Introdução
Como no Mito da Caverna, de Platão, ao se tratar do espaço cibernético, parece que se fala ainda de sombras e projeções de alguma coisa sobre a qual muito pouco se sabe, efetivamente. A velocidade com que o mundo digital avança é inimaginável, e no embate que se faz entre esse espaço virtual e as técnicas de regulação do nosso cotidiano, acabamos por perceber um mundo de normas muitas vezes obsoletas, ou pelo menos inadequadas à forma como as situações jurídicas realmente têm se consolidado.
Assim, por exemplo, possuímos um Código de Defesa do Consumidor que foi criado anos antes do uso da internet no país, problema que suscita os mais controversos debates e instaura dúvidas com relação a diversos contratos celebrados por esse meio. Não apenas quando se trata do meio consumerista, mas também quando se indaga acerca das relações civis ou mercantis envolvendo o meio digital, ainda são muitas as reflexões teóricas a serem feitas no sentido de se aprimorar a técnica hermenêutica das normas para que acompanhem (ou pelo menos tentem acompanhar) as mudanças que a Revolução Digital tem causado nas vidas de todos.
Ainda com relação ao meio digital, e aos contratos celebrados tendo em vista essa realidade, surgem diversos problemas relacionados à privacidade dos usuários, e à situação de fragilidade do consumidor frente a um meio de linguagem extremamente técnica. Indispensável, portanto, que se teçam reflexões quanto a todos esses pontos, a fim de que se possa aprimorar o modo como os preceitos legais se relacionam à dinâmica informática.
Os contratos telemáticos: características e questões controversas
Considerações gerais
A telemática, como é ressaltado pela doutrina, é nada mais que a conjugação da informática com as telecomunicações, ou seja, representa a aplicação das telecomunicações à informática. Com relação aos contratos telemáticos, ou seja, aqueles que se utilizam de meios eletrônicos como suporte para sua celebração, caberia indagar acerca de suas semelhanças ou diferenças com relação aos contratos informáticos.
É sabido que nos contratos informáticos (que têm por objeto bens ou serviços informáticos) não há grandes distinções que os separem das formas contratuais mais comuns. Assim, a compra e venda de hardwares, por exemplo, não apresenta grandes diferenças do mesmo tipo contratual quando envolva qualquer outro objeto. Em essência, há que se ter preço, consentimento e estipulação do objeto.
Os contratos telemáticos, por sua vez, especialmente pela forma como são celebrados, possuem peculiaridades que devem ser examinadas mais a fundo, conquanto não deixem de ser submetidos às regras gerais do direito contratual. Como destaca o autor Otávio Perroni:
[...] parece claro o entendimento de que os meios magnéticos vêm paulatinamente tomando o posto do papel, como suporte de informações. Devido à inerente natureza volátil do meio e à incomensurável quantidade de informações transitadas diuturnamente, não constitui apenas novo alicerce das transações tradicionais, mas, principalmente, como instituidor de novas modalidades contratuais, sejam civis ou mercantis.[1]
Um primeiro ponto a ser salientado com relação aos contratos telemáticos é a permissão, nos termos do Código Civil, para que de fato sejam celebrados por meio eletrônico, a não ser nos casos em que o diploma legal exija forma solene para que o ato produza seus efeitos jurídicos. Assim, esse tipo de contratação se encontra regido pelas disposições gerais do Código Civil, do artigo 421 ao 480, além do 481 ao 853 (que encerram as várias espécies de contratos), e pelas leis extravagantes.
Nada obsta, além disso, à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos firmados eletronicamente. Por mais que o contrato se trate de civil ou comercial, o consumidor pode, de fato, eleger a forma como se inserirá na relação de consumo (podendo optar por realizar suas compras via e-commerce, por exemplo).
A formação dos contratos eletrônicos e a incidência dos direitos do consumidor
Tendo em vista que, com relação aos contratos eletrônicos, também há a prevalência do princípio da ausência de solenidade, previsto no artigo 107 do Código Civil, não há grandes peculiaridades quando se trata de sua formação em comparação com os contratos em geral, ou com os contratos consumeristas, especificamente.
A formação se inicia com a oferta, vinculatória por si só, enquanto declaração de vontade unilateral e receptícia. Por meio dela, o proponente já manifesta a sua vontade de contratar, assim como sob quais condições está disposto a fazê-lo. A obrigatoriedade da oferta, sua força vinculatória, decorre da lei, como está expresso no artigo 427 do Código Civil: A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio ou das circunstâncias do caso.
Quando o contrato possui natureza consumerista, ainda, o conceito de “oferta” se amplia, com a finalidade de proteger o consumidor:
Em atenção ao alargamento do conceito de oferta, previsto nas Leis nºs 8.078/1990 e 10.406/2002, aplicável às relações jurídicas ocorridas em meio eletrônico [...], qualquer apresentação de produtos realizada, v.g., em uma homepage, é considerada pela legislação vigente oferta vinculatória. Destarte [...] qualquer manifestação realizada por fornecedor, seja de produtos ou de serviços, torna-se oferta contratual vinculatória no ordenamento jurídico brasileiro, devendo integrar os termos do contrato a ser celebrado. [2]
Nos termos do artigo 429 do Código Civil, e também em consonância com o disposto no artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor, caso o fornecedor se recuse a cumprir a oferta feita, inclusive por meio eletrônico, essa recusa leva a que o consumidor adquira o direito de, alternativamente: a) exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; b) aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; c) rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, assegurada a reparação de perdas e danos.
O Código de Defesa do Consumidor classifica os contratos de adesão como aqueles “cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo” (artigo 54 do CDC). Com a dinamização do processo de compra e venda eletrônico por meio da internet, muitos problemas já trazidos por esse tipo de contrato são potencializados, na medida em que não há negociação prévia entre fornecedor e consumidor, sendo que este último geralmente se limita a aderir às cláusulas estabelecidas de maneirda rígida, por meio do preenchimento de dados cadatrais.
Desta forma, inevitável que a situação de fragilidade do consumidor se agrave em função da facilidade com que se adere, muitas vezes a cláusulas abusivas e voltadas a aumentar o lucro e o volume de vendas das empresas. Como leciona Salgarelli:
Da mesma maneira que nos contratos tradicionais, as cláusulas abusivas estão presentes em imensa gama de contratos eletrônicos e devem ser, de igual forma, coibidas e nulas. Aqui, mais uma vez, deve o abuso praticado pelo forncedor ser atribuído à contratação em massa, pela via de adesão, a qual almeja ofertas em grande volume e lucros cada vez maiores, em detrimento da parte mais fraca da relação. [3]
É de se notar que nos contratos telemáticos as figuras do vendedor e do consumidor se encontram intactas, havendo peculiaridade apenas com relação à maneira pela qual se celebram esses negócios jurídicos. Perfeitamente aplicáveis, portanto, todas as disposições trazidas para amparar a situação de fragilidade do consumidor no CDC. O anteprojeto de lei que regula o comércio eletrônico (PL 1.589/99), em trâmite no Congresso, também possui disposições claras no sentido de que as normas e defesa e proteção do consumidor devem ser observadas ao se realizar o comércio eletrônico (artigo 13 do Projeto de Lei). Assim também está previsto no Projeto 4.906/01, em seu artigo 30.
O dever de informação e o princípio da boa-fé objetiva na regulação dos contratos eletrônicos
Muitos autores fazem referências específicas ao dever de informação e ao princípio da boa-fé objetiva quando tratam dos contratos celebrados em meio virtual. São, talvez, as disposições mais importantes do Código de Defesa do Consumidor a serem aplicadas nesse tipo de ambiente.
O dever de informação é reflexo do princípio da transparência, positivado pelo Código de Defesa do Consumidor no inciso III de seu artigo 6º e também no seu artigo 4º. A informação clara e precisa, quando se trata de contratos celebrados em meio virtual, é aquela que especifica o produto que está sendo vendido, e que não deixa quaisquer dúvidas quanto ao contrato que está sendo celebrado.
A maior questão, quando se vai defender em juízo o direito de informação do consumidor, é o fato de que as informações veiculadas eletronicamente são voláteis, sujeitas a ataques e intervenções, o que dificulta a prova da oferta. Entretanto, por mais que constituam meios atípicos, devem ser, sempre que possível, levados em consideração para contribuir na formação do livre convencimento motivado do juiz. De fato, como preceitua o artigo 332 do CPC: Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. O desafio do Judiciário, nesse ponto, é o de ampliar o direito básico do consumidor insculpido no inciso VIII, do artigo 6º, do CDC, facilitando efetivamente a defesa dos direitos por parte do consumidor.
Com relação à boa-fé objetiva, o princípio está sedimentado no Código de Defesa do Consumidor em vários de seus dispositivos. Os artigos 422, 113 e 187 desse diploma legal, por exemplo, deixam claro que os contratantes devem zelar pela probidade e pela boa-fé tanto na execução do contrato como em sua conclusão, sendo que o exercício de um direito que não resguarda esses princípios pode levar ao ilícito.
A doutrina aponta duas funções claras da boa-fé objetiva nas relações contratuais: a primeira é interpretativa e integrativa - utilizada principalmente como recurso que viabiliza a interpretação dos dispositivos contratuais, flexibilizando as vontades declaradas para delimitar os comportamentos dos contratantes, e também para solucionar os problemas referentes às lacunas que possam ocorrer na formação, no aperfeiçoamento ou na execução do contrato -, e a segunda é reguladora, que diz respeito ao modo como o contrato deve ser executado e concluído, e aos limites dos direitos e obrigações das partes na relação.
Cabe ressaltar que a boa-fé é essencial, especialmente com relação aos contratos eletrônicos, tendo em vista que “a segurança relativa do meio possibilita o vazamento de informações sigilosas, assim como a difusão dolosa de tais dados por seus detentores” (BACELAR, 2006, p.72).
Contrato entre ausentes ou entre presentes? Celebrado à distância ou não?
Discussão pertinente que se faz acerca desse tema, também, remete-nos ao artigo 428 do Código Civil, quanto à diferenciação entre os contratos celebrados entre presentes e entre ausentes. Pontes de Miranda, por exemplo, ressalta que a questão trazida pelo diploma legal faz referência à base “espácio-temporal” do conceito de “entre presentes” e “entre ausentes”. Assim, por mais que haja proximidade física entre os contratantes, pode ser que haja grande lapso temporal entre a proposta e a aceitação, de modo que também possa haver revogação válida por parte do proponente, nos termo do inciso IV do artigo 428. Logo, o que parece ser a solução para os problemas trazidos pela velocidade dos meios de telecomunicação, que muitas vezes tornam próximas pessoas extremamente distantes fisicamente, é o destaque que se dá para a noção temporal. Portanto, a dicotomia “entre presentes - entre ausentes” deve se atentar sempre para a relatividade espácio-temporal.
Tendo em vista essa discussão, perquire-se acerca da natureza dos contratos telemáticos: são eles celebrados entre presentes ou entre ausentes? São contratos celebrados à distância ou não?
O que parece ficar claro, tanto na doutrina alemã quanto na brasileira, é que há duas formas de celebrar o contrato por meio telemático: há alguns casos em que o debate é instantâneo, em tempo real, devendo o contrato ser considerado entre presentes; e há outros em que se contrata por e-mail, ou por visita à homepage das empresas, quando se deve considerar que houve celebração entre ausentes. Na primeira situação, o contrato se aperfeiçoa quando se dá a aceitação da oferta por parte de quem a recebeu (o que é denominado “oblato”). A partir desse momento, pode haver reparação por perdas danos.
Como ressalta Bacelar:
[...] as ofertas realizadas em internet Relay Chat, por se tratarem de situação de interatividade simultânea, devem ser consideradas como realizadas entre presentes, Já as ofertas realizadas por intermédio de correspondência eletrônica, devem ser consideradas inter absentes, tendo em vista o lapso temporal significativo, passível de ocorrência, entre a exteriorização da oferta e o seu conhecimento por parte do oblato. [4]
Quando o contrato se dá entre ausentes, por outro lado, há discussões acerca do momento em que se aperfeiçoa o contrato e em que as partes se vinculam a ele (caso em que o contrato telemático é celebrado por e-mail ou por visita a uma homepage, por exemplo). Nesses casos, pode ser que decorra um espaço de tempo significativo entre o momento em que o aceitante manifestou a sua vontade e aquele em que o proponente tomou conhecimento dela.
A teoria da cognição, ou da informação, afirma que o contrato se aperfeiçoa no momento em que o proponente toma conhecimento da manifestação de vontade do aceitante. A teoria da agnição, ou da declaração, por outro lado, considera três diferentes momentos, gerando três novas subteorias quanto ao momento de aperfeiçoamento do vínculo: a subteoria da declaração propriamente dita, a da expedição e a da recepção. A primeira subteoria criada pela agnição afirma que o contrato se aperfeiçoa quando o declarante redige a sua declaração de vontade, formulando a sua resposta à proposta que lhe foi feita. A segunda subteoria, da expedição, diz que há aperfeiçoamento quando o declarante busca externar a sua manifestação, enviando a carta, ou o e-mail, de modo a externar a declaração volitiva. Para a terceira concepção, o momento definitivo é aquele em que a declaração de vontade chega ao poder do proponente: não é necessário que ele tenha lido o e-mail ou a carta, mas que o meio responsável por veicular a declaração tenha chegado até ele.
O legislador brasileiro, tanto em 1916 quanto em 2002, optou por adotar a teoria da agnição, na subvertente da expedição, o que de fato parece mais lógico e natural. Deste modo, considera-se aperfeiçoado o contrato entre ausentes a partir do momento em que o aceitante faz o esforço de remeter a sua manifestação de vontade para o proponente, independentemente do momento em que ele o receba. A acepção fica clara no artigo 434 do Código Civil de 2002: Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida.
No contexto europeu, cada vez menos se preocupa com a caracterização da contratação telemática enquanto aquela que se dá entre ausentes ou entre presentes, mas desloca-se o eixo da discussão para a característica da distância: são contratos que se dão à distância ou não?
Como já visto, com a evolução das capacidades telemáticas, cada vez menos interessa saber se os indivíduos estão próximos ou não, espacialmente (presentes ou ausentes). Primeiramente porque, com relação ao direito do consumidor, pouco importa saber o momento em que se efetivou a contratação, tendo a vista a possibilidade de arrependimento no período de sete dias após o recebimento do produto ou serviço. Ademais, paulatinamente eliminam-se as diferenças temporais entre os momentos de efetivação dos contratos entre ausentes e daqueles entre presentes, pois, mesmo ausentes, a telemática tem permitido que os indivíduos contratem quase sempre em tempo real de comunicação, como no caso do cliente privado de uma empresa que recebe uma proposta por e-mail e logo já manifesta sua aderência às condições estabelecidas.
Conquanto seja inútil, como já visto, a tentativa recorrente de se aplicarem as categorias de contratação entre ausentes e entre presentes para a contratação telemática, ainda há diversos doutrinadores que insistem no esforço. O que se deve ter em mente, no entanto, é que os problemas que envolvem a determinação do momento em que os contratos eletrônicos se aperfeiçoam demonstram, mais do que a necessidade de um esforço doutrinário para solucioná-lo, uma inadequação dos próprios mecanismos trazidos pela realidade moderna do direito, criada num momento em que as tecnologias da comunicação ainda não se haviam desenvolvido. Não há formas típicas para classificar, por exemplo, os contratos eletrônicos entre ausentes.
Direito de arrependimento por parte do consumidor (artigo 49 do CDC)
Por mais que a distinção quanto ao momento em que se aperfeiçoa o contrato seja essencial no âmbito do direito civil ou mercantil, ela já não possui tanta importância quando nos reportamos ao direito do consumidor. Isto porque, como é sabido, o direito de arrependimento por parte do consumidor pode ser exercido no prazo de sete dias contados do momento de recebimento do produto ou serviço.
São distintos os contratos celebrados entre empresários, aos quais se aplica a legislação mercantil, daqueles celebrados entre fornecedores e compradores, aos quais se aplica a legislação consumerista. No caso dos contratos telemáticos, nada obsta a que o Código de Defesa do Consumidor seja integralmente aplicado quando a relação negocial se firma entre um fornecedor e um consumidor. Isso não significa, contudo, que essa aplicação seja suficiente, esgotando as inúmeras novidades jurídicas que se fazem presentes quando tratamos dos contratos celebrados por meio eletrônico.
Um ponto perquirido no tocante à compra e venda celebrada por meio eletrônico, é saber se pode ser considerada uma aquisição feita fora do estabelecimento comercial, para que se aplique o disposto no artigo 49 do CDC. Nesse sentido, o que causa confusão é o conceito de “estabelecimento comercial virtual”, e o argumento de que ao visitar a homepage do fornecedor e efetuar a compra, o consumidor estaria buscando o produto em uma espécie de estabelecimento comercial, e não possuiria, portanto, o direito ao período de reflexão e arrependimento (segundo o disposto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor).
Entretanto, o raciocínio parece ser equivocado, na medida em que a oferta veiculada por meio da internet é permanente e pública, possuindo caráter vinculante com relação ao proponente. Boa parte da doutrina, sensível ao espírito positivado no capítulo disciplinador da “oferta”, no CDC, consente em que o período de reflexão de sete dias, previsto no artigo 49 do diploma legal, aplica-se, de fato, aos contratos telemáticos de compra e venda.
Conforme muitos autores lecionam, basta analisar o espírito telológico da norma positivada no artigo 49 do CDC para notar o intuito de proteger a vulnerabilidade do consumidor, que não tem oportunidade de examinar o produto ou serviço pessoalmente, analisando suas qualidades e seus defeitos. A autora Rita Blum leciona que:
No caso das contratações feitas pela Internet, também se aplica o artigo 49 do, quando, no caso concreto, o consumidor só tem a oportunidade de avaliar o produto ou serviço, após sua entrga ou início da prestação de serviço, respectivamente. [5]