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Concessão de uso especial de imóvel urbano

01/11/2001 às 01:00
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Com suposto amparo no art. 183 da Constituição Federal foi editada a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, nos seguintes termos:

Art. 1º - Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.

§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

Art. 2º - Nos imóveis de que trata o art. 1º, com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, que, até 30 de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

§ 2º Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

§ 3º A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados.

Art. 3º - Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1º e 2º também aos ocupantes, regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, da União, dos Estados, do distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento.

Art. 4º - No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1º e 2º em outro local.

Art. 5º - É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1º e 2º em outro local na hipótese de ocupação de imóvel:

I – de uso comum do povo;

II – destinado a projeto de urbanização;

III – de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;

IV – reservado à construção de represas e obras congêneres; ou

V - situado em via de comunicação.

Essa Medida Provisória estatuiu normas de efeito concreto, ao beneficiar com concessão de uso especial, para fins de moradia, aquele que tenha ocupado imóvel de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente, até 30 de junho de 2001 (art. 1º).

Na hipótese em que a ocupação for coletiva, por população de baixa renda, e abranger área superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados, não sendo possível a identificação dos terrenos ocupados pelo possuidor, a concessão será conferida de forma coletiva (art. 2º). É uma das formas de "legalização" de favelas e cortiços.

À essa concessão, que é gratuita e transmissível por herança e por ato inter vivos (art. 7º), têm direito os ocupantes inscritos de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, que esteja dentro do perímetro urbano (art. 3º).

A ocupação, geradora do direito de concessão especial de uso, poderá recair sobre bens dominicais do Poder Público, sobre os bens de uso comum do povo, sobre aqueles destinados ao projeto de urbanização, sobre os de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental, de proteção dos ecossistemas naturais, sobre os imóveis reservados à construção de represas, ou sobre vias de comunicação. Nessas hipóteses, é facultado ao Poder Público competente transferir o direito de concessão de uso para outra localidade (art. 5º).

Nunca se viu tamanha heresia jurídica nesta Medida Provisória, editada apressadamente nos estertores dessa espécie legislativa em extinção, pelo menos, em sua versão original, cujo limite era o céu. O legislador singular, por desconhecimento do direito como um todo, acabou por subverter a ordem jurídica vigente, afrontando princípios constitucionais imodificáveis até mesmo por emendas constitucionais, porque constituem cláusulas pétreas.

Para melhor compreensão da matéria convém transcrever o art. 183 e parágrafos da Constituição Federal, suposto fundamento do instrumento normativo editado pelo legislador palaciano:

Art. 183 – Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

O caput do art. 183 cuida de usucapião pro moradia. É norma auto-aplicável independendo de qualquer regulamentação. Todos os requisitos para aquisição do domínio já estão minudentemente enumerados no próprio texto da Carta Magna, quais sejam: a) que o interessado possua como sua a área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados; b) que essa posse seja mansa e pacífica, isto é, sem oposição, por cinco anos ininterruptos; c) que a área possuída seja utilizada para moradia do interessado ou de sua família; d) que o interessado não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Reunidos esses quatro requisitos, o interessado poderá adquirir o domínio da área possuída, o que o faz, através da ação de usucapião a ser intentada perante o juízo competente.

Só que o § 3º desse mesmo artigo 183, incorporando a doutrina secular, proíbe usucapião de imóvel público.

É por causa desse § 3º que o legislador buscou a figura da concessão de uso especial a título gratuito, procurando, ao que tudo indica, amparo no § 1º, que absolutamente nada instituiu ou criou, ao contrário do seu caput que, como já assinalado, criou a figura do usucapião pro moradia.

De fato, esse § 1º limita-se a declarar que a concessão de uso será conferida ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, evidentemente, observados os requisitos da lei da entidade pública competente. É uma mera declaração que impede o legislador infraconstitucional de discriminar o beneficiário da concessão em função do sexo ou do seu estado civil, sendo certo que esse texto constitucional não impõe, e nem poderia impor a gratuidade da concessão, sob pena de conflitar com o princípio federativo.

A concessão de uso de imóvel ou concessão de direito real de uso pertence à categoria de contrato administrativo. Assim sendo, cada entidade política tem legitimidade para dispor, com independência, sobre o destino de seus bens na forma da legislação própria. A Lei Orgânica do Município de São Paulo, por exemplo, exige para a outorga da concessão de direito real de uso a prévia autorização legislativa e concorrência, podendo esta ser dispensada por lei, quando o uso se destinar à concessionária de serviço público ou quando houver relevante interesse público e social, devidamente justificado (art. 112, §§ 1º e 2º).

No dizer do saudoso Hely Lopes Meirelles, concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica. Acrescenta que a concessão pode ser remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, mas deverá ser sempre precedida de autorização legal e, normalmente, de licitação para o contrato. Sua outorga não é nem discricionária nem precária, pois obedece a normas regulamentares e tem estabilidade relativa dos contratos administrativos, gerando direitos individuais e subjetivos para o concessionário, nos termos do ajuste (Direito administrativo brasileiro. São Paulo : Malheiros, 20. ed.,1995, p. 439). Segundo a definição dada pelo art. 7º do Decreto-lei nº 271/67, concessão de direito real de uso é o contrato pelo qual a Administração transfere a utilização remunerada ou gratuita de terreno público ao particular para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra exploração de interesse social. Na prática, é comum a Adminsitração Pública em geral efetuar concessão remunerada de seus bens, sob a equivocada denominação de locação, como que procurando amparo no direito privado (Código Civil, Lei de locações comerciais etc.), livrando-se das amarras do direito público, com o fito de conferir ao contrato maior flexibilidade.

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Não há dúvida, pois, que a matéria se insere no âmbito do Direito Administrativo, onde vigora o princípio da competência legislativa concorrente. A Medida Provisória sob exame representa um verdadeiro atentado às autonomias locais e regionais.. Por muito menos, a letra b do inciso I, do art. 17, da Lei nº 8.666/93, que permitia a doação de imóveis apenas a outro órgão ou entidade da administração direta, teve a sua eficácia suspensa, por decisão liminar do STF, relativamente aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em respeito ao princípio federativo (Adin nº 927-3/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10-11-1993).

Impor a concessão de uso a favor de posseiros de bens públicos municipais ou estaduais, a título gratuito, e sem observância das respectivas leis de regência da matéria, como está prescrito no art. 6º, está muito longe das normas gerais, que a União poderia editar com fundamento no § 1º do art. 24 da CF.

Essa Medida Provisória, flagrantemente inconstitucional, por dispor de bens pertencentes a outros entes da Federação e com total prescindência das leis da entidade política competente, na verdade, premia quem invadiu os imóveis públicos de uso comum do povo, ou, as áreas de mananciais ou de preservação ambiental etc.. Quem, por exemplo, construiu, ilegalmente e em detrimento da coletividade, um barracão para morar em determinado trecho final de uma via pública, aproveitando-se da leniência ou da falta de vontade política na manutenção da ordem pública, por quem esteja temporariamente no exercício do poder político, poderá ser presenteado com a concessão de uso gratuito de uma extensa e até desnecessária área de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, que nem todos trabalhadores honestos conseguiriam adquiri-la.

Não é espezinhando preceitos constitucionais, que asseguram a autonomia e a independência dos Estados e dos Municípios, ou desfigurando e subvertendo o instituto da concessão do direito real de uso, e nem sacramentando a política do fato consumado que irá resolver os graves problemas habitacionais, que atingem as metrópoles. O tamanho da área ilegalmente apossada, a ser regularizada pela pseuda concessão de uso especial, por si só, já peca pelo exagero. Soa como uma afronta aos milhares e milhares de trabalhadores humildes e decentes, que levam anos e anos para adquirir uma área bem mais modesta e nela edificar sua moradia, com esforço próprio.

Em que pese a boa intenção do legislador palaciano a crise que infelicita os moradores em condições subnormais não pode e nem deve ser debelada à custa de arranhadas na ordem jurídica que, amanhã, poderão causar o seu rompimento. Por mais nobre que seja a intenção do legislador, temos para nós que proteger aquele que comete atentados à ordem pública (esbulho de bens públicos ou invasão de áreas de mananciais, destinadas ao abastecimento de águas para a população em geral, etc) não se harmoniza com a noção de direito. Faz com que o honesto, o probo se sinta marginalizado pelos Poderes Públicos com todas as conseqüencias daí advindas.

Existe outra forma correta de investir no social, sem ferir as leis e a Constituição, e sem inverter os valores humanos. É a alocação maior de recursos financeiros na dotação orçamentária anual, destinados ao desenvolvimento de programas habitacionais para a população de baixa renda. Como o orçamento anual é aprovado pela Casa Legislativa, a implementação desse programa social estará sendo não só legitimada, como também, autorizada e desejada pela sociedade em geral. Ante a nossa realidade, caracterizada pela desproporção entre os recursos disponíveis e as necessidades coletivas a serem satisfeitas, cabe a cada governante saber eleger, corretamente, as prioridades e otimizar os recursos materiais e pessoais na execução das metas selecionadas. Mas, isso é tarefa para um estadista, muito difícil de ser encontrado entre os políticos da atualidade.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Concessão de uso especial de imóvel urbano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2421. Acesso em: 16 abr. 2024.

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