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Ensaio sobre a obra cinematográfica "Abril Despedaçado" sob o enfoque antropológico e jurídico

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A obra permite que o Direito fuja de seu dogmatismo, abrindo a interpretação de casos para seu enfoque zetético – mostrando, com isso, que há mais que leis no julgamento de uma questão.

Introdução

A trégua entre as famílias Breves e Ferreira, que há gerações mantêm uma sangrenta disputa pela posse de terras, está para terminar. O sangue estampado na camisa de Inácio, o filho mais velho recentemente assassinado, tornou-se amarelo, e agora cabe ao jovem Tonho vingar, sozinho, a morte do irmão. Vivendo no que restou da propriedade dos Breves, Tonho e o filho caçula, conhecido apenas como Menino, passam os dias a ajudar os pais na bolandeira, esmagando cana para fazer a rapadura que irão vender na cidade. A falta de perspectivas é alterada com a passagem de dois artistas circenses, Salustiano e Clara, que presenteiam o menino com um livro. Ideias novas tomam a cabeça de Pacu e vazam para Tonho, que apaixonou-se por Clara e, agora, jurado de morte pelos Ferreira, já começa a não ver mais sentido no que o rigoroso pai chama de honra da família. A história toma rumo diferente do que o destino preparara para Tonho por intermédio da família. É vingado Pacu, em vez do irmão mais velho e, pondo fim à sequência sangrenta de vinganças, Tonho foge par o litoral, deixando para trás sua terra. O trabalho posto fará uma breve análise de aspectos antropológicos na obra “Abril Despedaçado”. A Antropologia é a ciência mais simples de ser observada, pois explicita em seu conteúdo diversas atividades do homem, fazendo parte do cotidiano do ser humano, do estudo do seu passado e da comparação com outros modos de vida, com outras culturas.

O estudo antropológico contempla vários campos do saber, porque, estudando o homem, estuda-o por interiro e por suas produções, carecendo de uma grande sensibilidade do pesquisador e de um forte interesse em conhecer um pouco de outras produções culturais, bem como não levar consigo preconceitos.

Nesta curta produção textual, foi retrata uma visão simples da obra, procurando contextualizar com o momento histórico da narrativa e com fatores da atualidade. Vale ressaltar a importância do Direito e o paralelo que foi feito também no presente trabalho.

Para a execução deste trabalho científico, uma análise humana foi almejada, buscando mostrar a quem venha a lê-lo que há mais da Antropologia em nossas vidas do que se imagina e, no Direito, ainda mais. O ‘enfoque zetético’ para observar a vida é o que me propus a incentivar aqui, findando os dogmatismos.


Análise Antropológica

Aspectos Físicos

Observa-se na película um aspecto de pura busca pela sobrevivência. O processo claro pelo qual passam os personagens é de animalização. A animalização do homem é um fenômeno que pode ser abordado de diferentes maneiras, desde a consideração do homem que é animalizado por realizar atos não humanos até àqueles que são tratados pela sociedade como animais – realidade de exclusão social do sertanejo. Viver em um habitat ríspido, árido torna cada habitante daquela região um pouco animalesco, não tendo nem ao certo a sua própria sobrevivência. A sociedade, em sua maioria, não consegue observar a dificuldade nessas vidas, pois não tem o mínimo de alteridade, não se põe no lugar do próximo, observando o quão chocante é não ter a água para o próprio consumo; a comida para saciar a fome, e não a gula; as roupas para vestir-se simplesmente e não exibir-se como se fora sua vida um festival de moda. Na seca, nem mesmo o mais insensível ser humano consegue conter as lágrimas que logo desaparecem ao cair no solo infértil e seco. 

Quando o homem, livremente, animaliza-se pelos seus atos, é possível considerá-lo como um doente para si e para a sociedade. Fato visto na matança recíproca, luta sem fim, briga sem razão na qual, como duas cobras que mordem reciprocamente as caudas, vão se aniquilando. Dentro do reino animal, o homem é o menos independente de todos. Ele vive cercado de dependências subjetivas, de sentimento e de valores morais – como os pregados no cerne familiar dos personagens. Entendemos, pois, que, se o valor vital fosse a única medida de valor, seria preciso reconhecer que o homem seria um animal doente.

Biologicamente, o homem continua sendo um animal. Por um lado diminuído e doente, por outro aumentado em sua dignidade. A dignidade é o ponto principal da narrativa e tocaremos nessa temática posteriormente. A liberdade não é apenas um privilégio, mas uma prova disto. Resta-nos a indagação: Há liberdade quando se nasce predeterminado a matar e morrer? Podemos subir a escada do espírito, ou descer pela vertente de nossa animalidade frustrada, que definitivamente leva ao nada, à morte fria, seca como o chão da vila.

Aspectos Sociais

— “O meu nome é Severino, e não tenho outro de pia.  

Como há muitos Severinos,  que é santo de romaria,   deram então de me chamar  Severino de Maria, como há muitos Severinos com mães chamadas Maria,  fiquei sendo o da Maria  do finado Zacarias.”  

A sociedade citada na obra era conservadora, presa a preceitos éticos instituídos por seus antepassados, como a moral por trás da vingança, gerando o seu próprio Direito Natural, o consuetudo, estabelecido pelos que já se foram. A presença da ciência jurídica consuetudinária na obra é clara quando se fala: “Nessa casa, os mortos é que comandam os vivos.” As leis naturais que eram seguidas não foram criadas pelos atuais viventes da região, estes não tinham direito (aqui, cito o Direito Subjetivo) de projetar suas vidas, de fazer escolhas. Nasciam os indivíduos fadados a executarem as ríspidas leis. Escreve-se isso com prioridade quando se analisa o modo de vida daquelas pessoas. A sociedade influencia fortemente no Direito e é relevante citar a questão geográfica resumida por Pacu, citando que mora no “Riacho das almas, onde se tinha um riacho e ficaram só as almas. Em cima do chão e debaixo do sol.”

Há, em análise do fato social, uma despersonalização do ser humano, o humano pobre, sem posses, sem dinheiro, sem estudo, sem oportunidade na vida. Os tantos ‘severinos’ só têm de única, por vezes, a sua ‘Morte Severina’. Como narrado na literatura: O irmão das almas morre da ave-bala. O conflito por terras em ‘Abril Despedaçado’ é a amargura da existência humana no semiárido brasileiro; o sertanejo, rejeitado e sem quem vogue por ele só tem direito a sofrer a sua própria dor.

“A gente é que nem os bois: roda, roda, e não sai do lugar”, Pacu. A frase fala mais que milhares de teses ou artigos sobre a realidade desses homens. A sofreguidão relatada demonstra a estagnação social dos personagens. Eles não têm perspectivas de crescimento na vida, não aspiram a coisas maiores, à ascensão social. Não devemos culpá-los por isso, por não terem um espírito revolucionário; eles, simplesmente, não têm direito de refletir, sendo a sua vida uma constante luta pela sobrevivência, não lhes sobra espaço pensar em crescer conjuntamente. No filme, há a estagnação claramente descrita na sucessão de mortes. As mortes se justificavam em si mesmas, na sua própria hostilidade. Os personagens estavam presos àquela espiral de conflitos de consecutivas vinganças; em que deveriam, na verdade, unir-se para combater a seca e as demais dificuldades de sua terra. 

Aspectos Culturais 

A cultura do filme é bem ímpar, bem peculiar, assim como nosso Nordeste. Os hábitos dos homens daqui são bem característicos, não somente a rispidez no jeito, a coragem, a religiosidade e a vida, como se diz popularmente, “cabra macho”.

A produção artística é bem restrita, por conta do pouco contato com as artes europeias. A arte do sertanejo é sua música – cantada em algumas cenas; os quadros e fotos pintadas da lembrança dos parentes; os brinquedos simples das crianças, como o balanço e os ditados e citações populares, principalmente ditos por Pacu. Não é ausência de cultura ou de arte, mas sim uma forma diferente, uma arte singela, enrustida no dia a dia, indiretamente compilada pelos indivíduos e tão sutil em sua manifestação que, por vezes, é despercebida.

Um contato rápido da família dos Breves com a arte foi no momento do regalo recebido por Pacu em forma de Livro de Histórias. Em seguida, Menino e Tonho visitaram o circo, concretizando um dos poucos momentos de diversão do filme. A partir desse contato com uma cultura diferente que foi predominante na vida toda dos personagens principais, surge o símbolo da sereia, o sonho de viver no mar, representando uma fuga da realidade por meio do sonho com a água, a chuva que tardou a vir.

Analisando a cultura por meio de símbolos, vê-se a moenda como bom objeto de estudo. Aquela moenda representava o trabalho, a dificuldade da vida da família, a base econômica, a posição de líder do pai – patriarcalismo – e a submissão dos filhos, bem como o vício dos bois que, em determinado momento, rodam sem sair do lugar (Assim como todos ali, que estavam alienados, sem pensar, sem crescer como seres humanos).

Aspectos Econômicos.

A matriz econômica que sustenta a vida dos personagens é a cultura de Cana de Açúcar. Detêm eles um ‘roçado’ limitado e uma moenda rústica que utiliza o trabalho motor de bois para extrair o sumo da Cana. O ‘caldo de cana’ – como se diz na cultura popular – é levado para as caldeiras, onde é mexido, posto à fervura e, sendo dele, feita a rapadura.

A Rapadura é, ainda hoje, fonte de renda de inúmeras famílias no Sertão Nordestino, justamente por conta desse legado cultural. Mesmo com dificuldades, seguem esse trabalho árduo.

No filme, há um forte abalo nessa atividade, visto que uma Indústria domina chega à localidade onde se passa a história, gerando, assim, uma desvalorização do trabalho da pobre família: a queda no preço da Rapadura.

 Considerando que a base econômica é uma atividade agropastoril, a posse de terras é de grande importância para a manutenção desse sistema econômico e acaba por gerar o conflito apresentado – a luta entre as famílias por aquele chão mesmo sendo pouco fértil. A disparidade socioeconômica é claramente observada na comparação entre as duas famílias que se entrelaçam na sequência de mortes, sendo, até a atualidade, tema de discussão: a falta de oportunidade de trabalho no semiárido nordestino.

Fazendo uma breve contextualização; no Governo Lula, houve um início de uma política de incentivos econômicos para os sertanejos brasileiros a fim de oxigenar a liquidez do mercado, gerar melhorias na condição de vida desses agricultores e dar a eles poder de compra - ainda que pequeno. A política social ajudou e segue ajudando muito essas pessoas que têm nenhuma oportunidade de emprego.

Aspectos Políticos

A história se passa no contexto do sertão no início do século XX. Havia uma rede de manifestações sociais que envolviam esse cenário, dentre elas o Coronelismo. A posse de terras era algo definitivo para a questão de poder no interior brasileiro. ‘O chão’ tinha muito valor econômico e político, este é o fator central dos conflitos apresentados no filme.

Os coronéis eram detentores de uma autoridade inexplicável; comandavam o poder político e eram responsáveis por medidas que davam ou tiravam vidas: construção de reservatórios de água e geração de empregos ou perseguição com seus jagunços e desvio de verbas públicas que deveriam ser aplicadas em suas posses. Na figura de grupo social dominante, estava a família Ferreira, detentora de terras e, consequentemente, de poder político.

O prefeito da cidade em que transcorre a história é também comerciante. Esse posto mostra que o poder político no sertão, por vezes, confunde-se com o poder econômico ou, até mesmo, é utilizado aquele para se chegar a este.  

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Aspectos Familiares

De pronto, cita-se o Patriarcalismo presente no contexto e em todo o contexto histórico da época – início do século XX. A figura dos pais na família é altamente respeitada. A palavra deles é a lei. A presença deles gera respeito ao recinto. A sua memória é um pilar da base familiar e sua honra é o que é mais prezado na história. É nessa característica, que é mantida a sequência de mortes. Os pais não propõe uma trégua e, sim, seguem incentivando a vingança, movidos pelo ódio que se guarda e pela dor da perca de um ente querido no combate anterior.

A família regia a vida de todos os personagens. O âmbito familiar era também o espaço do trabalho, pois a mão de obra utilizada na produção era dos próprios familiares. O contexto familiar dominava, além da questão a econômica, a própria vida pessoal dos personagens (Fato visto quando “Menino” busca ler o livro que ganhara de presente e é repreendido pelos pais e quando Tonho vai para o circo, desobedecendo a critérios estabelecidos por seu pai). Vale ressaltar que os padrões em que viviam os pais eram obrigatórios aos filhos. A negação da leitura, da diversão e de outros rumos que poderiam se tomar na vida são exemplos diss. Os parentescos eram altamente respeitados. A moça que se relaciona, ao final, com “Tonho” era tomada como posse de seu Padrinho – o homem do circo -, devendo subordinação a ele.

“Meu pai me disse que a vida não tem nada de marcada e que o destino não é nada, levando a gente na vida.” - Fábio de Melo.

Assim deveria ter sido o discurso paterno.

O Direito sobre forte influência do que é estabelecido pelo núcleo familiar. Na ausência de um Poder Político forte, de uma força policial ou até mesmo de um Ordenamento Jurídico, a lei e a execução de penas são fixadas pelos representantes das famílias. A honra da família é, a todo custo, defendida e é, por ela, que vivem os personagens, matando por vingança e não fugindo do ‘destino’ estabelecido pelos antecessores.

Aspectos Religiosos 

Os aspectos religiosos no filme são vários. O sertão brasileiro é rico em manifestações religiosas e composto por pessoas de uma fé incrível. A Igreja Católica é entidade representativa forte devido à Colonização Portuguesa e o pouco contato dos habitantes ali presentes com outros tipos de crenças.

A vingança é o objetivo, o destino e a religião dos personagens. Dizem confiar no “Julgamento de Deus”, mas, pelas próprias mãos, instituem a pena de morte a cada final de um ciclo. Citam que “Deus só dá o que cada um pode carregar” e a morte em forma de vingança é o que cada novo integrante da família deveria carregar consigo.

A riqueza de ritos é impressionante no filme. As fotos dos familiares já mortos, ocupando a função de ‘intercessores no céu’ e bons exemplos. Os mortos, por meio da religião que se tinha, realmente, mandavam mais que os vivos naquele contexto. Os personagens das famílias rezavam pelos mortos à noite e mantinham enorme respeito a eles. Outro rito muito interessante é o Velório - tido até os dias atuais – que tinha peculiaridades: o assassino deveria comparecer e as choradeiras eram contratadas para chorar pela morte, rezar o terço (Outro rito) e entoar hinos para o morto. Após vingar-se, o indivíduo poria uma faixa preta em seu braço, também em forma de rito. Por fim, o rito mais visto e que tem maior simbologia no filme: a camisa com sangue. Quando alguém era morto, pegava-se sua camisa, ainda manchada de sangue, e a colocava exposta; assim, quando o ‘sangue amarelasse’, havia chegado a hora da vingança – também sendo dada uma trégua provisória, como no caso de Tonho que foi até a próxima Lua cheia.

A religião se confunde com a moral. Cada um tinha o ‘Direito’ de reclamar o sangue dos familiares e só se podia tirar o que havia sido tirado da família anteriormente: uma vida. Pacu cita brilhantemente: “A mãe pensa que mancha de sangue sai”. A frase possui alta complexidade de sentido. O menino, ainda que tivesse pouca idade, era o mais sábio do filme e revela que a vingança nunca sairá daquelas pessoas e que perder um parente, sentir a dor de um adeus eterno nunca deixará de marcar a família.

Findo o aspecto religioso, bem como a parte desenvolvida do trabalho com uma das minhas citações preferidas e que resume o motivo de todo o desgaste e dor que passaram as famílias do filme.

“Minha mãe me disse umas coisas Sobre os ódios do meu peito Disse que o ódio que se guarda Vai matando só quem sente”

Fábio de Melo


Conclusão

O estudo da Antropologia, bem como das demais propedêuticas no curso de Direito contribui vastamente para a minha formação como ser humano. Passei a analisar o mundo em que vivo de uma maneira menos dogmática, menos presa a conceitos rígidos e que, antes, eram por demais individualistas. As aulas e o material lido em questão no que foi apresentado foram de extrema importância para que o aluno pudesse se situar no ambiente em que sempre viveu e nunca se deu conta, vendo o convívio social em um enfoque em que se pense no outro.

A obra, para o Direito, também tem sua contribuição. No filme, é mostrada uma forma diferente de reger as relações intersubjetivas, com leis próprias, aplicação de justiça consoante tais leis e uma ausência de uma força coercitiva maior: sem presença do Estado e do Ordenamento Jurídico.

Vejamos: Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Hodiernamente, existindo um conflito entre duas partes, o Direito impõe que para solucionar o conflito, salvo, ainda, raras convenções arbitrais, se deve acionar a figura do Estado. Assim, é evitada uma Auto Tutela ou Auto Defesa: a justiça com as próprias mãos e segundo os moldes da consciência arbitrário, a morte por vingança a cada camisa manchada.

Posto isso, vê-se a importância da Ciência do Direito para assegurar a liberdade e proteger os membros da sociedade, assim como determinar seus deveres, evitando a arbitrariedade da aplicação da justiça - como se obsevou no filme. Ainda valendo ressaltar, que a obra permite que o Direito fuja de seu dogmatismo, abrindo a interpretação de casos para seu enfoque zetético – mostrando, com isso, que há mais que leis no julgamento de uma questão.

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Sobre o autor
Francisco Fleury Uchôa Santos Neto

Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS NETO, Francisco Fleury Uchôa. Ensaio sobre a obra cinematográfica "Abril Despedaçado" sob o enfoque antropológico e jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3579, 19 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24203. Acesso em: 16 abr. 2024.

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