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Envelhecimento, ética e cidadania

01/11/2001 às 01:00
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Começo este artigo com uma indagação: _ Por quê nossa sociedade insiste em não perceber que envelheceu?

No direito de Família, tratamos do Divórcio, da União Estável, da União Monoparental, criamos um Estatuto para a criança e para o adolescente, tratamos dos reflexos do concubinato, mudamos a Adoção, extinguimos a diferença entre os filhos legítimos ou ilegítimos... porém, em nada avançamos no Direito do Idoso?! Por quê? Com o passar dos anos o velho deixa de fazer parte da família? Seus direitos têm apenas cunho previdenciário?

Obviamente, o idoso continua sendo parte da família, e deve ser estudado no campo do Direito que cuida desta Instituição. Seus direitos básicos não devem ser diferenciados, pois esta é uma das maiores formas de discriminação que pode ocorrer. Assim, se os direitos de uma pessoa não se modificam a medida que ela envelhece, a questão é de preservação da identidade, independente da idade que esta pessoa tenha. Vale dizer, que não se trata de paternalismo ou protecionismo, ao contrário, trata-se de manutenção de direitos, direitos estes que não devem ser expropriados de ninguém, apenas com base num critério etário, pois como se sabe, velhice não é sinônimo de incapacidade civil!

Infelizmente, não vamos tratar neste artigo da necessidade de resgate da cidadania do idoso, pois pelo que podemos observar, o idoso nunca teve realmente sua cidadania garantida. Trata-se portanto, de garantir a construção da cidadania do idoso. Construção sim! Porque o idoso nunca foi realmente considerado cidadão capaz de exercer plenamente sua autonomia...

José Geraldo de Brito Filomeno definiu muito bem o que vem a ser cidadania: " Poderíamos conceituar cidadania como a qualidade de todo ser humano, como destinatário final do bem comum de qualquer Estado, que o habilita a ver reconhecida toda gama de seus direitos individuais e sociais, mediante tutelas adequadas colocadas à disposição pelos organismos institucionalizados, bem como a prerrogativa de organizar-se para obter esses resultados ou acesso àqueles meios de proteção e defesa."

Com efeito, o conceito moderno de cidadania é muito mais amplo que nossa herança do latim "civis, is" que significa cidadão ou "civilis, e" que nos deu civil, (do cidadão ou da cidade). No início da civilização romana a única preocupação era o gozo dos direitos civis e políticos, ou seja, o status dos homens( não das mulheres) perante a sociedade política, e assim mesmo a chamada "liberdade de participação" era restrita principalmente as "cúrias" e "centúrias", que eram assembléias convocadas para a escolha dos antigos reis. No entanto, a autonomia, que sintetiza as garantias e direitos individuais e sociais por extensão, era-lhes totalmente desconhecida. Consequentemente, havia uma segregação absoluta entre os que detinham o chamado "status civitatis romanus" e os e as outras pessoas sem esse almejado privilégio.

Podemos, então, entender cidadania como o ato de comprometer-se com os valores universais da Liberdade e da Vida condicionados pela Igualdade. Este compromisso implica em reconhecer a humanidade como grupo social e considerar as relações humanas como relações de reciprocidade. (O sábio Socrátes, antecipando-se mais uma vez ao seu tempo, afirmava a quem lhe perguntasse: " Não sou de Atenas, nem da Grécia, mas do mundo.")

A cidadania pressupõe o desenvolvimento de valores éticos que se objetivam nas seguintes virtudes cívicas: solidariedade, tolerância, justiça e valentia cívica, engendradas na relação da vida pública e vida privada.

A legitimidade social destas virtudes significa a constituição de cidadãos que apoiam a construção de um mundo sócio político mais justo, onde a dominação e a submissão sejam superadas.

Cidadão é aquele que luta para que todos sejam cidadãos, é aquele que participa, que conquista a autonomia, que não é tutelado.

A cidadania não é uma interação primária e por isso é adquirida no convívio e precisa ser cultivada; supõe valores éticos e implica em redução de espaços individuais para oportunizar ao outro ocupar um espaço que é de todos.

A expressão cidadania está hoje em toda a parte, num certo sentido, isso é positivo porque demonstra que a expressão ganhou espaço na sociedade, mas por outro lado, existe a necessidade emergente de delimitar seu significado. Neste ponto, encontramos a ética!

Podemos então criar uma relação interessante: a ética, enquanto conjunto de princípios que norteiam o comportamento da sociedade, tem que absorver um novo paradigma em relação ao idoso. Ou seja, entre os princípios que regem a sociedade, deve existir o respeito ao idoso no sentido mais amplo que for possível. Esta "nova ética" será capaz de garantir o espaço social que o idoso merece, e que não lhe pode mais ser negado. Neste momento, seremos capazes de reconhecer a cidadania do Idoso, e a partir desta inserção social, abriremos nossos horizontes no sentido de nos prepararmos para o ciclo natural da vida e então, talvez, será mais fácil reconhecer que começamos a envelhecer no momento em que nascemos...

No Brasil, como em vários outros países do mundo, os idosos não exercem sua cidadania, ao contrário, na etapa da velhice existe um processo de expropriação de autonomia. Para Anthony Giddens a autonomia de ação está intrinsecamente relacionada à emancipação, que significa liberdade e condição de se relacionar com as pessoas de modo igualitário. Sendo assim, a autonomia é fundamental para o exercício da cidadania.

No caso específico do idoso a dimensão de liberdade e consequentemente, o exercício da cidadania, depende da criação de condições favoráveis à manutenção de seu poder de decisão, escolha e deliberação. Tais condições serão efetivadas quando a sociedade perceber que precisa mudar seu comportamento em relação ao envelhecimento...

... E se a ética é um conjunto de princípios que norteiam as ações humanas, ela é um instrumento capaz de garantir ao idoso o respeito aos direitos sociais, espaços de participação política e inserção social.

A ética é, portanto, uma reflexão crítica sobre a moralidade. Mas ela não é puramente teoria. A ética é um conjunto de princípios e disposições voltados para a ação, historicamente produzidos, cujo objetivo é balizar as ações humanas. Ela existe como uma referência para os seres humanos em sociedade, de modo tal que a sociedade possa se tornar cada vez mais humana.

Sob a forma de uma atitude diante da vida cotidiana, a ética pode e deve ser incorporada pelos indivíduos, capaz de julgar criticamente os apelos a-críticos da moral vigente. Mas a ética, tanto quanto a moral, não é um conjunto de verdades fixas, imutáveis. Ela se move, historicamente, se amplia e se adensa. Para entendermos como isso acontece na história da humanidade, basta lembrarmos que, um dia, a escravidão foi considerada " natural"!

No Brasil, temos motivos de sobra para nos preocuparmos com a ética. O fato é que em nosso país assistimos a uma degradação moral acelerada, principalmente na política.

O tipo de desenvolvimento econômico vigente no país tem gerado estruturalmente e sistematicamente situações práticas contrárias aos princípios éticos: gera desigualdades crescentes, gera injustiças, rompe laços de solidariedade, reduz ou extingue direitos, lança populações inteiras a condições de vida cada vez mais indignas. Ou seja, a classe dos excluídos está cada vez maior, dentre esses, temos os idosos. A sociedade brasileira está despreparada para receber a população crescente de idosos, afinal, o aumento da média de vida do brasileiro ainda não foi assimilado pela própria população.

Infelizmente, como afirma Simone de Beauvoir, a classe dominante adota a posição cômoda de não considerar os velhos como homens: "se lhe ouvíssemos a voz, seríamos obrigados a reconhecer que é uma voz humana." Na etapa da velhice, é comum observarmos que as pessoas que cercam o idoso, freqüentemente têm atitudes que contribuem para que ele vá perdendo a sua autonomia. Uma das piores formas de exclusão do idoso é seu isolamento em casa ou seu asilamento e na maioria das vezes a família, seguida pela sociedade e o Estado, aparece como principal responsável pela expropriação da autonomia do idoso.

A família, sob o pretexto de cuidar do bem estar do seu idoso, de protegê-lo e poupá-lo, alija-o das decisões e tira sua liberdade de escolha chegando a decidir o que ele deve comer e vestir.

Freqüentemente a família assume a administração dos bens do idoso, que podem ser muitos ou simplesmente a aposentadoria, desfaz sua casa e cria uma forma de dependência cada vez maior. Como conseqüência, o idoso torna-se um dependente, perde a autonomia e não controla nem mesmo seu próprio dinheiro. Ele passa a ter que justificar seus gastos, passa a ser controlado... alguns reagem a essa expropriação de autonomia, outros no entanto, sentem-se frágeis demais para mudar a situação e tomar novamente as rédeas da própria vida...

Portanto, assim como a ética não é um produto que possa ser elaborado, o envelhecimento não pode ser visto apenas como um tempo linear, segundo o qual contamos dias, meses e anos, mas o tempo interno em que recolhemos nossas experiências. Um tempo vivido. Um tempo que pertence a cada um e e´ intransferível.

O que ocorre é que muitas pessoas tem dificuldade em perceber que a velhice é mais que uma simples seqüência de anos e acontecimentos. A vida do idoso não se resume ao tempo de sua juventude, não se resume às suas lembranças. A vida do idoso continua e sua história pessoal se cruza com as histórias de outras pessoas, independente da idade. Assim, "o homem não está no tempo é o tempo que está no homem."

O tempo deve ser repensado quando falamos de princípios éticos e quando falamos de envelhecimento. Precisamos, enquanto estudiosos do direito de família, sair da concepção popular de tempo para podermos conceber que ele se comunica com o sujeito humano e com seus princípios éticos e morais. O tempo não é apenas um processo real, é também uma sucessão de eventos, há um futuro e um passado que estão em um estado de preexistência eterna e de sobrevivência.

O tempo, a medida que é vivido pelas pessoas, é capaz de modificar princípios éticos, a medida que as próprias pessoas sofrem mudanças...

Como já dissemos, a escravidão já foi considerada legal, moral e até ética. Mas o passado e o futuro retiram-se, movem-se para a subjetividade numa busca, não de sustentação real, ao contrário, de possibilidade de ser, que esteja de acordo com a natureza das pessoas e os sinais da época. Desta forma, a escravidão passou a ser vista com outros olhos; de legal, passou a tolerável, depois ilegal, até chegar a ser inconcebível nos dias atuais.

Podemos dizer que os princípios éticos surgem à medida que novas situações são colocadas diante da sociedade. Uma sociedade que não tem velhos, não se preocupa com eles! Mas à medida que essa sociedade envelhece, passa a perceber que uma conduta precisa ser estipulada... Os cidadãos envelheceram, mas continuam querendo exercer sua autonomia, no entanto, a sociedade (e a própria família), só enxerga o outro como velho e não a si própria.

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Neste sentido, enquanto a sociedade não se identificar com "envelhecida" ou "envelhescente" ela não conseguirá deixar de considerar o velho uma categoria à parte. Tanto é assim que quando se decide sobre o Estatuto Econômico do idoso, parece que eles pertencem a uma espécie estranha: os velhos não têm as mesmas necessidades nem os mesmos sentimentos dos outros homens e portanto, basta conceder-lhes uma miserável esmola para que a sociedade se sinta desobrigada em relação à eles.

Os economistas e legisladores credenciam essa cômoda ilusão quando deploram o peso que os " não ativos" representam para os "ativos" como se estes últimos não fossem futuros "não ativos" e como se não estivessem assegurando seu próprio futuro ao instituir o amparo aos idosos.

É chegada a hora da ética brasileira, enquanto conjunto de valores e princípios que norteiam as ações da sociedade, reconhecer a necessidade e a obrigação de respeito aos direitos dos idosos. Não há mais espaço para a omissão. Não há mais como deixar de entender que aquele homem que envelhece continua existindo e manifestando os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações de quando era jovem.

Por que os idosos escandalizam? Neles, o amor e o ciúme parecem odiosos ou ridículos, a sexualidade repugnante, a violência irrisória. Eles têm que dar o exemplo de todas as virtudes e de eterna serenidade? A serenidade não deve ser confundida com conformismo da infelicidade.

Segundo Simone de Beauvoir, a imagem que a sociedade propõem ao idoso é a do sábio aureolado de cabelos brancos, rico em experiência e venerável, que domina de muito alto a condição humana; se dela se afasta, cai no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam. De qualquer maneira, por sua virtude ou sua abjeção, o velho situa-se fora da humanidade. Pode-se, portanto, sem escrúpulo, recusar-lhe o mínimo julgado necessário para levar uma vida de homem.

É evidente que o exercício da cidadania pelo idoso, varia bastante de um país para o outro, em função de fatores como as tradições culturais (impondo um maior respeito aos mais idosos, como é o caso do Japão), as condições econômicas do país, que permitem um mais amplo e completo serviço de assistência social (caso da Suécia e da França). Mas o Brasil já é civilizado o suficiente para reconhecer a falta de ética que tem caracterizado o tratamento dado à velhice e suas conseqüências naturais.

A maneira com que se equaciona a questão previdenciária, também afeta a questão da cidadania do idoso. Uma melhor renda aos aposentados (os aposentados europeus, em geral, percebem uma renda significativamente elevada) pode garantir o exercício da autonomia, uma vez que eles não dependem de terceiros para manterem-se com dignidade. Neste sentido, o Brasil tem um marco inicial em relação à construção da cidadania na velhice: a Constituição Federal de 1988 desencadeou um debate que contou com a participação de aposentados empenhados na luta por suas reivindicações.

Inaugurou-se assim, por parte dos idosos, uma notória atitude de organização e reivindicação de direitos, que foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação e que lhes deu visibilidade social. A auto-organização é, portanto, essencial para a garantia de seus direitos, unidos eles podem exercer maior pressão à sociedade e ao Estado.

Segundo A. O. Hirschman o governo não se preocupa com a saída maciça da política, pelo contrário, a indiferença dos cidadãos lhe é interessante, pois sair da política, ou seja, não exercer sua cidadania e seu direito de escolha, significa uma aceitação indireta do tipo de governabilidade. Somente o próprio cidadão se prejudica quando não exerce sua cidadania.

Envelhecimento, Cidadania e Ética; o encontro dessas vertentes me remete a uma única palavra: RESPEITO!

Falar de envelhecimento é falar da vida, do natural processo de viver, iniciado com o nascer biológico, a partir do qual nos tornamos todos envelhescentes. Esse é o curso natural da existência humana.

A ONU estabelece como critério para o envelhecimento, no decorrer do curso cronológico da vida, o ingresso nos 60 anos. No entanto a velhice é um processo individual.

O maior empecilho em relação ao reconhecimento da identidade-cidadã na velhice é que o Brasil ainda não percebeu que não é mais "o país do futuro", de vinte ou trinta anos atrás. Nessa época, a expectativa de vida era relativamente pequena, em virtude das péssimas condições sanitárias, de falta quase que total de saneamento público, da saúde pública extremamente deficiente, da desinformação, do atraso na medicina, das altíssimas taxas de natalidade. A expectativa de vida nas grandes cidades, dotadas de melhores recursos e geralmente com melhor infra-estrutura sanitária e melhor rede hospitalar, mal se avizinhava dos sessenta anos de idade, sendo que, concomitantemente, em alguns lugares mais atrasados e mais pobres, notadamente no Nordeste, essa expectativa situava-se abaixo dos quarenta anos de idade. Nessas condições, facilmente se compreende que não houvesse, em nosso País, ao contrário de vários países do chamado Primeiro Mundo (cuja população há muito já se encontra envelhecida), grandes preocupações com as pessoas idosas, exceto no que se refere à tradicional questão previdenciária, voltando-se as atenções, principalmente, para as pessoas mais jovens, ainda em condições de produzir em sua máxima capacidade.

No entanto, esse panorama mudou! E diversos fatores que contribuíram para essa mudança, tais como o desenvolvimento da medicina, com a descoberta da cura ou da prevenção de várias doenças antes mortais, a expansão dos serviços básicos de saneamento a uma maior faixa da população, a melhoria das condições no serviço de saúde pública (embora ainda muito abaixo do desejável), a melhoria das condições de higiene, a adoção de campanhas de informação e a redução das taxas de natalidade. Mas, foge ao âmbito deste pequeno trabalho a análise de como se deu a contribuição de cada um desses fatores mencionados ou mesmo qual deles teve maior importância. O que nos interessa é constatar que, como conseqüência imediata de todos esses elementos apontados, o Brasil deixou de ser um País com imensa predominância de jovens!

De fato, a redução dos nascimentos e o aumento espantoso da expectativa de vida média, fizeram com que a idade média da população brasileira desse um grande salto, ao ponto de se poder apontar, como fez Wladimir Martinez, que "o fato de as pessoas estarem vivendo mais é o dado demográfico e sociológico mais importante do final do século XX"

O grande problema é que não estava o Brasil preparado para as conseqüências desse súbito aumento nas expectativas de vida, que fez surgir uma geração de pessoas velhas, ainda aptas a trabalhar em uma idade na qual, até então, normalmente se esperava que já estivessem mortas ou sem qualquer condição para o trabalho, mas para as quais não havia qualquer vaga de trabalho disponível. E mais, essas pessoas surgiram em grande número, provocando aumento geométrico nos gastos necessários para que fossem amparadas pela previdência social.

Em paralelo, outros fatores, que não podem ser desprezados, contribuíram sobremaneira para o agravamento do problema. Em primeiro lugar, a vida longeva expõe de modo mais cruel e acentuado a fragilidade dos mais idosos, revelando-os incapazes de se defender e de se manter com suas próprias forças e tornando-os excessivamente dependentes da família, que com isso lhes vai perdendo o respeito. Em segundo lugar, o inacreditável progresso tecnológico dos últimos anos fez com que fosse desprezada, em sua maioria, a experiência acumulada pelos mais velhos ao longo de décadas e décadas de trabalho. Aquelas habilidades adquiridas na labuta diária, que até então vinham sendo artesanalmente transmitidas de geração para geração, de pai para filho ou simplesmente para empregados mais novos da mesma empresa, de uma hora para outra não serviam para mais nada, eis que as decisões que antes dependiam da habilidade e dos segredos da profissão passaram a ser tomadas por um programa de computador, no mais das vezes limitando-se o trabalhador a apertar algum botão ou a realizar alguma outra tarefa igualmente mecânica e repetitiva. Com tudo isso, os idosos foram, cada vez mais numerosos, perderam o espaço social que lhe era atribuído. Em paralelo, como sói ser evidente, foi o idoso perdendo a sua auto-estima.

Além de tudo o que acima se apontou, a previdência social foi planejada e implementada para um país, como já mencionamos acima, essencialmente jovem, no qual havia várias pessoas jovens trabalhando e contribuindo para o sistema, em relação a cada um trabalhador que, atingindo a idade legal, vinha a se aposentar. Nas condições em que a nossa previdência foi implementada, inicialmente teve condições de sobreviver ao desvio de suas receitas para outras finalidades, aos ataques de pessoas mal intencionadas que durante anos assaltaram os cofres públicos, criminosamente desviando os recursos previdenciários. Só que, com o já mencionado envelhecimento da população, a situação rapidamente se inverteu, por isso que agora temos, aproximadamente, duas pessoas trabalhando para cada uma que, aposentada, percebe os benefícios previdenciários, enquanto continua o próprio governo federal a desviar os recursos previdenciários para outras finalidades. O resultado desta total falta de ética política só poderia ser o da total falência no nosso sistema previdenciário, como ora acontece, sendo que os principais reflexos – e aqui fazemos a ligação do tema com o assunto do nosso trabalho – se fazem sentir exatamente quanto aos idosos, a quem só é possível destinar uma pensão de valor geralmente miserável e sem possibilidades de lhes estender outros e maiores benefícios.

Com uma aposentadoria insuficiente, a grande maioria dos idosos brasileiros torna-se dependente dos "favores" (ou reconhecimento, o que é raro!) de seus familiares. Essa dependência financeira é mais uma contribuição para a perda da autonomia na velhice. E mesmo que o Código Civil Brasileiro estabeleça, no artigo 397, que o direito à prestação alimentar é recíproco entre pais e filhos, a família (e porque não dizer a sociedade), não reconhece que o idoso tem o direito de ser sustentado quando seus vencimentos não são suficientes para uma vida digna. Mais uma vez, verifica-se a falta de ética no tratamento ao idoso. Se a família – célula mater da sociedade - não é ética em relação aos seus parentes envelhecidos, obviamente, a sociedade não será!

Precisamos de um conceito de cidadania multigeracional, em virtude do qual se convida a cada geração que dê forma ao mundo público, considerado sempre como um mundo contínuo, que existia antes do nascimento das gerações e seguirá existindo depois da morte. Os legados às gerações futuras são de responsabilidade coletiva dos cidadãos de hoje, e envolvem desde o capital natural, o meio ambiente, o capital físico, infra estrutura, instalações e equipamentos, o capital financeiro, poupança, o capital social, instituições e estruturas e o capital cultural, os valores, princípios e conceitos que se transmitem de uma geração a outra.

É preciso entender que se as pessoas tendem a envelhecer, em atividade ou não, com qualidade de vida ou não, é necessário voltar a preocupação para as necessidades delas. Assim, desde as normas de construção de edifícios e o transporte coletivo, passando pelos produtos e pelo lazer, tudo deve ser feito de modo que qualquer cidadão possa ter acesso. Não se pode codificar o exercício da cidadania! As pessoas idosas e também os deficientes físicos, devem ser incluídos na vida social e essa deve ser a preocupação básica da família, da sociedade e do Estado.

Outro fator que merece ser realçado, por sua importância, é questão cultural, vale dizer, precisamos urgentemente buscar uma mudança da mentalidade social. Em outras palavras, o que acontece é que a sociedade brasileira simplesmente não foi educada para prestar o devido respeito às pessoas idosas. A cultura do país não tem entre um de seus pilares a reverência aos seus antecessores, como acontece por exemplo no Japão, e ao mesmo tempo também não temos em nosso País a assistência estatal eficiente, como sói acontecer em países como a Alemanha e a Itália. Dois exemplos deixarão claro como a questão é, acima de tudo, cultural, sendo que a antropologia é capaz até mesmo de revelar algumas situações curiosas: os esquimós, durante algum tempo, adotaram uma solução radical, e só alimentavam seus velhos enquanto esses não atrapalhavam o deslocamento do grupo através das vastas paisagens geladas. Mas quando o velho ficava muito fraco para caminhar, era abandonado numa tempestade de neve ou sacrificado pelo próprio filho, em um rito cerimonial. Por outro lado, na antiga Escandinávia, se um ancião não mais conseguia trabalhar, comprovava a sua debilidade diante de um conselho da comunidade, e a partir daí lhe era garantido o direito de passar seis dias em cada uma das casas do grupo local, sendo que todos se revezavam para bem alimentá-lo e para tratá-lo como um hóspede importante. Para estes lados do novo mundo, contudo, o respeito aos idosos sempre foi menor. De fato, os estudos comprovam – e aqui mais uma vez se realça o fator cultural – que os idosos sempre foram mais respeitados no Japão e na Europa, e menos respeitados na América, em comparação com o resto do mundo.

Dessa forma, reiteramos que o Brasil precisa definir – e com urgência – uma conduta ética(tais palavras deveriam ser sinônimas, mas não são), desenvolvendo mecanismos de assistência ao idoso, sendo certo que tais mecanismos deverão se iniciar com uma ampla política de conscientização da população, em relação aos direitos da 3ª idade à uma velhice digna. Aliás, nas emissoras de televisão freqüentemente se vêem campanhas contra o trabalho infantil, contra a poluição das praias, contra o sexo sem preservativo. Não se discute, aqui – mesmo porque fugiria totalmente à temática desenvolvida – a importância de cada uma dessas campanhas. No entanto, não se pode deixar de questionar o seguinte: por que não é feita, também, uma campanha que esclareça a população sobre a necessidade do tratamento adequado aos idosos, que tente reduzir os índices de violência contra essas pessoas e, principalmente, que sirva para conscientizar os idosos que eles também têm direitos, que também são cidadãos como qualquer outro, e não cidadãos de segunda classe.

A construção da cidadania do idoso é fundamental para o desenvolvimento de um país mais justo. A ética, como já discutimos anteriormente, tem que agregar o princípio do respeito à autonomia dos que envelhecem. A sociedade tem que mudar seu comportamento em relação ao idoso, pois uma sociedade consciente dos direitos daqueles que envelhecem é capaz de mobilizar o Estado para regulamentar e garantir o espaço social reservado aos velhos e envelhescentes.

Neste ponto, temos que ressaltar que o Direito é um fenômeno eminentemente social, mas é certamente, um fenômeno inconcluso. Assim, nunca se pode dizer que o sistema jurídico de um povo está fechado. Sempre haverá necessidade de novas leis a regerem novos eventos sociais.

A cidadania do idoso pode ser considerada um dos maiores avanços a serem obtidos pela sociedade, não há como ignorar que o idoso precisa continuar exercendo suas escolhas e continuar sendo titular de direitos e deveres perante a sociedade. Sem embargo, temos que reconhecer o Direito Constitucional e o Direito Previdenciário têm ao menos levantado a questão do Direito do Idoso, mas infelizmente o Direito de Família não tem acompanhado tais avanços.

Percebemos então, um ciclo doentio causado pela omissão do Direito de Família, na questão do envelhecimento: a família moderna não é mais nuclear e portanto deixou de ter significado político ou social de grupo. Deixou de ser, igualmente, unidade econômica, que produzia para o próprio consumo. A economia doméstica foi praticamente eliminada pela economia de mercado, só se fala em coesão quando fundada em interesses materiais. Em conseqüência dessa evolução, a família moderna contrai-se e ganha novo sentido, mas não se anula como célula da sociedade. O Estado deve intervir à medida em que a família se modifica, para protegê-la e impedir que ela se desintegre. Se o estado intervêm, a família continua existindo. O reconhecimento da importância social da família induz o legislador a atribuir cunho imperativo à maioria dos preceitos do Direito de família, emprestando a vários destes princípios o caráter de ordem pública. Contudo, quando se trata do envelhecimento, o que se nota é a ausência do Estado... essa ausência provoca a crise da família, que não tem como cuidar dos seus integrantes envelhecidos. A aposentadoria é ínfima e não sustenta as necessidades básicas dos que aposentam. A saúde pública é um caos e por isso os planos privados de saúde têm mercado garantido e não sofrem com a concorrência estatal. No fim deste ciclo, percebe-se que o idoso fica a mercê da caridade alheia, seus direitos não são reconhecidos e sua autonomia é expropriada pela família que o mantém. O Estado o ignora como detentor de direitos e a família o desvaloriza enquanto a sociedade tenta livrar-se de qualquer obrigação, imputando ao Estado(fecha-se o ciclo) toda a responsabilidade que na verdade deveria ser dividida entre esses três pólos:

" I – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem estar e o direito à vida;

II – o processo de envelhecimento diz respeito á sociedade em geral, devendo ser objeto de conhecimento e informação para todos;"

Portanto podemos afirmar que o Estado, através do Direito, precisa reconhecer os novos paradigmas da sociedade. Afinal, a família não é mais só formada pelo casamento, ela adquiriu novas formas e tem agora integrantes que envelheceram e não morreram, ao contrário, continuam tentando assumir a plenitude de sua cidadania e lutando para preservar seu espaço social.

Cabe ao Direito brasileiro reconhecer que o idoso não é um cidadão de segunda classe, mas uma pessoa mais bem dotada cronologicamente. A sociedade e a família, consequentemente, precisam entender o envelhecimento de seus integrantes como uma evolução e não como um peso! Quando reconhecermos o potencial de nossos membros idosos, passaremos a lutar para que o Direito os reconheça como cidadãos. E finalmente, uma vez que os idosos tenham sua cidadania reconhecida e garantida, será possível dividir entre a Família, o Estado e a Sociedade, a responsabilidade e o prazer de cuidar daqueles que estão envelhecendo.

Quando estivermos neste grau de evolução, estaremos conquistando o nosso próprio espaço no futuro e resguardando a nós mesmos um envelhecimento digno.

Neste momento, poderemos nos identificar como uma sociedade ética, que reconhece todos os ciclos da vida e os preserva sem distinção. A criança, o adolescente, o adulto e o idoso têm o mesmo espaço social e o mesmo direito ao respeito, respeito esse entendido na sua forma mais ampla.

Enfim, no caso do segmento social dos idosos em nossa sociedade, a cidadania não tem que ser resgatada ou recuperada, tem que ser construída, uma vez que a população não chegou a vivenciar melhores condições de existência.

Trata-se, portanto de um processo evolutivo de construção dos direitos dos idosos a partir do acesso ao espaço público, fundamentado na consciência social(o reconhecimento desses direitos) e na liberdade de pensamento conjugadas à ação.

Segundo Miguel Reale "As normas éticas não envolvem apenas um juízo de valor sobre os comportamentos humanos, mas culminam na escolha de uma diretriz considerada obrigatória numa coletividade. Da tomada de posição axiológica resulta a imperatividade da via escolhida, a qual não representa assim mero resultado numa decisão, arbitrária, mas é a expressão de um complexo processo de opções valorativas, na qual se acha, mais ou menos condicionado, o poder que decide."

É imperativo, emprestando a expressão usada pelo mestre, que a sociedade passe a reconhecer o idoso como cidadão que é. A atribuição da identidade-cidadã do idoso é o único resultado possível entre as opções valorativas da sociedade. Não se permite mais a omissão em relação ao envelhecimento, suas conseqüências e suas necessidades.

E, se ainda vivemos em uma sociedade obcecada pela idéia do novo que desqualifica a memória e banaliza do velho... chegamos ao tempo da intolerância! Se queremos realmente proteger aquele que envelheceu, temos que assegurar que sua cidadania não diminui a medida que os anos passam. Temos que garantir que sua velhice será tratada com ética.

Concluo este artigo enfatizando que a velhice é uma construção cultural, cujo conceito está relacionado com época vivida (em 1900 a expectativa de vida era de 33.7 anos e um homem de 50 anos já era considerado velho) e por esse motivo, os valores éticos da sociedade têm que acompanhar a evolução dos tempos.

Não podemos continuar a ignorar que somos um país formado por quase 15% de cidadãos com mais de sessenta anos. Precisamos nos conscientizar que não somos mais um país de jovens, somos um país que está envelhecendo. Devemos nos apoderar desta realidade fática o quanto antes e assegurar nossa própria velhice, assegurando os direitos dos que já envelheceram.

A ética que foi negada aos idosos dos séculos passados, deve nortear o relacionamento entre a sociedade e os idosos deste início de século. Garantir os direitos dos que estão envelhecendo agora é um dever que não podemos passar para as gerações futuras, já adiamos o reconhecimento da cidadania do idoso por muito tempo, e se não podemos redimir os erros cometidos no passado, pelo menos podemos impedir que eles continuem a acontecer.


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REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 21ª edição. 1994.

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ZAJDSZNAJDER Luciano. Ser Ético, Rio de Janeiro: Gryphus, 1999.

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Sobre a autora
Pérola Melissa Vianna Braga

Advogada, professora universitária, mestre em Direito Civil pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Envelhecimento, ética e cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2389. Acesso em: 28 mar. 2024.

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