sessões da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (SOARES, 133). Bryde, por sua vez, assevera que a estrutura global de proteção dos direitos humanos - materializada, principalmente, em comitês de monitoramento, mesmo com as deficiências e incompletudes que estes apresentam - desempenha papel relevante no processo de constitucionalização do direito internacional (BRYDE, p. 112). O jurista germânico explica, igualmente, que o reconhecimento dos diretos humanos como núcleo do direito internacional indica a existência de obrigações dos Estados para com os seres humanos, os quais seriam, em última instância, a fonte de legitimidade do direito internacional. (Idem, p. 109)

Não obstante a existência de precedentes relevantes (e.g. o direito humanitário, as Convenções de Genebra e da Haia, a OIT), a proteção internacional dos direitos humanos passou a ser preocupação efetiva dos atores internacionais apenas depois da Segunda Guerra Mundial. A assinatura da Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) são atos fundadores da denominada Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rights). O primeiro documento - além de constituir, como mencionado, a instituição mais relevante da história da sociedade internacional - abrange, em inúmeros dispositivos, referências diretas aos direitos humanos. A especificação, a ampliação e o detalhamento destes direitos, por sua vez, ocorreram por meio da publicação da Resolução n.º 217 A (III), da Assembléia Geral da ONU, documento que veiculou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ambos os documentos, por isso, são complementares e inseparáveis, mesmo que a Declaração, em sua forma, seja espécie normativa diversa e de aparência não vinculante, pois, diferentemente da Carta da ONU, não constitui tratado internacional em sentido estrito.

Além desses dois documentos, devem ser citados, como referências do sistema global de proteção dos direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1966), a Primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968), a Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), bem como diversos tratados internacionais cujos objetos são temas específicos de direitos humanos (Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, 1948; Convenção Internacional contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 1984; Convenção Internacional para os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, 2006).

De todos esses esforços, deve-se destacar a criação, por meio do Estatuto de Roma (1998), do Tribunal Penal Internacional, cuja vigência iniciou no ano de 2002. Apesar de Estados importantes (e.g. EUA e China) não serem parte do Estatuto, a criação do tribunal constituiu relevante conquista do direito internacional. A concepção dessa corte alterou dois aspectos fundamentais do direito internacional clássico: a admissão do indivíduo como sujeito de direito internacional (na qualidade de réu: art. 1.º e art. 25; e de vítima: preâmbulo) e a centralização, ainda que de forma complementar, do exercício da jurisdição internacional no que concerne ao julgamento dos mais graves crimes internacionais (genocídio, crimes de guerra, crimes contra humanidade e agressão, conforme art. 5.º e ss). No primeiro caso, a possibilidade de pessoas individuais poderem figurar como sujeito passivo no TPI indica que algumas normas de direito internacional incidem diretamente sobre os indivíduos, sem intermediação do Estado, ainda que este deva manifestar seu consentimento em relação à jurisdição do Tribunal e tenha precedência de jurisdição. No segundo caso, após o Estatuto de Roma, os tribunais penais de exceção (e.g. Nuremberg e Tóquio) e ad hoc (Tribunal Penal para Ruanda e para ex-Iugoslávia), fortemente criticados por violarem garantias e princípios do direito penal, tornam-se obsoletos, aspecto positivo que confere maior credibilidade às instituições internacionais.

2.2. O dissenso em alguns temas fundamentais

Em razão das rápidas mudanças ocorridas na sociedade internacional, alguns temas, anteriormente considerados secundários, adquirem elevada importância, pois eles afetam, de forma variável, toda humanidade. O grau de consenso entre os atores internacionais acerca desses temas (e.g. meio ambiente, desenvolvimento, comércio, problemas sociais, combate ao tráfico de drogas, terrorismo), entretanto, é menor, ainda que reconheçam sua importância. Para exemplificar essa problemática, escolheu-se o tema do meio ambiente.

2.2.1. Proteção do meio ambiente e realismo político

A preocupação da sociedade internacional com o meio ambiente é relativamente recente. Mesmo que as primeiras regras referentes ao tema possam ser encontradas no começo do século 20 (RIBEIRO, p. 54) e que se reconheça a importância ambiental do Tratado da Antártica, de 1959, a Conferência de Estocolmo, ocorrida em 1972, foi grande marco inaugural do direito internacional ambiental. Podem ser mencionados, como relevantes eventos subsequentes, a criação do Programa das Nações Unidas para o meio ambiente (PNUMA), a publicação do relatório Nosso futuro comum (relatório Bruntland), a concepção do conceito de desenvolvimento sustentável, a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento e o Protocolo de Quioto. Esses grandes eventos internacionais, bem como o arcabouço normativo deles resultante, evidenciam a centralidade do tema do meio ambiente na agenda política dos principais atores internacionais.

Guido Soares enumera dez categorias temáticas concernentes ao tratamento jurídico do meio ambiente: proteção de megaespaços ambientais (e.g. Antártica); combate à poluição industrial e ao movimento transfronteiriço de resíduos perigosos; proteção de elementos da fauna e da flora; espaços marítimos e oceanos; rios transfronteiriços, lagos e bacias internacionais; atmosfera camada de ozônio e clima; utilização pacífica de energia nuclear e desarmamento; patrimônio mundial: natural e cultural; responsabilidade e reparação do dano; comércio e meio ambiente (pp. 407-434). De todos esses aspectos, muitos dos quais referentes a mais de uma área de interesse dos Estados, poucos foram tratados de forma juridicamente satisfatória pelo direito internacional. Se o Tratado da Antártica (1959), a Convenção de Montego Bay sobre direito do mar (1982), e o regime jurídico sobre a camada de ozônio (Convenção de Viena, de 1985; Protocolo de Montreal, de 1987) podem ser considerados resultados exitosos de regulamentação jurídica de temas ambientais sensíveis, em outros itens da agenda, como redução de gases estufa e proteção da biodiversidade, predomina dissenso entre os principais atores internacionais. Estes adotam, no âmbito das negociações, postura diplomática de defesa, por vezes intransigente, do interesse nacional, atuando com fulcro nas premissas do realismo político clássico, ainda que travestido de juridicidade e de discurso altruísta (RIBEIRO, pp. 37).

A ausência de consenso sobre alguns aspectos fundamentais (e.g. metas redução de gases de efeito estufa), a posição obstrucionista de alguns Estados importantes (e.g. EUA) e a própria contestação de prognósticos científicos por parte minoritária da comunidade científica são, dessa forma, problemas que protelam a obtenção de consenso mais efetivo acerca de normas internacionais ambientais mais rigorosas, que vinculem os Estados, em benefício da humanidade. Essa constatação, embora pessimista, não ignora a expressiva convergência - impulsionada pela pressão da opinião pública internacional e pela crescente conscientização de estadistas - que se observa em temas ambientais específicos (e.g. combate à desertificação, proteção de espécies em extinção) e que, com o tempo, pode alcançar outras vertentes do sistema de proteção ambiental internacional.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Aspectos do Direito Internacional Constitucional: manifestações constitucionais da ordem jurídica internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3525, 24 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23790. Acesso em: 24 nov. 2024.

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