“En conjunto, la visión de la naturaleza humana que ha ido evolucionando durante las cuatro últimas décadas ha cambiado sistemáticamente la explicación de lo que somos y por qué hacemos lo que hacemos.” Mahzarin Banaji
O direito representa o desenvolvimento de um conjunto de estratégias sócio-adaptativas, resultantes de um processo histórico-evolutivo como qualquer outro, que foi criando, através da interação existente entre fatores biológicos e culturais, um complexo desenho de normas de conduta e valores para solucionar problemas relacionados com a crescente complexidade da vida em grupo. Tais estratégias supõem a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando, modelando e separando, por uma via não conflitiva, os campos em que os interesses individuais devem ser válida e socialmente exercidos[1].
Esta forma de explicar o aparecimento do fenômeno jurídico sustenta que dispor de normas de conduta supõe uma vantagem adaptativa, com o qual a pergunta sobre por que criamos o direito, transforma-se na de que constituiu (ou que constitui) a vantagem seletiva ou adaptativa do direito. De não ser possível responder a esta questão, a presença do direito no universo do existir humano seguirá sendo um enigma, sempre aberto as mais disparatadas especulações acadêmicas.
Bem é verdade que um enfoque assim poderia ser qualificado de adaptacionista extremo. Talvez as normas do direito sejam, em sua origem, um subproduto de outras funções adaptativas desconhecidas sobre as que se apoiaram. Mas o certo é que, se as teorias, princípios, valores e normas jurídicas necessitam de determinados mecanismos cerebrais para ser processadas, elaboradas, compreendidas, obedecidas, seguidas e aplicadas, é preciso explicar qual a razão da existência de ditos mecanismos e como estes operam para gerar a cultura e para adaptar-se posteriormente a ela – ou seja, como operam, simultaneamente, ambos elementos causais do direito.
Assim que o problema do sentido e finalidade do direito conduz inevitavelmente à busca dos fundamentos antropológicos da natureza e da conduta humana. O direito e as normas jurídicas existem unicamente porque o homem, como o paradigma das espécies culturais, estabelece relações sociais. O ser humano como pressuposto, fundamento e sujeito de todo ordenamento jurídico, político e moral está orientado para a vida social: a presença, o reconhecimento e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno jurídico. Qualquer teoria, norma ou discurso que exclua, recuse ou elimine a participação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou restringe o fenômeno social como condição de nossa humanidade, porque aniquila o processo biológico que o gera[2].
Para entender a condição humana – o direito é parte dessa condição e a sua ideia (ideia de direito) é o resultado da ideia do homem – há que se compreender ao mesmo tempo a dinâmica, em conjunto, entre natureza humana e o mundo das representações culturais, superando a estendida crença de que o homem deve ser contemplado unicamente como um ser cultural sem instintos naturais ( que condicionam seu comportamento) e sem nenhuma história evolutiva.
E uma vez admitido que os homens vivem e se desenvolvem em sociedade não porque são anjos ou criaturas dotadas de uma alma imortal, senão porque são animais, resulta razoável inferir que a ideia do direito gerada a partir de uma moral de respeito mútuo emana da e está limitado pela natureza humana: de nossa faculdade para antecipar as conseqüências das ações, para fazer juízos imediatos sobre o que está moralmente bem ou mal e para eleger entre linhas de ação alternativas[3]. Nossas manifestações jurídicas não são coleções casuais de hábitos arbitrários. São expressões canalizadas de nossos instintos morais e sociais, ou seja, de uma série de predisposições ou tendências de base biológica para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno.
Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. O direito (e também a moral), mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizado na sociabilidade dos mamíferos, ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito na “passarela intersubjetiva” de nossas vidas e nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e auto-reflexão constituam uma característica singularmente humana.
Embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica com determinadas tendências e habilidades necessárias (a) para desenvolver uma bússola interna que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como as necessidades, desejos, emoções, intenções e crenças dos demais, (b) para conceber o mundo desde a perspectiva de outra pessoa, (c) para imaginar cenários futuros e fazer predições, (d) para sentir compaixão pela dor e o sofrimento dos demais, (e) para categorizar a conduta humana (própria e alheia), objetos e indivíduos em termos de valor (de favorável ou desfavorável, de bom ou mal) e (f) para aprender e transmitir, de forma acumulativa e renovada, esta categorização valorativa (a informação sobre o valor, positivo ou negativo, de condutas, objetos e indivíduos) através da aprovação ou rechaço social.
Aliás, esta capacidade para categorizar valorativamente a conduta própria e alheia e encerrar-se em um intercâmbio de juízos de aprovação e de reprovação até constituir uma nova fonte de emoções de prazer e desagrado (que sentimos ao colocar à prova uma conduta e as que sentimos ante a aceitação, o castigo ou o rechaço social da mesma) constitui um bom exemplo de como nossa constituição neurobiológica condiciona e restringe a criação, o desenvolvimento e a validez das normas de conduta, funcionando como condição de possibilidade da massiva produção normativa de nossa espécie e, ao mesmo tempo, de sua (relativa) independência material e natureza preditiva no que às nossas crenças, desejos, preferências e ações se refere.
Daí que o direito não é um fim em si mesmo, senão um instrumento ou artefato cultural, uma invenção humana, que deveríamos procurar modelar e utilizar inteligentemente para alcançar propósitos ético-políticos que vão mais além do próprio direito: um grau tolerável de liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, dessas três virtudes que compõem o núcleo duro, o conteúdo próprio da justiça e que, em seu conjunto, constituem diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional da própria condição humana (dignidade humana). Com o direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para instituir e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, assim como para justificar e controlar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer limites aos vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo ser humano.
O desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios relativos à convivência social e pela necessidade de inferir os estados mentais, de controlar e de predizer o comportamento dos indivíduos, isto é, de antecipar as consequências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação de vários indivíduos. Dito de outro modo, criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa natural tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem de nossas relações sociais. A própria ideia de justiça – no seu sentido apenas humano – sempre quis exprimir essa suprema axiologia da existência humana comunitária.
As normas jurídicas representam a perspectiva e os valores do grupo social como totalidade. Não são (as normas) meras regulações que atuam como uma espécie de polícia de trânsito com respeito à interação social; mais bem, são regras constitutivas que expressam e/ou criam de fato modelos comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem e castigos para os que as descumprem. Em palavras mais simples: a justiça, entanto um valor individual e relacional, parte de nossos instintos morais, embora tenha uma codificação social em forma de leis. Estas mudam mais rapidamente, mas sobre o substrato neurobiológico que estabelece o que é justo ou injusto.
Nesse sentido, uma explicação naturalista sobre a evolução do direito supõe que as normas de conduta (no caso, de natureza jurídica) representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade e necessidade de inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o comportamento social - isto é, plasmam publicamente não somente nossa capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sócio-cultural, nossas ações e interações sociais. A denominada “certeza jurídica”, por exemplo, pode ser entendida como uma solução sócio-cultural aos problemas adaptativos relacionados com a capacidade e necessidade de inferir e antecipar as ações dos membros do grupo e suas conseqüências.
Contudo, com a correlação entre normas jurídicas e natureza humana aparece um novo problema. Agora o grande interrogante será o de por que o homem vive em sociedade e se submete a normas, sociedade e normas que supõem limitações a sua liberdade como indivíduo. Pois bem, viver em sociedade é viver baixo normas e as normas se concebem, agora, como expressão ou prolongação da natureza humana - e não somente como sua limitação -, isto é, como artefatos culturais que expressam formas determinadas de condutas sócio-adaptativas, às quais valoramos, para aderir ou rechaçar, de forma automática e emocional – note-se que, por sua própria natureza, os valores não são produto da razão, senão dos sentimentos: como nossos valores morais nunca são emocionalmente neutros, a base última de todo valor é o desejo e a vontade, e não o conhecimento ou o saber; a consciência emocional é a base para tomar decisões com sentido e elaborar juízos morais.
Por outro lado, há um consenso entre os estudiosos do direito no sentido de que os sistemas jurídicos regulam o uso da violência na sociedade, monopolizam o uso da força física e costumam ser (ou, segundo as versões otimistas sobre a natureza humana, sempre são) opressivos ao impor os valores dos grupos dominantes. As características humanas da cooperação, da vulnerabilidade recíproca, da igualdade aproximada e do altruísmo apontam diretamente à necessidade de que as sociedades se dotem de normas que restrinjam a liberdade de seus membros através de certas proibições. Ademais, tais proibições, para que sejam eficazes, devem ir acompanhadas de sanções que, no caso do direito, serão institucionalizadas.
Tudo isso é certo, mas parece ser unicamente uma parte da história, já que os sistemas jurídicos têm também o cometido de abordar problemas relacionados com os vínculos sociais relacionais e, neste contexto, resolver os problemas decorrentes de uma existência humana essencialmente comunitária. Estes problemas surgem, precisamente, devido às características que associamos aos seres humanos tal como são. Em efeito, quando afirmamos que um grupo possui normas (éticas e/ou jurídicas), ao menos parte do que significamos é que o promédio de seus membros possuem crenças acerca do que se elege ou prefere justificadamente, consideram algumas regras de conduta como revestidas de autoridade e justificadas, algumas vezes criticam às pessoas e suas condutas por descumprimento das regras postas e se sentem motivadas, até certa medida, a escolher o preferível e a conformar-se com determinadas regras jurídicas, já por elas mesmas ou a causa do interesse na aprovação dos demais.
Então, qual é a razão das normas jurídicas? Qual é a explicação acerca de como é possível que tenhamos invariavelmente, enquanto espécie, regras respeitantes à maneira como devemos conduzir-nos?
A importância de tais regras para a vida social nos leva a conjeturar que as sociedades que sobrevivem contem com algum tipo de regras revestidas de consenso e/ou de autoridade e, portanto, com algum conceito tal como “é legalmente obrigatório que” ou, com relação a regras mais informais, “é moralmente obrigatório que”, ou ambas as coisas. Da mesma forma, do fato de que tais normas de comportamento sigam mantendo-se hoje em dia, parece igualmente razoável pressupor que a utilidade dos sistemas éticos e jurídicos deve haver desempenhado alguma função adaptativa e de que existem certos tipos de mecanismos evolutivos subjacentes às nossas normas de conduta.
De fato, as regras morais e jurídicas não haveriam tido lugar em absoluto se nosso mundo houvesse sido semelhante a um paraiso celestial, já que neste mundo seria impensável a ocorrência de atos considerados como imorais ou ilícitos. Muitas regras jurídicas (e morais) proíbem a realização de algo que alguém muito bem poderia sentir-se tentado a fazer e que seria injurioso para outra pessoa, mas, em uma paradisíaca “situação ideal” de convivência nunca se dariam estas condições e, em consequência, não existiriam normas de conduta (jurídicas ou morais). Tudo leva a crer que os sistemas normativos se criam com motivo da tensão surgida entre os interesses coletivos e individuais, sobretudo quando os interesses díspares tendem a macular a estabilidade dos vínculos sociais relacionais estabelecidos. Em outras palavras, um pré-requisito para o aparecimento de regras jurídicas é a existência de condições tais que as faça úteis, ainda que também é possível que algumas normas jurídicas se desenvolvam sem nenhuma função.
Este tipo de explicação das normas jurídicas poderia realizar-se mediante uma argumentação do tipo "sobrevivência do mais apto". Em épocas primitivas a sobrevivência, inclusive das sociedades, era algo precário. Para que uma sociedade (ou tribo) pudesse sobreviver era necessário que nela existisse certa estabilidade; a principal função das normas jurídicas é precisamente a de proporcionar esta estabilidade na forma de ordenar a convivência humana cada vez mais complexa. Mas isto não nos explica, contudo, o aparecimento de tais normas. Como, a partir de uma dada sociedade, foi possível passar de mecanismos desenvolvidos pela evolução a um nível individual ou grupal para a elaboração de sistemas jurídicos largamente compartilhados?
Para passar do nível individual ou grupal de comportamento para o nível social parece ser crucial entender a criação de regras de comportamento como o resultado de um processo horizontal de “transação” e “negociação” entre indivíduos. As relações sociais implicam negociações, exceto nos casos em que há um grande desequilíbrio de poderes. Nas origens dos sistemas normativos devem ter estado presentes, pelo menos em parte, negociações entre indivíduos inclinados a adotar, no seu próprio interesse, certas regras e disposições relativas ao comportamento social. Estas negociações provavelmente foram influenciadas pelos tipos de vínculos sociais relacionais estabelecidos entre os participantes e, finalmente, conduziram a um compromisso com relação a um determinado conjunto normativo cuja finalidade seria a de distribuir direitos e deveres reciprocamente negociados e/ou outorgados.
Por certo que esta concepção relativa à criação das regras de conduta só é possível se tomamos como premissa uma concepção de direito fundamentada, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem, ao conceber o direito como uma estratégia adaptativa, outorgamos, por meio de normas compartidas, direitos e deveres a todo o homem, com vistas a viabilizar nossos vínculos sociais relacionais e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que exista direitos e deveres que não foram outorgados se soluciona de uma maneira mais simples: todos os direitos e deveres, inclusive os denominados direitos humanos, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral de mútuo e recíproco respeito, gerada no seio de um microcosmo social (i.e., a família, o grupo, a tribo) e a partir do qual o conceito pode se universalizar como crença culturalmente construída e transmitida ( em uma espécie dotada da faculdade da linguagem). Não há, pois, direito ou dever que não seja outorgado para resolver os problemas recorrentes relacionados a como devemos conduzir-nos adequadamente na ecologia social existente[4].
Esta argumentação pode, também, ser completada por outra, já agora acudindo à psicologia humana, segundo a qual os indivíduos, diante da intrínseca necessidade de pertencer a um determinado grupo, tendem a abandonar as pautas de comportamento que são penalizadas e mantêm as pautas de conduta que são gratificantes. Desse modo, a possessão de normas jurídicas como uma pauta de conduta se segue da utilidade de possuir normas que tenderão a favorecer a cooperação e controlar a agressão no interior do grupo. Isto mostra como a criação de normas, o respeito às mesmas e a punição daqueles que infringem as regras da comunidade têm uma base natural e como a mente humana possui capacidades cognitivas especiais que lhe permitem distinguir entre colaboradores e trapaceiros. Mas quais são os verdadeiros benefícios ou a real utilidade que servem para justificar a possessão de normas jurídicas?
Em primeiro lugar, possuir crenças éticas é possuir um sistema de consignas para a ação que permite analisar ações alternativas em termos de aspectos favoráveis ou desfavoráveis. Se não contássemos com crenças tais como “a justiça é boa”, ou "se deve dizer a verdade e cumprir as promessas, exceto...", como guias, acabaríamos atuando à cegas ou, do contrário, teríamos que dedicar muito tempo à reflexão em cada caso particular. Não possuir crenças éticas de nenhum tipo ou não contar com tendências a ser guiados por tais crenças, seria igual que não contar com crenças gerais em absoluto ou não possuir nenhum padrão normativo de comportamento. O possuir algumas normas é, portanto, uma medida de economia essencial para o indivíduo, mesmo que estas nem sempre produzam soluções corretas em todas as circunstâncias.
Além disso, se a vida há de fazer-se tolerável, deve proporcionar algumas estratégias de segurança, estabilidade das relações sociais e proteção contra os ataques às condições fundamentais da existência individual. Deve existir previsibilidade e ordem dentro de um grupo social. Para proporcionar uma ordenada convivência humana devem existir regras revestidas de certa autoridade, sendo que essas regras são tanto mais eficazes quanto mais formal é o mecanismo de coação. Nesse sentido, as normas são úteis não somente como meio eficaz para tomada de decisões, senão também como um sistema eficiente de guias para a vida individual e coletiva.
Por outro lado, as normas jurídicas, ao proporcionar este tipo de mecanismo diretivo de condutas, prescrevem o papel que os indivíduos, grupos e instituições devem desempenhar em um determinado contexto histórico-social, uma vez que a inerente sociabilidade do ser humano conduz inevitavelmente e de forma direta a ter que lidar constantemente com os problemas decorrentes da interação e da reciprocidade interpessoal.
Estas parecem ser algumas das principais funções das normas jurídicas, qualquer que seja a sua natureza ou grau de imperatividade. Em todas as sociedades humanas existem normas para disciplinar a titularidade e o exercício de direitos, para assegurar o cumprimento de deveres, para viabilizar a coesão social e ampliar o conhecimento social entre os membros do grupo. Também se destinam a desenvolver nossa capacidade para cooperar e resolver conflitos sociais sem necessidade de recorrer a outras formas típicas de numerosas espécies animais como é a agressividade.
Em resumo, as normas jurídicas constituem a resposta que elaboramos, com os mecanismos psicológicos evolucionados de que dispomos, para solucionar os problemas relativos às exigências e contingências associadas à complexidade de nosso estilo de vida social. As transformações evolutivas do último período do gênero Homo modelaram nossas habilidades e motivações cognitivo-sociais que, por sua vez, favoreceram o surgimento de grupos cuja sobrevivência dependia sobremaneira da relação mútua entre o grau muito elevado de altruísmo/cooperação e a emergência da capacidade para reflexionar sobre nossas intenções e comportamentos, avaliá-los como bons ou maus, justos ou injustos, discernir entre o permitido, o proibido e o obrigatório, e, inspirados no sentido de dever e compromisso com relação aos demais, elaborar um conjunto normativo para predizer e controlar a conduta humana em benefício da comunidade.
Por conseguinte, a iniludível natureza humana serve para impor o que poderíamos chamar as “regras do jogo”, mas não o resultado final - pois este também se nutre da história e cultura humana. E o mais significativo desse tipo de aproximação naturalista concernente às normas jurídicas é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, certos valores de alto rango que se deduzem do caráter, do sentido e da função do direito para a convivência social. Dito de outro modo, de que a natureza humana não somente gera e delimita (não determina) as condições de possibilidade de nossas sociedades, das condutas ético-jurídicas e dos modelos socioculturais possíveis, senão que também, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais. Pese a seu enfoque não evolucionista, a Teoria da Justiça de John Rawls se baseia precisamente nesse suposto.
Para concluir, uma observação final. Em um determinado momento do filme O Show de Truman, um jornalista pergunta ao produtor: “Como é que Truman nunca chegou a suspeitar sequer qual era a verdadeira natureza do mundo em que vivia?”. Ao que o produtor responde: “Porque tendemos a aceitar a realidade do mundo que se apresenta a nossos olhos”. Quer dizer: aceitamos a realidade tal e como se nos aparece e não nos fazemos mais perguntas – no nosso caso, essa fração pasmosamente pequena do direito que nos ensinam.
É muito provável que essa seja a razão pela qual a maioria dos operadores do direito mostra uma propensão natural a rechaçar as explicações naturalistas/evolucionistas que não se ajustam as suas aprendidas crenças ou visão do mundo. Ao encontrarem-se enfrentados a esses fatos tendem automaticamente a reforçar suas arraigadas convicções e a ocultar os dados adversos “debaixo do tapete”. Mas as enormes implicações jurídicas da natureza humana nos recordam que podemos “ir mais além dos dogmas estabelecidos”, que a tendência a explicar os fenômenos modernos a partir de um conjunto de causas e condições igualmente modernas é deficiente e equivocada, e que nada (nem ninguém) nos obriga a aferrar-nos desesperadamente às categóricas posturas que negam o fato de que o direito adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo.
E o mais importante, que podemos encontrar sentido à evidência de que a natureza humana condiciona essencialmente o modo em que definimos nossas normas e valores, que não se trata tanto de distinguir entre fatos, normas e valores, dando por sentado a existência de reinos metafisicamente separados, senão de preferir uns fatos sobre outros tendo em conta nossas naturais restrições neurobiológicas e culturais. Somos antes de tudo animais, e tudo o que seja fazer uma enganosa abstração ou deliberada ocultação da dimensão natural do ser humano, sua natureza neurobiológica e sua origem evolutiva, é falso. É essencial e de uma profunda humildade intelectual reconhecê-lo, e neste sentido o programa naturalista iniciado por Charles Darwin tem muito que ensinar-nos.
Notas
[1] Ricoeur, P. Le Juste, Paris : Ed. Esprit, 1995.
[2] Maturana R. H.; Varela G. F. El árbol del conocimiento: las bases biológicas del entendimiento humano. Santiago de Chile: Plaza Editores, 2003.
[3] Ayala, F. The biological roots of morality. Biology and Philosophy. Netherlands, v. 2, n. 2, p. 235-252, 1987.
[4] Churchland, P. S. Braintrust: What Neuroscience Tells Us about Morality. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2011.