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Um panorama do direito fundamental à educação na Constituição Federal de 1988

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28/03/2013 às 15:58
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4 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO SOCIAL DO CIDADÃO

A proposta, no presente tópico, é pensar a educação – tema com consideráveis ramificações – enquanto direito social do cidadão.

Na visão de Maria Cristina de Brito Lima[34]:

A cidadania jurídica avulta de importância quando se passa a entender o direito como um conjunto de direitos e obrigações dos cidadãos e das pessoas jurídicas, que o Estado reconhece e assegura, tornando-se, portanto, imprescindível para a democracia o desenvolvimento crescente desse conceito de cidadania.

A percepção da cidadania como patamar cada vez mais relevante, dentro da noção de indivíduo que é verdadeiramente elemento participativo na sua comunidade, traz consigo discussões de grande monta, como o papel da pessoa humana e seu direito de exercer o livre arbítrio por meio da construção de bases sólidas, relacionadas diretamente à sua formação.

Como ensina Janete M. Lins de Azevedo[35]:

Em contraposição à noção de liberdade que informa a abordagem neoliberal e os postulados do individualismo, a teoria liberal moderna da cidadania apregoa que o bem-estar e a igualdade constituem-se em pré-requisitos indispensáveis ao exercício pleno da individualidade e da liberdade.

Um elemento de significativa relevância, dentro da noção de alcance do bem estar e da igualdade, é a educação, pelas consequências naturais que fazem parte do seu contexto de atuação.

A autora traz Marx à discussão, abordando a questão das políticas sociais:

Vale lembrar [...] o modo como o próprio Marx tratou a questão. Não há em sua obra uma preocupação particular com a análise das políticas sociais no capitalismo. Nela subjaz, entretanto, a intenção de encontrar os meios para realizar a mais ampla condição de igualdade e bem-estar dos seres humanos. Afinal, uma das maiores contribuições de Marx foi mostrar as raízes das desigualdades e da exploração inerentes às sociedades de classe. Foi por esta ótica, pois, que abordou as políticas sociais, de resto, quase inexistentes no seu tempo.[36]

Tomando como ponto de partida a reflexão sobre as nuances sociais da obra de Marx, é possível perceber o discurso de exclusão social que sempre permeou a vida humana (embora em cada momento histórico venha atrelado a determinados fatores) e a consequente reflexão acerca dos meios que podem proporcionar de maneira mais eficaz a tão almejada igualdade – dentre eles, a educação.

Dessa forma, coaduna-se com a afirmação de Pierre Toussaint Roy[37] de “que [o direito à educação] seja garantido a todos e todas por sua condição humana, não por algum mérito”, partindo-se da noção de isonomia que sempre deve fazer parte das relações humanas.

Estabelece Maria Cristina de Brito Lima[38] a ligação direta existente entre o direito à educação e o Estado Democrático de Direito:

Foi necessário que se articulasse o direito à educação com os princípios fundamentais do próprio Estado Brasileiro. E foi assim que a Constituição Brasileira de 1988 uniu o direito público subjetivo à educação a dois dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito: a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, esses princípios tendem a se concretizar com a observância dos objetivos fundamentais do Estado:

·      de construção de uma sociedade livre, justa e solidária;

·      de garantia do desenvolvimento nacional;

·      de erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais; e, por fim,

·      de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

De fato, os objetivos do Estado dialogam com a necessidade premente de ações no sentido de promovê-los com eficácia e de maneira que todos possam fruir das garantias impostas constitucionalmente.

Na mesma linha de raciocínio, Wilson Donizeti Liberati[39] apresenta sua contribuição:

É certo [...] que a cidadania é o fundamento basilar do Estado Democrático de Direito. É através dos atos de cidadania que o indivíduo vai interagir com a comunidade e, por conseguinte, receber do Estado a proteção de seus direitos. A cidadania, por seus atos, não é congênita; ela precisa ser aprendida e assimilada pela pessoa.

E é justamente com o escopo de formar um indivíduo apto a exercer seu papel de cidadão que a educação se justifica, inclusive a educação escolar, na medida em que a construção do conhecimento apresenta as bases da desenvoltura que esse sujeito de direito vai ter para lidar em sociedade, ciente de seus direitos e deveres.

Como bem lembra Pierre Toussaint Roy[40], “a educação não é um assunto só de professores, alunos, mães e pais de alunos, mas uma responsabilidade de toda a sociedade”.

Enquanto tema complexo que é, a educação realmente não diz respeito apenas à escola e ao Estado, mas à sociedade como um todo, parte importante na construção de um patamar mínimo e verídico de mudanças educacionais tão desejadas e imprescindíveis para a melhoria social.

As ponderações de Maria Cristina de Brito Lima[41] merecem destaque:

Não há dúvida de que, no Brasil, muitos dos direitos e garantias constitucionalmente tutelados não chegam a ser implementados, demonstrando-se crescente contradição, que deixa à margem centenas de brasileiros que não conseguem ter seus direitos mínimos de cidadania assegurados.

Porém, crê-se que alguns critérios existem e devem ser aplicados para que se possam concretizar esses direitos, implementando a qualidade de homem-cidadão, pois, sem educação, não há que se falar em cidadania.

Perceber a educação como estágio indispensável para a transformação efetiva do homem em cidadão faz-se mister em qualquer sociedade, especialmente em países em que um número extremamente significativo de pessoas vive sem a salvaguarda de seus direitos, não desfrutando da condição de cidadãos na acepção concreta da palavra.

José Carlos Estevão[42] traz uma faceta para a reflexão da profundidade que precisa alcançar o processo educacional, pois ao “ter a atitude de tratar um aluno como mero aluno, isto é, que não seja mais do que aluno, necessitando apenas de conhecimentos, corre-se o risco de ensinar alguém que não existe”.

Para compreender melhor o pensamento apresentado acima, vale trazer outro trecho que remonta à noção de cidadania na escola e de reconhecimento da alteridade:

[...] por mais importante que seja o conceito de classe social para o estudo da diferença e da desigualdade em educação (e que nos remete claramente para o problema da igualdade em educação como um problema redistributivo), haverá que ter presente que o social não pode reduzir-se à noção de classe e, por isso, haverá que ter em consideração outras variáveis como a raça, o género, a etnia, a religião, a orientação sexual, que são também causas de desigualdade, agora sobretudo (mas não só) pela via da falta de reconhecimento [invisibilidade] ou pela via de um reconhecimento falseado [estereótipos negativos] das diferenças[43].

O problema apresentado remete a questões antigas, mas que ainda são bastante vivenciadas. Verifica-se o processo de desigualdade social também no âmbito escolar, bem como os reflexos de outros elementos relacionados comumente à desigualdade (a exemplo da religião) alcançando a educação – tamanha é a sua complexidade.

A propósito dessa discussão, Maria Cristina de Brito Lima[44] estabelece uma ponte entre o tema da cidadania (sobre o prisma do imperioso tratamento igualitário) e a necessidade de implementar a educação como um dos elementos indispensáveis ao indivíduo, com um mínimo de destinação que pode ser tolerada, no que tange à vida de um cidadão, ao afirmar que, “na verdade, o mínimo existencial reflete o patamar ínfimo do dever estatal, ligado diretamente à sua própria manutenção, representando, doutra parte, a cidadania reivindicatória, com eficácia plena”.

Entrelaçando a discussão ora em foco com a do mínimo existencial, Maria Cristina de Brito Lima[45] assegura:

[...] ao tempo em que se tem firmado que o alcance da liberdade, em sua plenitude, só se dará ao homem que tenha tido acesso, pelo menos, ao núcleo essencial de seus direitos, insta trazer a lume que o mínimo existencial, como forma de o Estado possibilitar, em igualdade de condições, a conquista da própria liberdade, é um caminho que pode ser adotado.

Nesse sentido, a educação, como instrumento da liberdade, passa a integrar o núcleo essencial de direitos que conduzem à cidadania, conferindo-lhe um caráter libertário.

A educação, destarte, pode ser considerada um direito que permite ao indivíduo uma maior consciência de si e do mundo em que vive, proporcionando-lhe uma visão mais ampla da conjuntura na qual está inserido e, dessa forma, tendo a possibilidade real de exercer o papel de cidadão.

Para Marisa Timm Sari[46], “o ensino fundamental deverá garantir ao educando a aquisição de conhecimentos, habilidades e valores considerados essenciais à formação básica do cidadão [...]”.

Outrossim, a educação fundamental pode ser encarada como o suporte mínimo para uma formação cidadã do indivíduo, proporcionando conhecimento de mundo e a possibilidade de se reconhecer como parte integrante da sociedade (com as implicações que essa conclusão pode trazer – a exemplo das noções de direitos e deveres), além de oferecer as bases indispensáveis para que o indivíduo possa dar continuidade aos seus estudos.

Vale trazer à baila as palavras de José Carlos Estevão[47]:

De facto, o Estado continua a ser um instrumento necessário da justiça e o lugar por excelência do qual os cidadãos esperam justiça e um tratamento igualitário em todas as esferas do domínio social, independentemente do lugar que ocupam na estrutura social.

Compete então ao Estado, que se queira democrático, intervir no sentido de a sociedade se instituir como uma comunidade política adulta, contribuindo antes de mais nada para que ela seja justa, solidária e livre.

E neste aspecto o Estado deve ser forte e não remeter-se a uma posição minimalista, ou seja, reduzido à salvaguarda dos direitos individuais ou à defesa de uma justiça meramente processual, reguladora de conflitos contratuais, ou entendida apenas como garante da escolha individual sob as condições de um livre mercado.

Na verdade, quando tal acontece, a justiça emerge fundamentalmente como um subproduto do mercado, contribuindo, também ela, para a mercantilização do nosso mundo de vida quotidiano, transformando, ainda, o próprio bem-estar num dom que se oferece e não como um direito que possa reclamar-se. É por isso que, no actual cenário de realismo económico, alguns defendem a desformatação ou o empobrecimento da ideia de justiça social, devendo o Estado limitar-se quase só a satisfazer direitos sociais de baixa intensidade ou a dar assistência aos mais desfavorecidos.

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É interessante ressaltar o comentário acerca da necessidade de intervenção do Estado em momentos essenciais e para causas basilares, situação que configura um formato mais próximo do Estado do bem estar social, em detrimento da realidade de um estado minimalista que, em sociedades sem desenvolvimento humano, pode ser um grave problema para a implantação de uma realidade social de isonomia material.

A intervenção estatal, de fato, é de grande relevância para que a melhoria social possa ser efetivamente implementada, sendo necessário oferecer aos cidadãos condições mínimas de vida, para uma realidade de justiça e busca da igualdade.

Dando continuidade à linha de raciocínio de José Carlos Estevão[48], vale citar o trecho em seguida:

Em simultâneo com esta transformação do público e do sentido da própria democracia, o substrato material da cidadania tende igualmente a modificar-se, adquirindo um cunho igualmente mais privatista; ou seja, os direitos individuais tendem a ser interpretados de uma forma particular que aponta para a transformação do papel do cidadão em cliente ou consumidor, em que, portanto, o melhor cidadão será aquele que melhor se comporte de acordo com a deontologia do mercado, nomeadamente na esfera da educação.

Acerca dessa questão, vale lembrar que a noção de cidadania é deveras importante para um Estado Democrático de Direito e, destarte, prescinde toda e qualquer concepção mercantilista, tendo em vista seu caráter transindividual, perpassando por questões tão fundamentais do ser humano. Justamente por sua essência nitidamente social, a educação não deve ser aprisionada a uma ideia puramente mercadológica de um serviço a ser consumido, pois, nesses moldes, muito de indispensável quanto a questões de formação humana facilmente pode ser perdido.

Para Maria Cristina de Brito Lima[49], assegurar o direito à educação consiste em assegurar a possibilidade de gozar também das liberdades individuais, a exemplo da livre escolha da profissão, do lugar de trabalho e dos centros de formação. Como explica a autora:

Existem outros direitos que guardam obviamente as mesmas características do direito de liberdade, já que dele derivam. Cumpre, porém, destacar a educação como um deles, pois, sem ela, sequer se terá a compreensão do significado desse direito fundamental de liberdade[50].

A relação com o trabalho sempre aparece quando se trata da educação, pois o desenvolvimento pleno do indivíduo envolve diversas questões e, dentre elas, figura o âmbito profissional.

No que tange ao prisma ora em comento, para Maria de Lourdes Manzini Covre[51]:

[...] enquanto direito social do ‘cidadão’, diz respeito ao universo do consumo de um ‘bem’, o cultural, e é aquela que, aumentando-lhe as oportunidades de emprego, possibilita-lhe maior participação no consumo dos bens gerados sob a ‘sociedade tecnológica’. Neste caso, ela pode ser pensada como política social, pretensamente engrenada na dimensão do pleno emprego [...]. Serve, portanto, ao processo de legitimação, inserindo-se na ideologia do planejamento, enquanto fator reivindicável.

A educação, como um bem ao qual todo cidadão tem direito, termina por configurar, seguramente, um bem alcançado individualmente, mas que tem reflexos em dimensão social muito fortes, a exemplo da tentativa de alcançar o pleno emprego.

Muito interessante é o posicionamento de Dirley da Cunha Júnior ao afirmar que:

[...] o direito à educação não se restringe ao ensino fundamental. Alcança, outrossim, o ensino superior. [...] a garantia de liberdade de escolha profissional garante um direito de acesso ao ensino superior. Ou, noutro sentido, o direito ao ensino superior é pressuposto do direito fundamental de liberdade de escolha profissional, de modo que, sem aquele, este não pode desenvolver-se.[52]

Seguindo esse entendimento, ratifica-se o quão denso é o direito à educação e o quanto precisa ser efetivado para que seja possível verificar, na prática, os efeitos em termos de melhoria das condições de vida em sociedade.

O processo educacional, nessa perspectiva, não se resumiria a direito fundamental até completar a educação básica apenas. Essa visão é de extrema valia no intuito de entender a educação como um meio de promoção, de maneira mais eficaz, da cidadania, proporcionando ao indivíduo, dentre outras questões oportunamente comentadas nesse estudo, a liberdade material de escolha no exercício da liberdade profissional.

Registre-se que essas são algumas reflexões que podem ser levantadas acerca da matéria, que, pela própria natureza, é extremamente complexa e de inegável necessidade de materialização na sociedade brasileira.

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Sobre a autora
Vanessa Vieira Pessanha

Bacharela em Direito (UNIFACS). Bacharela e Licenciada em Letras Vernáculas (UFBA). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Faculdade Baiana de Direito). Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Doutoranda em Relações Sociais e Novos Direitos (UFBA). Advogada. Docente nas modalidades presencial e EaD (UNIFACS). Coordenadora dos cursos de Pós-graduação Lato Sensu das áreas de Educação e Comunicação (UNIFACS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESSANHA, Vanessa Vieira. Um panorama do direito fundamental à educação na Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3557, 28 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24050. Acesso em: 18 abr. 2024.

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