1. Breve introdução
Ainda que com algumas controvérsias, parece evidente que, dentre os inúmeros tributos previstos em nosso ordenamento, o imposto de renda é o mais adequado ao fundamento constitucional da justiça social. Isso porque nele se pode aplicar com mais consistência a tributação progressiva, isto é, cobrar mais dos que ganham mais, e cobrar na medida em que se diminui o nível de renda.
Todavia, tentar argumentar em defesa de algum aspecto do nosso sistema tributário é, por certo, tarefa dificílima. Além disso, sabe-se que o imposto de renda desagrada à grande maioria dos contribuintes, já que incide diretamente sobre os rendimentos das pessoas. Vale dizer, o imposto de renda incomoda mais porque seus efeitos sentido são sentidos de forma mais direta, imediata.
E assim, por mais o este seja o imposto mais progressivo do nosso sistema tributário, pelo menos dentre os principais tributos, o que o caracteriza mais intrinsecamente é o fato de que as pessoas se sentem prejudicadas por ter de pagar este imposto, isto é, a grande maioria das pessoas gostaria que tal tributo não existisse.
Contudo, no presente texto pretende-se atentar para uma compreensão diversa do imposto de renda, máxime sua função de redistribuição de renda. Portanto, apesar dos inevitáveis incômodos, sigamos adiante.
2. A tabela atual do imposto de renda[1]
Nz tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para as declarações feitas em 2013, ano-base 2012, há cinco faixas de tributação: até R$ 1.637,11, faixa de isenção; de R$ 1.637,12 a 2.453,50, alíquota de 7,5%; de 2.453,51 a 3.271,38, alíquota de 15%; de 3.271,39 a 4.087,65, alíquota de 22,5%; e acima de R$ 4.087,66, cuja alíquota é de 27,5%, a mais alta.
Como de praxe, há muitas críticas e descontentamentos, por vezes coerentes, como, p. ex., quanto à insuficiência do reajuste, que foi de 4,5%, pois está abaixo dos índices de inflação. Todavia, o argumento central de grande parte das críticas situa-se na alegação de que a atual configuração do IRPF atinge com mais rigor a classe média, exigindo destes um injusto e desproporcional sacrifício.
De fato, há inúmeras inconsistências na sistemática de tributação do IR, isso não se pode negar, afinal é um dos tributos mais complexos do nosso extremamente complexo sistema tributário. Mas, antes de tudo, é preciso indagar, afinal, quem, no Brasil, pode ser considerado como integrante da classe média? Qual é a média de rendimentos dos brasileiros? Quais as faixas de rendimentos das pessoas que compõe a classe média? Enfim, quem é, efetivamente, a classe média brasileira?
As nossas classes sociais, segundo o IBGE.
Para fins destes breves comentários, o estudo PNAD 2011 - Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio[2], realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), parece ser uma fonte adequada.
Para o IBGE, as categorias das classes sociais são distribuídas, de acordo com a renda familiar mensal (em números de 2011), em: classe E, com renda de até R$ 751; classe D, renda entre R$ 751 e R$ 1.200 por mês; classe C, renda entre R$ 1.200 e R$ 5.174; classe B, renda familiar entre R$ 5.174 e R$ 6.745; e classe A, famílias com renda acima de R$ 6.745. Na distribuição das classes em percentuais, 32,2% da população estão nas classes D e E, 11,8% estão nas classes A e B, e, por fim, 55% estão na classe C, vale dizer, a classe que inclui a maioria da população brasileira.
Em 2011, o rendimento médio mensal das pessoas com 10 anos ou mais de idade, e com rendimentos, era de R$ 1.279,00, o rendimento per capita da população, R$ 753,00, e a média familiar, R$ 2.259,00, sendo 3 o número médio de pessoas por família.
Sobre os indicadores das desigualdades de renda, em 2011, temos: apenas 5% das famílias brasileiras tinham rendimento familiar per capita acima de 5 salários mínimos; 73% tinham rendimento familiar per capita de no máximo 2 salários mínimos; as pessoas com menores rendimentos, entre os 10% mais baixos, tinham renda mensal média de R$ 186,00; enquanto o grupo com rendimentos mais altos, 1% da população, tinham rendimento médio de R$ 16.121,00.
Como se vê, os números nos mostram uma realidade bem distinta do que usualmente se entende por classe média, uma imagem idealizada do “brasileiro médio”. Comumente, pessoas que tem renda familiar em torno de 10, 15 ou até 20 mil reais afirmam que são de “classe média”, mas se nos basearmos nos dados do IBGE, essa noção de classe média, do senso comum, não condiz com a realidade social brasileira. Famílias com esse nível de renda estão na classe A, isso não dá pra negar. De fato, é uma tendência bastante frequente as pessoas evitarem reconhecer que fazem parte das classes economicamente mais favorecidas.
Mas, quem, de fato, paga um imposto de renda considerado “elevado”?
Voltando, pois, ao IRPF, façamos então um breve exame da incidência do imposto. Mas, primeiro, é preciso evitar o equívoco mais comum: é que muitas pessoas acreditam que quem tem rendimentos acima de R$ 4.087,66 paga exatamente 27,5% de IR sobre seu salário. Por exemplo, o prestigiado jornalista Luis Nassif afirmou que “quem ganha R$ 20 mil por mês paga tanto quanto quem ganha R$ 4 mil por mês”[3]. Mas, isso não é verdade, nem de longe.
Na verdade, a alíquota de 27,5% incide apenas sobre o que ultrapassa esse valor de R$ 4.087,66, e abaixo disso, divide-se esse mesmo valor em faixas, e aplicam-se as alíquotas relativas a cada faixa. Ou seja, ninguém paga exatos 27,5%, mas quanto maior o salário, mais próximo desse percentual se chegará.
Numa breve simulação, vejamos: hipótese de contribuinte com salário bruto de R$ 3.500,00, desconto de R$ 385,00 de previdência[4], gastos mensais de R$ 200,00 com saúde, sem dependentes e sem outros gastos dedutíveis. A base de cálculo será de R$ 2.915,00 (3.500 – 385 – 200). Divide-se a base em 3 faixas: na 1ª, até 1.637,12, não tem desconto (isenção); na 2ª, 1.637,12 a 2.453,50, o desconto é de R$ 61,23 (7,5% de R$ 816,39); e na 3ª, 2.453,50 a 2.915,00, o desconto é de R$ 69,21 (15% de R$ 211,50). Assim, após a soma, o desconto total será de R$ 130,44, equivalente a uma alíquota efetiva de 3,73% (130,44 / 3.500).
Do mesmo modo (considerando as mesmas deduções da simulação), para um salário (bruto) de R$ 6.000,00, o desconto será de R$ 720,01, alíquota efetiva de 12%; e para um salário de R$ 9.000,00, desconto de R$ 1.545,02, alíquota efetiva de 17,17%. Ressalto: todas as simulações aqui demonstradas podem ser conferidas no simulador, disponível no site da Receita Federal (nota 1).
Vejamos um exemplo de uma família da classe C, composta por um casal e um filho (dois dependentes), com remuneração bruta de R$ 4.000,00 reais, com apenas um dos cônjuges recebendo salário, e considerando deduções de R$ 300,00 de gastos com saúde (total da família) e 250,00 com educação, o IR incidente seria de R$ 96,73, alíquota efetiva de 2,42%. Parece-me, sinceramente, que isso não é uma exploração. Aliás, quem quiser conferir a simulação para uma família em que ambos os cônjuges auferem renda, irá verificar que as alíquotas efetivas serão ainda menores.
E quem, de fato, paga um imposto de renda considerado “elevado”? Vejamos: para uma pessoa com remuneração bruta de R$ 20.000,00, desconto de previdência de R$ 430,28 (teto do INSS), tendo dois dependentes, gastos de R$ 600,00 com saúde e de R$ 500,00 com educação (dividido entre os dependentes), o desconto de IRPF ficaria em R$ 4.322,52, alíquota efetiva de 21,61%, o que, de fato, é um valor considerável. Mas, devemos lembrar, essa pessoa está no grupo do 1% da população com maiores rendimentos. Afinal, se esta parcela da população não pagar mais 20% de IR, quem pagaria? Seria o grupo dos 0,1%?
É preciso compreender o problema a partir da nossa realidade social
Evidente que fazer comparações do nosso IRPF com o de outros países é um recurso muito importante para a melhoria do nosso sistema, desde que efetuadas as devidas adaptações, sobretudo no que se refere às enormes diferenças sócio-econômicas, como rendimento per capita, PIB, níveis de desigualdades de renda, dentre outros fatores.
Roque Carraza[5], p. ex., afirma que nosso sistema poderia ser aperfeiçoado aumentando-se o número de alíquotas. Observa ele que em muitos outros países há faixas de 5% a 55%. Nesse aspecto é bastante razoável a proposição do ilustre tributarista. Entretanto, logo em seguida ele afirma que nossa classe média é submetida a uma alíquota de 27,5%, enquanto nesses outros países a média seria de 10%. Mas, isso não é verdade, primeiro porque, como já foi explicado, ninguém, no Brasil, paga exatamente 27,5% de IRPF. Ademais, já vimos também que a média de rendimentos do brasileiro prova que a noção de classe média sugerida por Carraza não condiz com nossa realidade social.
Aliás, quanto à referência a outros países, há dados da OCDE[6] (a maioria entre os países mais economicamente desenvolvidos) que indicam entre seus países membros uma média de alíquota de IR de 14,8% para o trabalhador com rendimentos na média nacional e sem dependentes. Mas a média dos salários brutos anuais nesses países é de U$ 36.696,00 (cerca de 73 mil reais), ou seja, não dá pra comparar com a média mensal de R$ 1.345,00 do trabalhador brasileiro. Ora, basta lembrar que no Brasil o trabalhador com salário na média nacional está isento de IR.
Parece-nos mais adequado, portanto, tentar compreender melhor a nossa própria realidade social e econômica antes de empreender comparações com outros países. Insisto em ressaltar: no Brasil, apenas 8,5% das pessoas, com ocupação, tem rendimentos acima de mais de 5 (cinco) salários mínimo. E desses, apenas 2,6% recebem acima de 10 mínimos, e somente 0,7% acima de 20. Pensemos nisso, pois o fundamento constitucional do IR é a redistribuição de renda, ou seja, deve-se fazer com que aqueles que têm mais contribuam com mais, para que parte de sua renda seja repassada aos que têm menos, por meio da prestação de serviços públicos.
Decerto, há progressividade no nosso IR, os cálculos acima apresentados o demonstram. E essa progressividade pode ser aumentada ainda mais, o que, de fato, seria até mais justo. Poderíamos ter alíquotas ainda maiores para rendimentos mais elevados. Ou ainda, poderíamos ter uma progressividade com intervalos maiores. Afinal, a atual tabela está longe da perfeição, certamente. Há ainda o problema de como tributar mais os considerados “muito ricos”, o que também aumentaria a progressividade. Há também a questão dos que não são assalariados, mas que auferem altos rendimentos e não os declaram corretamente, sobretudo empresários e profissionais liberais, que inclusive utilizam recurso de planejamento tributário para diminuir seus pro labores, chegando até mesmo a se incluírem na faixa de isenção, todavia, esses já são casos de sonegação ou de elisão fiscal, o que deve ser combatido, por meio de fiscalização e, no caso da elisão, por mudanças na legislação. Mas não se trata, por certo, de deficiência na tabela.
Há outro problema, também bastante complexo, que é a tributação sobre o lucro das empresas, o IRPJ. Por óbvio, o IRPJ também tem muitas distorções, porém devem ser levados em conta muitos outros aspectos não aplicáveis ao IRPF, como a incidência de outros tributos sobre o lucro e sobre o faturamento das empresas, e, principalmente, o repasse do valor do IRPJ para o preço dos produtos e serviços, que acaba por torná-lo mais um imposto indireto, tipo de tributo que, na verdade, é o maior dos problemas do nosso problemático sistema tributário.
Imposto de renda e justiça social
Devemos compreender o IRPF considerando seus próprios fatores condicionantes, e, antes de tudo, precisamos compreendê-lo como uma questão de justiça social, na perspectiva do Estado Democrático social e da Constituição social-dirigente. Não podemos esquecer que entre os objetivos fundamentais da nossa República Federativa, nos termos do artigo 3º da Constituição, estão a construção de uma sociedade justa e solidária, a diminuição das desigualdades sociais e a erradicação da pobreza. Então, como fazer isso sem redistribuição de renda? Como fazer isso abrindo mão do IR?
Como se sabe, os tributos diretos, isto é, os que incidem diretamente sobre a renda e o patrimônio das pessoas, dos quais o IRPF é o principal, são os únicos em nosso sistema sobre os quais se pode aplicar a progressividade, vale dizer, tributar com alíquotas maiores aqueles que têm rendimentos e patrimônio maiores, e tributar menos quem tem menos, e não tributar quem nada tem, ou quem tem muito pouco.
Hoje, lamentavelmente, quem tem rendimentos mais baixos (de 1 a 3 salários mínimos) acaba pagando uma elevadíssima carga de tributos. Mas isso não se deve à tributação direta de sua renda e patrimônio, mas sim por conta dos tributos indiretos incidentes sobre os produtos e serviços que esses indivíduos consomem, já que, inevitavelmente, eles são obrigados a gastar tudo o que ganham, aliás, todo o pouco que ganham. E como os tributos indiretos, como o IPI, ICMS, PIS e COFINS, são repassados ao preço dos produtos e serviços, essa tributação atinge com mais rigor a população mais pobre. Disso resultam efeitos diametralmente opostos à redistribuição de renda, ou seja, em vez de progressividade, há regressividade. Enfim, como diria Lenio Streck: os do “andar de baixo” acabam sendo tributados com mais rigor do que os do “andar de cima”.
Essa é uma questão crucial para o sistema tributário. Observe-se que a arrecadação do IRPF (incluindo todas as suas modalidades: rendimentos de capital, rendimento do trabalho, rendimentos de residentes no exterior)[7] representa menos 10% do total da arrecadação tributária nacional (União, Estados e Municípios). E, como os impostos sobre o patrimônio têm participação bem menor ainda, não resta dúvida de que os tributos indiretos representam “o grosso” da nossa pesada carga tributária. Por exemplo, o ICMS e a COFINS, juntos, respondem por mais de 30% da arrecadação nacional.
A baixa participação dos impostos direitos, principalmente o IRPF, no total da carga tributária brasileira é, portanto, um grave problema que atua no sentido contrário ao determinado no artigo 3º da Constituição. Vale dizer, quanto menor for a participação da tributação direta (sobre a renda e o patrimônio das pessoas), menor será a progressividade do sistema e, assim, mais injusto será este, e mais inadequado aos objetivos dispostos na Constituição Federal.
Isso é extremamente grave, e, por certo, representa um duro golpe nas nossas pretensões, conforme a Constituição, de construir uma sociedade mais justa e menos desigual.
Por fim, obviamente, não pretendo afirmar que nosso imposto de renda é perfeito, nem o mais adequado, pois, evidentemente, há muitas correções a se fazer. Contudo, o que não se pode perder de vista é que toda modificação do imposto tem de estar condicionada e conformada pela realidade social do nosso país e pelos princípios e fundamentos da nossa Constituição.
Notas
[1] A tabela do IRPF pode ser consultada no site da RFB, na mesma página do simulador de desconto: http://www.receita.fazenda.gov.br/Aplicacoes/ATRJO/Simulador/simulador.asp?tipoSimulador=M
[2] Um breve resumo da pesquisa, bem como os links para o conteúdo completo são encontrados em:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2222&id_pagina=1 e o documento com uma síntese dos dados da pesquisa podem ser baixados do endereço: ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_anual/2011/Sintese_Indicadores/sintese_pnad2011.pdf
[3] http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/as-disparidades-entre-as-aliquotas-de-imposto-de-renda
[4] A tabela de descontos está disponível em: http://www.mps.gov.br/conteudoDinamico.php?id=313
[5] CARRAZZA. Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 111.
[6] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Dados disponíveis em: http://www.oecd-ilibrary.org/taxation/income-tax-and-social-security-contributions-2008 20758510-table1
[7] Conforme dados publicados pela Receita Federal e pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, disponíveis em: http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/arre/2011/AnalisemensalDez11.pdf e http://www.ibpt.com.br/img/uploads/novelty/estudo/68/ImpostometroAtingeAMarcaDeR1Trilhao.pdf