Este pretende esclarecer que há uma relevante relação de ordem cronológica entre dois dos requisitos necessários ao deferimento do auxílio-doença: a incapacidade e a carência.
Antes, porém, de tratarmos da questão central, importante delinear os aspectos que caracterizam esse benefício previdenciário.
O auxílio-doença é benefício previdenciário destinado a cobrir o risco social de incapacidade temporária para o exercício do trabalho[1]. Os requisitos para sua concessão estão previstos no caput do art. 59, da Lei 8.213/91, que diz o seguinte:
Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.
Da leitura do dispositivo legal transcrito é possível identificar os três elementos que devem estar reunidos para que ocorra a concessão do auxílio-doença, quais: a) a qualidade de segurado; b) o cumprimento do período de carência[2]; e c) a incapacidade para o desempenho do trabalho.
A qualidade de segurado é adquirida por meio da filiação, que corresponde ao ato que institui a relação entre o indivíduo e a previdência social[3]. Para os trabalhadores empregados, que são regidos pela CLT, e para o trabalhadores avulsos, a filiação prescinde de ato formal, bastando, respectivamente, a assinatura do contrato de trabalho ou o registro no sindicato ou órgão gestor de mão-de-obra. Os demais segurados obrigatórios e os segurados facultativos devem comprovar seus dados pessoais e outros elementos relativos à sua condição perante à Previdência Social.
A Previdência Social define incapacidade como “a impossibilidade do desempenho das funções específicas de uma atividade (ou ocupação), em consequência de alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente”.
Por último, encontramos o conceito de carência no art. 24 da Lei 8.213/91, que afirma tratar-se “número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício”.
Assim, constata a existência desses três elementos, via de regra, haverá direito à percepção do auxílio-doença. Em algumas hipóteses, entretanto, mesmo diante da reunião simultânea dos três requisitos referidos, não terá o indivíduo direito à concessão do benefício de auxílio-doença. Assim afirmamos tendo em vista que o legislador pátrio estabeleceu uma relevante relação cronológica entre os requisitos, de modo que, para a concessão do auxílio-doença, uns devem necessariamente surgir antes de outros.
A hipótese em que mais facilmente se observa a advertência feita no parágrafo anterior corresponde ao parágrafo único, do art. 59, da Lei de benefícios da Previdência Social, onde encontramos o seguinte texto normativo:
Não será devido auxílio-doença ao segurado que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social já portador da doença ou da lesão invocada como causa para o benefício, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.
O dispositivo transcrito afasta o direito ao auxílio-doença quando o indivíduo adquire a condição de segurado da Previdência Social já portador da incapacidade para o trabalho. Em outras palavras, a requisito relativo à condição de segurado deve ser anterior ao requisito incapacidade para o trabalho.
É importante notar que o parágrafo único do art. 59 fala em doença ou lesão pré-existente (“já portador da doença ou da lesão invocada como causa para o benefício”), e não em incapacidade. A pré-existência da doença ou da lesão, todavia, não afasta o direito ao benefício, conforme consta na segunda parte do dispositivo: “salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão”. Em síntese, haverá direito ao auxílio-doença desde que a incapacidade se apresente após a aquisição da condição de segurado. Essa máxima reduz a regra e a exceção presentes no parágrafo reproduzido a apenas uma regra, de fácil assimilação.
Feitas essas considerações, a questão central deste artigo diz respeito à relação entre os requisitos “incapacidade” e “carência”. Deve o cumprimento da carência necessariamente ocorrer antes do início da incapacidade para o trabalho? Dizendo de outra maneira, o estado de incapacidade deve invariavelmente ser precedido do cumprimento integral do período de carência? Ou, alternativamente, o cumprimento da carência pode ocorrer mesmo após a instalação do quadro incapacitante?
Os que aceitam que o cumprimento da carência por ocorrer mesmo depois da data de início da incapacidade argumentam que a única vedação presente na Lei de Benefícios corresponde à impossibilidade de concessão de auxílio-doença em função de moléstia pré-existente. Assim, diante da falta de proibição legal expressa, poderia o segurado continuar recolhendo as contribuições previdenciárias mesmo estando incapaz para o trabalho e, no momento em que lograsse integralizar a carência necessária, ser-lhe-ia concedido o auxílio-doença.
A tese exposta acima foi abarcada na Apelação Cível n.º 2009.71.99.005129-4/RS, julgada pela Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em que o voto vencedor apregoa:
Com efeito, da análise da documentação presente nos autos, em especial do documento de fl. 33, percebe-se que a Autarquia indeferiu o benefício porque considerou que a incapacidade da demandante era preexistente ao implemento da carência de 12 meses necessária para a concessão do auxílio-doença (DII fixada em 02-06-03, quando a demandante possuía apenas 09 contribuições).
Entretanto, a legislação veda que a incapacidade seja preexistente à filiação ao RGPS e não ao cumprimento do período de carência para a concessão do benefício por incapacidade (art. 59, parágrafo único da Lei n° 8.213/91).
Dessa forma, não havia impedimento para a concessão do auxílio-doença à autora na data do requerimento administrativo (06-08-04), uma vez que ela continuou a verter contribuições à Previdência Social, mesmo depois do início da incapacidade, vindo a cumprir com o período de carência. Por esse motivo, deve ser mantida a sentença, condenando-se o INSS ao pagamento das parcelas correspondentes ao benefício desde 06-08-04 até 03-09-08, quando, administrativamente, foi auxílio-doença, que havia sido implantado em razão da antecipação de tutela, convertido em aposentadoria por invalidez. [destaques não originais].
Fonte: D.E. de 10/11/2009
Os defensores da tese exposta acima apenas reconhecem uma relação cronológica relevante entre os requisitos “condição de segurado” e “incapacidade”.
Perfilhamos, todavia, o entendimento contrário. Cremos que a redação do caput do art. 59, da Lei 8.213, impõe a necessidade de cumprimento da carência antes de instalado o estado de incapacidade. É que o dispositivo legal citado diz o seguinte: “O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos”. A expressão “havendo cumprido” seguida por “ficar incapacitado” deixa claro que a incapacidade deve ser posterior ao integral cumprimento da carência. Não é lícito, portanto, que as contribuições recolhidas após a data de início da incapacidade sejam computadas para fins de carência.
A corrente de pensamento que ora defendemos foi encampada pela própria autarquia previdenciária, eis que o INSS, ao editar a Instrução Normativa n.º 45, de 06 de agosto de 2010, fez constar em seu art. 279, inciso II:
Art. 279. A análise do direito ao auxílio-doença, após parecer médico-pericial, deverá levar em consideração:
I - se a DID e a DII forem fixadas anteriormente à primeira contribuição, não caberá a concessão do benefício;
II - se a DID[4] for fixada anterior ou posteriormente à primeira contribuição e a DII[5] for fixada posteriormente à décima segunda contribuição, será devida a concessão do benefício, desde que atendidas as demais condições; e
III - se a DID for fixada anterior ou posteriormente à primeira contribuição e a DII for fixada anteriormente à décima segunda contribuição, não caberá a concessão do benefício, ressalvadas as hipóteses previstas no art. 280.
Parágrafo único. Havendo a perda da qualidade de segurado e fixada a DII após ter cumprido um terço da carência exigida, caberá a concessão do benefício se, somadas às anteriores, totalizarem, no mínimo, a carência definida para o benefício, observado o disposto no art. 85.
O segundo inciso transcrito afirma a necessidade de que a data de início da incapacidade (DII) seja fixada após o recolhimento da décima segunda contribuição para que haja direito ao auxílio-doença.
Assim, diante dos argumentos expostos, parece-nos correto exigir que o cumprimento do período de carência ocorra de forma integral antes da data de início da incapacidade.
Notas
[1] CF/88, art. 201: A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
[2] Exceção feita às hipóteses em que a carência é dispensada, nos termos do artigo 26, II, da Lei 8.213/91, assim redigido: Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes prestações: (...) II - auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social, for acometido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Previdência Social a cada três anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação, deficiência, ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado;
[3] Cf. Art 20, caput, do Decreto nº 3.048/99.
[4] Data de início da doença
[5] Data de início da incapacidade