Hoje, dia 6/12/2012, parafraseando o conceito atribuído, pelos estudiosos de literatura, à obra de Clarice Lispector, vivi um momento de epifania, ou seja, uma situação que marca nossas vidas indelevelmente, de maneira que está pode ser dividida em antes e depois do momento de epifania.
Eram 16 horas, a Defensoria do Juizado Especial Cível do Consumidor e Idoso estava quase vazia, a secretária informou-me que não havia mais pessoas a serem atendidas. Eu e Guilherme conversávamos, esperando a hora de largar chegar. De repente, avisto um senhor bastante debilitado adentrando na sala e pergunto em que posso ajudá-lo, ele diz que precisa de um defensor. Sinto uma força e impulso irresistível, transcendente aos sentidos e convido-o para a sala de atendimento. Pergunto o que aconteceu, Seu Aguinaldo me entrega uma folha de papel com o título “Minha história”, nesta leio que ele foi a uma determinada ótica, querendo comprar duas lentes para seus óculos. A vendedora, que o atendeu, tentou vender uns óculos no valor de 2000 reais, todavia ele se negou a comprar, pois queria apenas lentes, porquanto já possuía armação. Não satisfeita, a vendedora tentou,de todas as formas convencê-lo a levar os óculos e, malograda em seu plano, utilizou uma retórica ornamentada de toda sorte, covarde, maldosa e de má-fé, para, por meio de sortilégios e estratagemas, descobrir o nome completo, número do cartão de crédito, etc de sua vítima. Ao fim, Seu Aguinaldo saiu da loja, mas não aceitou levar os óculos.
Um mês depois, idos de agosto, dez parcelas de 200 reais, perfazendo 2000 reais, começaram a ser cobradas a Seu Aguinaldo, como se este tivesse comprado os óculos. Ele entrou em contato com a ótica, a fim de que esta retirasse as cobranças, porém a loja enrolou, escusou-se da culpabilidade e disse que a empresa financiadora, a qual estava cobrando os valores que era a responsável; por seu turno, esta alegou que a culpa era da ótica e ficou este “jogo de pingue-pongue”, uma culpando a outra e, ao cabo, nada foi feito. Ademais, o velhinho descobriu que seu nome estava no SPC/SERASA. Ao fim do documento, o senhor carinhoso e probo arguia e pedia danos morais, tutela antecipada, retirada do seu nome da lista de devedores insolventes do SPC/SERASA e ressarcimento pelos transtornos no valor de 12.000 reais.
Após a leitura do texto, eu e Guilherme ficamos deslumbrados com o feitio belo, a coerência e a densidade dos argumentos elencados no documento “Minha história”. Interpelamos Seu Aguinaldo sobre quem, imaginamos que fosse um jurista, havia feito tal documento, elogiando este; o senhor disse que ele mesmo tinha feito, perguntei se ele tinha diploma superior, a resposta foi negativa. O velhinho contou- nos sua história de vida... Ele com 86 anos, tinha 7 filhos(2 formados), e 3 netos, era aposentado, tinha feito direito, há mais de 40 anos, na Faculdade de Direito do Recife, mas abandonou a faculdade para se casar e constituir família, começou a trabalhar numa fábrica, a fim de se sustentar. Sua esposa tem Mal de Alzheimer em estágio deveras avançado, destarte, ele contratou um acompanhante para esta que a auxilia das 7 da manhã às 19 horas todos os dias, disse que gastava muito com ela, inclusive com remédios e que sofria muito com a doença de sua esposa por amá-la. Lutei com toda força para não desabar em prantos, contudo, ao ouvir a história, não pude conter as lágrimas e o sofrimento que solapavam meu coração e minha mente; meu pai tem Mal de Parkinson, e não pude deixar de ver em Seu Aguinaldo, decerto, meu amado pai...
Um pouco recompostos, orientamo-lo, e fizemos questão de acompanhá-lo até a queixa (coisa que nunca é feita, somente a orientação é nosso dever, até por questões logísticas e pela quantidade de pessoas que são atendidas), eram quatro e dez. Às quatro e meia da tarde, a defensoria fechou. Todavia, algo de fraternal e imanente nos prendia a Seu Aguinaldo. Pegamos a ficha para ele, sentamos e ficamos a conversar, esperando a chamada para prestar a queixa. Perguntei ao educado e afável velhinho se tinha algo de que ele se arrependia em sua vida, imaginei, ingenuamente, que ele diria que se arrependia de não ter completado o ensino superior. Ledo engano! Mais uma vez ele me surpreendia ao dizer que não se arrependia de nada, que tudo o que procurou fazer na vida foi o certo e o bem, independente do mal dos outros. Disse que sabia que estava chegando ao fim de sua vida, ou melhor, sabia que estava perto da morte, mas deixaria este mundo feliz, deixá-lo-ia com a convicção de dever cumprido e de uma existência digna... Mais uma vez meu coração fisgava e eu lutava comigo mesmo para não desabar em prantos, toda emoção e choro, eu os guardei numa “caixinha” provisória em meu coração, a qual não tardaria em abrir para aflorar sentimentos diversos.
Passamos mais de quarenta minutos esperando para sermos chamados, neste ínterim, o velhinho nos dava aulas e lições de vida que ficarão guardadas em meu coração e em meu espírito para sempre, nem o mais longo dos séculos vai conseguir apagar aqueles momentos indescritíveis...
Perto das cinco, fomos chamados e passamos mais uma hora para prestar a queixa, haja vista que a escrevente era muito enrolada e confusa. Enquanto esta demorava a digitar a queixa, a caneta que Seu Aguinaldo usava para escrever em sua agenda a data da audiência estourou e melou-o todo de tinta preta. Ajudamo-lo a limpar-se, não posso esconder a raiva que senti pelo fato de a realidade, deveras, fazer aquele homem tão bom sofrer, mas raiva de quem? Talvez de Deus...Ao sabermos a data da audiência, fizemos questão de pedir a ele que passasse, no dia, na defensoria pública para nós e algum defensor irmos com ele.Inclusive, demos nossos celulares e pegamos o telefone dele, coisa que , pelo menos eu, nunca tinha feito em relação a um estranho, mas ele não era estranho, aquela figura de luz irradiava paz, amor e carinho contagiantes para todos os lados.
Às seis da noite, finalmente, terminamos, o velhinho pediu desculpas por ter feito nós perdemos tanto tempo com ele, dissemos que uma hora de nossas vidas era o mínimo que podíamos fazer, não era nada... nada perto do que aquele senhor bom e carinhoso nos fizera refletir e amadurecer na sua infinita e indescritível companhia(estas ultimas palavras não foram ditas, mas tenho a certeza que estavam em nossos corações).Nos despedimos, não sem antes eu dar um forte e fraterno abraço no velhinho e este nos agradecer pela atenção e acuidade para com ele. Guilherme, ainda o acompanhou até a parada de ônibus, isso mesmo, o senhor, malgrado ter 86 anos e morar em Piedade, saiu e iria voltar para seu lar de ônibus e sozinho, mas muito feliz e com a mesma serenidade de espírito dantes!
Quando entrei no carro, levei mais de meia hora para chegar em casa, não obstante o engarrafamento da volta, não me estressei, por que diabos hei de me estressar?(pensei) Confesso que não consegui mais me conter, o baú em meu coração estourou, chorei, rezei e solucei convulsivamente durante toda a volta, talvez por pena, talvez por amor, talvez por tristeza, talvez por saudade; saudade de Seu Aguinaldo, saudade do momento que não voltará nunca mais, saudade de tudo que aprendi, saudade de sua presença calorosa e reconfortante. A dialética metafísica do amor se externalizava e transcendia meu ser, enquanto ser finito, para o infinito, para além da razão, para além dos sentidos, para além do espírito, para além da descritibilidade da própria descrição, para além do infinito...
Há uma anedota que contam, não sei se verdadeira ou não, que um repórter teria dito, sobre os trabalhos de caridade e de doação para com o próximo feitos por Madre Tereza de Calcutá – “não faria isto nem por um milhão de reais!” A beata retrucou - “nem eu, É por amor!”.Adoro esta história, mesmo que não seja verídica, afinal, precisamos de utopias para viver e dar sentido ao nosso ato de existir.Tudo que fiz hoje à tarde não faria por dinheiro algum, só o fiz e faria novamente por amor.
Meu coração e espírito pediam para eu tentar descrever esta tarde magnífica que vivi, o texto trouxe um pouco de paz e acalentou minha alma, no sentido de que tentei descrever um pouco do que senti e aprendi. Seu Aguinaldo me fez confiar num futuro melhor, otimista, no qual as pessoas possam se amar mais e a ética da tolerância se sobreponha à intolerância, fez-me confiar na bondade das pessoas. Talvez, todos nós precisamos de um Seu Aguinaldo em nossas vidas para ter esperança e vontade de viver!
Dedico este texto, como sempre, ao amado mestre Jesus e ao sentimento da amizade, que nos faz construir castelos e sonhos, com os tijolos da fé, o concreto da humildade e o suor da perseverança. Ademais, dedico com carinho a Seu Aguinaldo, a todos os defensores públicos de bem, com os quais tenho o prazer de trabalhar (Drs. Rejane, Iracema e Maria Eugênia, lembro com carinho), e ao meu amigo Guilherme. Tudo que relato realmente aconteceu, e não consigo passar pelo dia de hoje sem relatar o que ocorreu, quando fico com algo “entalado na garganta”, tenho de desabafar. Desabafo com o meu leitor.