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Monteiro Lobato, Dostoiévski e a leitura no cárcere

21/04/2013 às 08:10
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Em Joinville (SC), o presidiário terá direito a reduzir o total de sua pena para cada livro lido no cárcere.

Uma manhã de um dia normal. Acordo, tomo meu café solúvel e prontamente me dirijo à Delegacia. No meu local de trabalho, com outra xícara de café na mão (acreditem: delegados de polícia, ao contrário do que se mostra em novelas, têm olheiras e bebem café o dia inteiro!) antes de começar a “produção criminal diária”, por força do hábito passo os olhos nas manchetes dos principais sites de notícia. Pelo gosto, e igualmente pela obrigação profissional, me concentro um pouco mais nos tópicos pautados na segurança pública brasileira. E assim, nesse hábito diário, lá vou eu, em meu computador, espiar vários sites nacionais (obs: ultimamente, me aventuro a dar uma olhadinha no site da CNN, para ver se a Coréia do Norte já disparou algum míssil, afinal isso também é uma questão de segurança). 

Confesso, caro leitor, que atualmente tais manchetes tornaram-se enfadonhas. Até me arrisco em dizer que ficaram “chatas”, ou seja, tediosas notícias sempre iguais: aumento de criminalidade nos grandes centros urbanos, homicídios praticados por jovens contra jovens, estupros (ainda que por ora, eu seja obrigado a reconhecer a nova modalidade tupiniquim de estupro coletivo), furtos, etc.  - Nada de novo no front! (citando a clássica obra de Erich Remarque publicada no início do século passado). Velhas notícias que se coadunam com sentimentos comuns sociais. Sejam eles produzidos pelo senso comum da ralé  (Jessé Souza) ou pelo senso comum douto (Pierre Bourdieu). Mas não podemos esquecer que é desse senso comum, que se constroem não apenas os imaginários sociais (o medo, por exemplo), mas também a formulação de políticas públicas e normativas como solução estatal na problemática da (in)segurança brasileira.

A título de aclaração, cito alguns desses sentimentos “modernos”: 

1) A exaustiva crença de que o recrudescimento da punição penal é a única salvaguarda da ordem e da segurança pública. Como exemplo: a nova discussão da maioridade penal (Ok! Essa discussão não é tão nova assim! Fazendo nesse ato um reexame de memória vejo que desde os tempos de criança venho escutando e me acostumando com tal arenga). Mas, enfim, dando continuidade,

2) A constante propaganda pública dos montantes financeiros destinados aos investimentos na área de segurança restringindo-se (equivocadamente, diga-se!) em compras de viaturas, armas, munições e coletes balísticos (se por muito tempo discutiu-se sobre os repasses financeiros do PRONASCI  aos municípios e estados brasileiros, agora, o assunto da moda é o novo caveirão sulafricano do Bope carioca exibido na Feira Internacional de Segurança e Defesa que está acontecendo nesse momento no Rio de Janeiro); 

3) E, “para não dizer, que não falei das flores” (Vandré), os intermináveis conflitos institucionais perpetrados pelas órgãos que compõem a persecução penal, principalmente quanto à discussão do limite de suas competências laborais (depois da PEC das Domésticas, a bola da vez é a matéria legislativa chamada de PEC da Legalidade  e sua campanhas institucionais). Amigo leitor! Antes de entrar fundamentalmente no tema proposto neste trabalho, permita-me aqui fazer um desafogo: é de impressionar como algumas instituições agem pretensiosamente como superegos sociais, ou seja, absolutos e únicos guardiões de um discurso punitivo (e centralizador) que vai, pelo menos retoricamente, de encalço a tudo aquilo que corrompe uma (pseudo e genérica) moral social (claro, que quem elege e categoriza essa “moral social” são elas próprias!). Resumindo: - São os moralistas! Como diz meu rebelde estagiário estudante de direito do 1º ano. Peço licença para novamente ilustrar esse texto com a pertinência de Geraldo Vandré: - Há soldados armados; amados ou não; quase todos perdidos, de armas na mão. 

Pois bem, nessa chata manhã (ainda com meia xícara de café nas mãos), entre discursos de aumento da reprimenda legal; propagandas de investimentos públicos em aparatos policiais; conflitos e egocentrismos institucionais, uma pequena manchete jornalística estampada em um jornal local me chamou atenção, principalmente pela originalidade da proposta constada, tão descolada das práticas comuns. Era ela: “Juiz propõe redução da pena para detentos do Presídio de Joinville que se dedicarem à leitura”. 

Explico: A iniciativa idealizada pelo Juiz da Vara de Execução Penal de Joinville (cidade ao norte de Santa Catarina) resume-se que, a partir de agora, o presidiário terá direito a reduzir o total de sua pena para cada livro lido no cárcere. É a concretização local do denominado instituto da remição penal, como bem previsto pelo artigo 126 da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984) e suas modificações produzidas pela recente lei n. 12.433/2011. Vale dizer que essa última acrescentou o direito à remição ao apenado que optar não apenas em exercer uma atividade laboral, mas igualmente, praqueles que desejam estudar, dentro ou fora do cárcere.

Ainda que a iniciativa local não seja inédita (lembrando que no ano passado a experiência já foi regulamentada nos presídios federais pela portaria 276/2012 do DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional) , mesmo assim tal atitude não deixa de ter o seu valor, pois nesse ato reconhece-se que a idéia da leitura, independente de sua natureza, é um fator coibidor do fenômeno da criminalidade. Além disso, o ato de ler é por óbvio uma ferramenta de instrução e amadurecimento pessoal. 

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Se analisarmos a genialidade dessa proposta em nível de discussão da política criminal preventiva, facilmente veríamos que tal medida encaixa-se naquilo que Valter Santim chamou de prevenção criminal primária, ou seja, o fornecimento de ações e serviços públicos de natureza não penais que evitam o surgimento de fatores criminógenos.  Consequentemente, a nosso ver, reconhece-se que a disposição da atividade de leitura aos presos é uma proposta sábia, pois contribui, não apenas como um instrumento preventivo ao fenômeno criminoso, mas também para o mais importante fim previsto na fundamentação da pena: a ressocialização social mediante a capacitação pessoal. 

 Mesmo que se reconheça o delicado momento da segurança pública brasileira onde a bandeira de ordem proposta pela incarceration mania (conforme denunciado pelo francês Loic Wacquant) é o mais fácil e econômico mote a ser seguido pelas políticas de segurança, qualquer iniciativa que vislumbre o contrário é vista (preconceituosamente, diga-se!) com certa desconfiança e descrédito. Infelizmente, prevalece o senso e a prática comum de que a punição pelo sofrimento, e não pela reeducação individual, é a única receita de controle. Mais crime e mais castigo, emprestando o eterno conto de Dostoiévski. Ou ainda: mais crime, e mais castigo ao corpo do indivíduo, emprestando a biopolítica e o poder disciplinar de Michel Foucault . 

Pensamento e práticas absolutamente equivocadas, basta ver alguns dados que aferem a criminalidade brasileira, e principalmente os altos índices da reincidência criminal. Segundo alguns estudos, para cada 10 condenados, 8 voltam a delinquir. Este fato, por si, já demonstra que os objetivos propostos na aplicação da pena não estão sendo alcançados como deveriam. Na nossa concepção, ainda se insiste em uma política pública (e jurídica) de segurança pública ultrapassada. Se a oferta de cultura e educação é um instrumento de coesão social, sua ausência significa uma tendência à anomia  (Durkheim) e ao conflito (do alemão: kampf, segundo Georg Simmel), consequentemente ao crime.  

 Não seria ilógico comparar que o ócio presente nos presídios brasileiros, assim como o ócio igualmente proposto na vida de algumas crianças joinvillenses (que desde o fim do ano passado ainda estão sem poder frequentar suas escolas públicas, haja vista a vexatória situação de interdição das instalações físicas das unidades educacionais), é um claro e possível fator criminógeno. 

E quando trago ao debate esse comparativo, desde logo digo que não é minha intenção generalizar a possibilidade de que essas crianças (em um futuro não tão distante) sejam destinadas a ocupar os espaços penitenciários. Não é isso. Me atrevo simplesmente, a chamar atenção da necessidade de ofertar educação, instrução e cultura à qualquer cidadão, entre eles, os cidadãos presos. É um direito fundamental e uma obrigação estatal. Além de quê, ainda a título de prevenção criminal, vale lembrar a máxima já dita há muito pelos meus falecidos avós: “Cabeça vazia, casa do diabo”. E, nesse caso, não se iluda caro leitor, o diabo não se limita apenas aos muros da igreja. Vai muito além. Vem aqui na minha Delegacia e vira “caso de polícia.” Talvez seja pensando nisso (no diabo, seus pecados e crimes) que o sociólogo Pedro Bodê tenha utilizado a expressão “satanização da juventude marginalizada”  em alguns de seus estudos publicados. Mas, por ora e entrando novamente na literatura, cabe aqui transcrever a sensata e esquecida lição de Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”. 

E é desse “fazer”, sinônimo de uma tentativa de transformação visando uma ressocialização, que se preocupa o nobre magistrado de Joinville. Um ato que vai além da mesmice (e das manchetes “chatas” e “enfadonhas”), isto é, uma preocupação inteligente e ideológica, que ultrapassa o mero ato de condenar e prender. Uma tentativa diferente, isolada da premissa comum baseada na crença de que o cárcere deve ser unicamente um espaço de sofrimento, amparado por um antiquado discurso jurídico-institucional fundado apenas em três categorias principais: prisão, acusação e condenação. Essas velhas práticas não mais funcionam, se é que um dia chegaram a funcionar (as estatísticas criminais estão aí para nos provar). Vale a solitária ideia, e essa ideia, pelo menos, merece a nossa retrospecção. Por fim, não querendo abusar de suas paciências, peço licença para manifestar alguns íntimos entusiasmos: Ao digno juiz, meu reconhecimento e cumprimentos; ao Estado catarinense, o mínimo de razoabilidade e seriedade para consolidar a proposta localmente inédita (uma adequada oferta de livros aos detentos seria um bom começo); e aos presos, meus votos de uma boa leitura.


Bibliografia:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico; tradução Fernando Tomaz – 12ª Ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2009

DURKHEIM, Émile. O suicídio. Martin Claret. São Paulo

MORAES, Pedro R. B. de. Juventude, medo e violência. Ciclo de conferências “Direito e psicanálise: novos e invisíveis laços sociais”.

REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. L&PM Editora.

SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004

SILVA, Luana de Carvalho. O princípio da culpabilidade e a produção de sujeitos. Tese. UFPR. 2008

SIMMEL, Georg. Sociologia. Organizador: Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1983 

SOUZA, Jessé de. A ralé brasileira – quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora do UFMG, 2009.

WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos (onda punitiva). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de 2007

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Sobre o autor
Rodrigo Bueno Gusso

Delegado de Policia Civil. Doutor em Sociologia, Mestre em Direito, Especialista em Segurança Pública e pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSSO, Rodrigo Bueno. Monteiro Lobato, Dostoiévski e a leitura no cárcere. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3581, 21 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24243. Acesso em: 2 nov. 2024.

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