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O Direito da Razão ou a Razão do Direito?

Um breve histórico constitucional brasileiro

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01/11/2001 às 01:00
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1.Direito e Justiça

Buscar respostas para questões como o que é justiça? e o que é direito? num contexto histórico de 500 anos de Brasil, apresenta certas dificuldades. São questões, cujas respostas ainda permanecem em aberto. O campo da investigação jurídica encontra-se em crise, sendo que os próprios operadores do direito, dos mais passivos aos mais estridentes, perderam a capacidade de pensar sobre o justo. O que se tem notado é um retorno a certos diálogos que se concentram no conceito de justiça no singular, isto é, o do formalismo legal e o da técnica jurídica. Poucos são aqueles que se aventuram em pensar sobre aspectos mais perturbadores do direito moderno, marcado que é pelas injustiças sociais.

Os cursos de direito passam ao largo de tema tão desconcertante, pois ao mesmo tempo que ensinam as virtudes da justiça, nem de longe se preocupam com a possibilidade de que, a partir dali, pode-se construir uma nova ordem jurídica, voltada para um conceito de justiça plural. A urgência de pensar e conhecer o elemento caracteristicamente político do direito, corresponde à capacidade de reconciliar o apelo de justiça do mundo lá fora com o poder do direito em construir um mundo melhor.

Pensar o direito é desconstruir o passado e retomar a tarefa de compreender o que se passou para reconstruir o novo.

Regra geral, reduz-se o sentido de justiça confundindo-o com o conceito de direito. Cada época teve o seu significado de justiça. Os gregos relacionavam justiça com sociedade, porém consideravam os homens naturalmente desiguais, e a harmonia social seria obtida à medida que cada indivíduo desempenhasse uma atividade conforme as suas aptidões. Mas coube a Platão (420-347 ªC.) dar um sentido ético à justiça, colocando-a como a virtude das virtudes. Para os romanos, que são aqueles que nos interessam de perto, até porque o direito brasileiro sofreu forte influência do direito romano, a justiça confundia-se com a lei, com a norma jurídica. Contudo, é com o surgimento do liberalismo que se introduzirá ao direito uma cultura jurídico-institucional marcadamente de classe.

Mas foi Karl Marx quem primeiro rechaçou a possibilidade da existência de uma relação próxima entre direito e justiça, uma vez que a classe proprietária dos meios de produção introduz a ordem jurídica que desejar, e essa ordem é particular, com a finalidade de garantir os interesses da classe dominante. Marx e Engels viam todo o direito como ideológico, que podia ser explicado, dentre outros fatores, pelo aparecimento de uma classe de juristas profissionais, decorrente da divisão do trabalho. Diziam, mais ainda, que o direito é a vontade, feita lei, da classe dominante, que através de seus próprios postulados ideológicos pretende considerá-lo como expressão aproximativa da justiça eterna (Barbosa: 1984).

Ora, se para a teoria marxista a justiça só se concretiza com a extinção total do direito, pois se existir um deles o outro não pode existir, para o liberalismo o direito é um direito de classe, que no Brasil vai se consolidando, ao longo do processo de colonização portuguesa, em cima de uma cultura jurídica que reproduziu historicamente as condições contraditórias da retórica formalista e da prática patrimonialista (Wolkmer: 1998).

Foi esta tradição luso-romana, formalista e liberal, que gerou a atual crise que se abate sobre o sistema jurisdicional brasileiro. A estrutura normativista do direito positivo aplicada no Brasil tem se mostrado ineficaz e não atende mais a dinâmica de uma sociedade que passa por profundas transformações políticas e por constantes crises de legitimidade, principalmente na aplicação da justiça. O modelo liberal clássico, importado pelos filhos da elite brasileira, que frequentavam as escolas de Coimbra e Lisboa, e que concebe o jurídico meramente como legislação, como razão instrumental de legalidade, onde justiça e direito estão em planos completamente distintos, se esgotou pela própria irracionalidade da sua aplicação.

Essa elite de advogados, treinada graças ao ensino jurídico da Universidade de Coimbra, profundamente influenciada pela tradição romana, exerceu um importante papel não só na construção da ordem jurídica, mas, também, na fundação do Estado brasileiro. O direito romano era, particularmente, marcado para justificar a supremacia do soberano. E todos aqueles reis que se sobressaíam na luta pela criação de novos Estados, quase sempre se cercavam de juristas (Carvalho: 1996). Essa concepção do direito a serviço da vontade do soberano e, mais recentemente, do direito a serviço de uma classe, perpassou por toda a história política brasileira. Os soberanos brasileiros, civis ou militares, nunca deixaram de se cercar dos seus fazedores da ordem, no sentido de dar um certo ar de legalidade aos seus atos arbitrários. Assim foi na Colônia e no Império, assim o é na República.

A própria unificação ideológica da política adotada durante a fase imperial se concentrou na formação jurídica das elites, principalmente do ensino que predominava na Universidade de Coimbra, extremamente influenciada por orientação romana. Após a Independência do Brasil, com a criação de dois cursos de direito, em Olinda e São Paulo, dedicadas explicitamente à formação da elite local, o poder político recepcionou novos quadros de juristas com formação brasileira.

Nessa perspectiva, entende-se que o jurídico tem produzido e reproduzido, ideologicamente, em cada época da história brasileira, montagens políticas e representações de classe, que revelam uma estrutura legal normativa e sistematizada, com funções específicas de controle social. Daí a constatação de que o direito brasileiro constrói sua especificidade, com base numa tradição legal definitivamente marcada por uma formação social elitista, antidemocrática e formalista.

Na concepção de Antônio Wolkmer (ob. cit.), a transposição e a adequação do direito escrito europeu para a estrutura colonial brasileira, acabou reproduzindo a estranha e contraditória convivência de procedimentos burocráticos-patrimonialistas com a retórica do formalismo liberal e individualista. A dinâmica dessa junção fez eclodir horizontes ideológicos de uma tradição legalista, fundamentada em idéias de perfil liberal-conservador.

A atual discussão sobre a crise do sistema jurisdicional brasileiro, suscitada por aquilo que a agenda política chama de reforma do Judiciário, tem recolocado também no centro do debate o mito da neutralidade jurídica e o caráter de classe do direito produzido no Brasil. Talvez, a partir desse ponto, surja uma nova forma de pensar o jurídico, além do discurso técnico-formal, lógico-dedutivo, que justifica as decisões dos conflitos no estrito campo da dogmática tradicional. O modelo liberal clássico de aplicar o direito brasileiro, com certeza, não atende mais às reais necessidades da dinâmica social em curso. Em contraposição a essa modalidade tradicional de pensar o direito, uma nova corrente do pensamento jurídico está surgindo, preocupada com a função social do direito, com o alargamento das interpretações legais e com a ampliação dos laços democráticos.

Direito não é, simplesmente, justiça. O direito é uma realidade social, que deve estar a serviço da justiça. A rigor, o direito é um fenômeno histórico e, como tal, a sua aplicação não consiste apenas na observância da legalidade, nem reduz-se a ela.

Não há como falar em democracia política se o Estado não cumpre o seu papel na aplicação da justiça e se o direito, que este mesmo Estado reproduz, não for de encontro com a sociedade em geral. Democracia política envolve, notadamente, ordem jurídica justa.


2.Um Direito de Classe

Os primeiros traços de administração de justiça aportaram no Brasil com a expedição de Martim Afonso de Souza, por volta de 1530. A necessidade de estabelecer, de forma mais concreta, uma colonização permanente e de regular a sociedade, Martim Afonso recebeu instruções, com amplos poderes judiciais, de tomar medidas que garantissem a exploração da terra. Como comandante militar, tinha total autoridade legal sobre todas as causas, cíveis e militares, e, exceto para os fidalgos, não havia recurso de suas decisões (Schwartz: 1979).

Com poder judicial sobre as pessoas do Brasil, Martim Afonso tinha ordens da Corte para criar cargos judiciais necessários a correta administração da Colônia. A doação de terras, em sistema de Capitanias, a doze fidalgos portugueses, concedia poderes judiciais a seus proprietários, que podiam nomear pessoas (ouvidores) com alçada civil e criminal. Assim, o proprietário da terra tinha o controle total na administração da justiça. O direito colonial nasce, portanto, vinculado à propriedade privada e com objetivos claros de controle social.

A instituição do cargo de Governador-Geral trouxe uma significativa mudança na estrutura judicial implantada pelas Capitanias. Aparece a figura do Ouvidor-Geral que centraliza, em suas mãos, os poderes judiciais, se sobrepondo à estrutura já existente de magistrados municipais e ouvidores designados pelos donatários., O direito de aplicar a justiça continuava com o dono da terra, mas sob a supervisão de um administrador real.

Faz-se mister assinalar que a lei portuguesa no Brasil atingia sobretudo os europeus, uma vez que os nativos eram privados de recorrer aos canais normais de justiça. E mesmo entre os europeus radicados no Brasil, alei fazia distinção entre fidalgos e o populacho.

Somente com a chegada de Mem de Sá (1557) é que os assuntos de justiça são ampliados em detrimento dos poderes judiciais dos donatários. Por volta de 1580 o Brasil passou de uma administração judicial efetuada por ouvidores particulares e ligada ao proprietário da terra, para um sistema mais centralizado e com vinculações mais sólidas com a Coroa portuguesa.

Para alguns analistas, desenvolveu-se nesse período um cenário contraditório de dominação política, ou seja, de um lado, o poder nas mãos dos proprietários de terra, num profundo quadro de divisões de classe; de outro, o esforço centralizador que a Corte impunha na administração da justiça.

O direito positivo aplicado no Brasil se deu com a transferência da legislação portuguesa (Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), sem qualquer alteração, para uso em território nacional.

Nos primeiros dois séculos de colonização, o direito predominante foi o português, que dava tratamento discricionário à população nativa. Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um direito nativo e informal, a ordem normativa oficial implantava, gradativamente, as condições necessárias para institucionalizar o projeto expansionista português (Wolkmer: 1998).

Nesse cenário, fica claro o papel representado pelos magistrados que não agiam como bons juízes, pois à medida que faziam parte da sociedade colonial, estavam diretamente envolvidos com seus interesses pessoais e com os da classe que representavam.

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Com a Independência do Brasil, em 1822, se fez necessário a implantação de uma nova ordem jurídica. Reflexo dos acontecimentos de além-mar, o liberalismo europeu alcança terras nacionais e passa a se constituir na mais importante proposta doutrinária para a construção de um arcabouço legal positivo.

No continente europeu, o iluminismo aceitava que o seu programa de reformas fosse feito pelo déspota esclarecido. No entanto, a Revolução Francesa colocava uma pá de cal nessa euforia racionalista. A filosofia liberal vai afirmar a existência de direitos individuais anteriores à sociedade política. Objetivando realçar a posição do homem-indivíduo e diminuir a força do Estado, o liberalismo apela para a conservação de alguns direitos individuais.

A Revolução Portuguesa de 1820 recepciona na sua futura Constituição (1822) essas novas idéias, iniciando-se aí o domínio do pensamento liberal em terras lusitanas. A lei, que em Portugal nada mais era do que a vontade do soberano é substituída pela vontade de uma classe emergente.

Assim, o Estado liberal português aparece como o definidor de uma outra ordem sócio-política, cujo plano jurídico atua junto ao monopólio da força, produzindo normas e leis que determinarão o comportamento dos indivíduos. Nesse esforço de controle social, os próprios direitos individuais se apresentam como mera concessões ou, no máximo, como expressão da autolimitação do Estado.

A primeira Constituição brasileira traduz uma certa influência européia. Não é um texto avançado, pois o sentimento político que prevalecia no Brasil nessa época tinha contorno mais conservador do que liberal. E toda ela foi formulada com base na defesa da ordem e dos interesses estabelecidos pela elite agrária. No seu conteúdo ficaram consignadas a idéia de uma sociedade fechada, hierarquizada e elitista, uma vez que o projeto liberal que predominou expressaria a vitória da corrente conservadora.

O liberalismo brasileiro, totalmente voltado para a dominação patrimonial, deve ser visto, também, por seu traço juridicista. A partir dessa junção, entre o individualismo político e o formalismo legalista, que moldou ideologicamente o principal perfil de nossa cultura jurídica, nasce o bacharelismo liberal. Essa vertente juridicista do liberalismo brasileiro teve papel determinante na construção da ordem político-jurídica nacional.

A Carta Constitucional de 1824 não só consagrou um compromisso entre a burocracia patrimonial e os liberais (moderados e conservadores), como se utilizou de fórmulas legais que anulavam certos ideários do liberalismo clássico.

A segunda Constituição brasileira, já no período republicano, vem, ainda, imbuída do mesmo individualismo liberal-conservador que marcou a Carta de 1824, onde expressa modelos de representatividade política desvinculados da vontade popular. As elites agrárias, que continuavam a exercer o controle político-econômico do Estado brasileiro, mantiveram seus interesses no texto de 1891, como forma de assegurar a continuidade de sua dominação.

Pode-se dividir, sem muito rigor científico, o constitucionalismo brasileiro em dois tempos: de 1824 a 1834, quando prevaleceram interesses de uma elite agrária, e de 1937 a 1969, quando da predominância de uma ordem jurídica autoritária, centrada em ideologias fascistas. Exceção feita ao período populista, que vai da vigência da Constituição de 1946 até o golpe militar de 1964.


3.Direito e Autoritarismo

Na esteira dos movimentos de 1930 e 1932, reflexo de um período de mudanças político-econômicas, origina-se a Constituição de 1934. Para a sua elaboração os constituintes partiram do texto de 1891, mas incorporaram algumas idéias de um novo direito que emergia no continente europeu, cuja matriz teórica vinha da República de Weimar. O quadro político brasileiro nessa época era de divergências ideológicas profundas e de transformações econômicas.

O novo texto constitucional é inovador em relação à Carta de 1891, influenciado que foi pelos estudos de juristas europeus e recepcionados pela elite jurídica nacional. A grande novidade se expressava pela adoção de um constitucionalismo social, onde são tratados temas como educação e família.

A Constituição de 1934 teve vida efêmera. Com o golpe de 1937, Getúlio Vargas implanta o Estado Novo, arremedo do fascismo italiano. A luta ideológica enfatizava a divisão existente entre as duas principais correntes do movimento de 30: os constitucionalistas liberais e os nacionalistas autocráticos. Num processo de conjuntura ideológica crítica, o golpe de 1937 determinou o caminho autoritário que o Brasil iria seguir daí em diante. Aqueles objetivos de bem-estar social e nacionalismo econômico que demarcaram o texto de 34, iriam ser agora perseguidos pelo autoritarismo implantado (Skidmore: 1982).

Novo regime. Nova Constituição.

Francisco Campos, jurista mineiro, fica encarregado de dar forma constitucional à ideologia fascista. Instituiu-se no Brasil o autoritarismo corporativo, que permitia ao Executivo legislar mediante a edição de decretos-lei. Todos os poderes passaram ao controle de Vargas, inclusive o Judiciário. A criação do Tribunal de Segurança Nacional facilitou a ingerência do Estado fascista na estrutura jurídica. A existência desse Tribunal servia de palco para a encenação da farsa judiciária e representava o poder paralelo no campo da justiça.

Vargas e os militares pós-64 foram os que melhor se utilizaram da lei para instituir o arbítrio estatal, pois ela mantém um papel importante na organização do aparelho repressivo. O direito, no geral, e alei, no particular, materializam a ideologia dominante e organizam o consentimento das classes dominadas.

Pouco estudada, mas elemento fundamental para a formulação do regime autoritário, é a aplicação do conceito de ditadura soberana. Esta teoria, elaborada por Karl Scmidt, que atribui a soberania a um Estado de fato, quando livre das restrições heterônimas, aparece como a vontade suprema na arena política e na criação do direito. O Estado se identifica ao mesmo tempo à vontade de um líder individual ou coletivo, dotado de um poder discricionário, e sem outros limites que sua própria automoderação.

A base do conceito se encontra na convicção de que o direito não consiste em normas gerais e permanentes estabelecidas por um poder, juridicamente regulado de maneira a reger as múltiplas situações concretas ou individuais. O direito seria formado por normas individualizadas e concretas, tanto vis-a-vis do indivíduo quanto da situação ou do gênero da relação dentro do qual aquele se encontra frente ao Estado. O Estado, portanto, editaria essa norma individual e concreta, discricionária e sem limitações substantivas ou processuais. Por outro lado, o governo passaria a ser aquele que é o encarregado de decidir sobre a situação de crise e, em conseqüência, aquele que teria o poder de suspender a vigência da Constituição e de modificá-la. Dessa forma, o governo se afirmaria como órgão ou pessoa que decreta um estado de crise, suspendendo direitos e instaurando as restrições à ação política.

A ditadura soberana se fundamenta na capacidade de a revolução se legitimar por ela mesma e de substituir toda a jurisdição existente. Ao regime fundado sob a égide do fascismo se atribui uma vocação revolucionária destinada a modificar o status quo. A nova autoridade, segundo Schmidt, se considera autodotada, tendo em vista sua condição revolucionária, dona de um poder suficiente para eliminar os fatores adversos que perturbem a ordem, e para adotar medidas visando assegurar e consolidar o movimento revolucionário e impor seus objetivos.

Essa teoria se caracteriza não somente pela usurpação do poder, mas também pela concentração em suas mãos de todos os poderes e funções do Estado. Ela supõe, evidentemente, uma forma altamente autoritária do exercício do poder. Nesse sentido, o autoritarismo integra entre seus elementos característicos os aparelhos repressivos, incluindo o Judiciário.

Ora, se num determinado momento histórico brasileiro, o fascismo de Karl Schmidt ofereceu embasamento teórico ao jurista Francisco Campos para dar conteúdo legalista ao Estado Novo, mais recentemente coube à Doutrina de Segurança Nacional (DSN) dar suporte ao regime instalado pelos militares, a partir de 1964.

A DSN se inscreve na corrente de reflexão filosófica sobre o poder e sobre as relações do indivíduo e do Estado, assim como na tradição autoritária da condução da coisa pública. Como não se pode identificar com exatidão quem deve ser o inimigo interno do Estado e que práticas serão consideradas ideológicas, já não haverá garantias para o império da lei e o direito de defesa (Alves: 1984).

A passagem do modelo colonial para o neocolonial (liberal) trouxe diversas alterações na composição da estratificação social brasileira. O patronato brasileiro se moderniza e assume características muito mais dependente do capital estrangeiro. Nessa estratificação social, a classe dominante corresponde, grosso modo, à burguesia nacional de formação capitalista autônoma, mas que não se opõe aos interesses estrangeiros, pois sua prosperidade e sua modernização seriam de uma associação com eles.

Tem-se assim, na estratificação social do Brasil colonial aos dias atuais, a contradição clássica entre uma elite dominante que perpetua uma ordem jurídica que a privilegia, e as classes dominadas submetidas à justiça daquela elite. A estrutura jurídica brasileira, que antes estava sob o controle da dominação agrária, agora, face à uma nova dinâmica sócio-econômica, se instrumentaliza mediante o aparecimento de dois novos componentes das elites: o político profissional e o jurista positivista e racionalista.

Na verdade, o direito brasileiro esteve sempre atrelado à uma ordem econômica e social preestabelecida pelos proprietários dos meios de produção. Mesmo no período pós II Guerra, conhecido na literatura política brasileira como populismo, o direito pátrio não se afastou um milímetro da sua condição de classe. O próprio texto constitucional de 1946, que restabeleceu a democracia formal representativa, foi forjado por um acordo tácito entre a burguesia nacionalista e grupos liberais reformistas.

O constitucionalismo brasileiro primou sempre por formalizar a realidade nacional, porém com o agravante de estabelecer ideais sociais meramente programáticos. Rico em abstrações racionais, mas pobre em refletir as aspirações e necessidades imediatas da sociedade.

Com o golpe militar de 1964, conseqüência de uma aliança entre a burguesia agrária/industrial e parcelas emergentes de uma tecnoburocracia civil e militar, o campo de construção do direito brasileiro transferiu-se para os quartéis. Nasce um outro direito, o direito fardado.

Os brasileiros são surpreendidos por um novo instrumento jurídico em vigor: os Atos Institucionais. Logo aparecem em cena os legisladores dos quartéis, que decidem modificar a Constituição de 46 e limitar o alcance de seus poderes. O que ficava evidente para os operadores jurídicos era o fato de que uma outra ordem jurídica estava sendo formulada, no sentido de institucionalizar uma nova estrutura de Estado que apoiasse os rumos da revolução. No preâmbulo do Ato, os constituintes militares deixam claro que a autoridade não é decorrente do povo, mas do exercício de fato do poder. Ofendendo os princípios mais basilares do direito público, nomeadamente os da soberania constitucional, o Ato 1 suspendia tout court as garantias previstas na Constituição então vigente.

A publicação deste Ato recebeu, inclusive, a defesa de juristas renomados. O seu autor, Carlos Medeiros, declarou que sem a existência de um instrumento jurídico, o movimento de março se confundiria com um golpe de Estado.

O direito, por si só, não só forneceu as bases para para um legalismo torto, como constituiu-se em elemento legitimador para a manutenção de um regime de exceção.

Em 1967 é outorgada uma nova Constituição que, em linhas gerais, recepciona a doutrina do Estado de Segurança Nacional.

Observadores mais atentos já haviam percebido a existência de clivagens dentro do Estado de Segurança Nacional. De um lado, haviam os duros que desejavam a agudização do regime; de outro, os militares de perfil moderado, egressos da Escola Superior de Guerra, não escondiam o desconforto com a durabilidade do regime. Essas clivagens atravessavam os quartéis e fragilizavam o espírito de corpo da instituição Forças Armadas. Na sociedade civil cresciam os movimentos de protesto da massa de trabalhadores e da classe média. O Congresso estava preso às regras estabelecidas pela Constituição de 67, cuja esfera legisferante havia sido transferida, quase que por inteiro, ao Executivo. Além disso, os oficiais de linha dura, que planejavam um segundo golpe de Estado, aguardavam o momento certo para dar curso as suas intenções. O discurso do deputado Márcio Moreira Alves, em plenário da Câmara, ofereceu aos radicais aquilo que mais queriam: o endurecimento do regime.

Novamente surge em cena a figura do jurista de plantão, agora representado pelo advogado paulista Gama e Silva, ministro da Justiça do governo Costa e Silva. Em menos de 24 horas, o regime militar publica o Ato 5, suspendendo todas as garantias constitucionais e os direitos individuais. Instala-se o Estado de terror.

Para Max Weber, o Estado se caracteriza por deter o monopólio da violência física legítima, isto é, a supremacia dos meios de coerção física, coberta por uma legitimidade que se refugia no reino das leis. Portanto, o entendimento do papel do direito (a lei) é fundamental, pois permite apresentar com precisão a questão da repressão no exercício do poder. A lei, no particular, e o direito, no geral, sempre estiveram presentes na constituição e manutenção do poder. Toda forma estatal edificou-se sempre como organização jurídica, inclusive no Brasil. Daí, vale bem o que diz Poulantzas: nada mais falso que uma presumível oposição entre o arbítrio, os abusos, a boa vontade do príncipe e o reino da lei.

Na verdade, a lei é parte que integra a repressão e a organização de toda a violência exercida pelo Estado. O Estado edita e pronuncia a lei, e por aí se instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação da violência. A lei sempre acompanhou o exercício da violência e da repressão física.

Por outro lado, assinale-se, que, sem desejar opor violência à lei, o poder não se baseia somente na violência organizada, mas também na manipulação ideológico-simbólica, na organização do consentimento e na interiorização da repressão.

O Estado detém o monopólio da violência física legítima. Esta legitimidade que concentra a força organizada é a legitimidade racional-legal fundamentada na lei, isto é, a acumulação prodigiosa de meios de coação corporal pelo Estado, acompanha seu caráter de Estado de direito. Assim, o domínio e o poder do Estado se baseiam principalmente na violência física, mesmo que essa violência não traanspareça no exercício cotidiano do poder.

Entende Poulantzas que a colocação das técnicas do poder capitalista, a constituição dos dispositivos disciplinares, a emergência das das instituições ideológicas-culturais pressupõem a monopolização da violência pelo Estado, recoberta precisamente pelo deslocamento da legitimidade para a legalidade e pelo reino da lei.

Na realidade, direta ou indiretamente, de forma aberta ou não, a monopolização da violência legítima pelo Estado é o elemento determinante do poder. Já a lei organiza o campo repressivo como repressão daquilo que não se faz quando a lei proíbe e também daquilo que não se faz quando a lei exige que se faça.

Convém salientar, ainda, que a repressão não se esgota nem no exercício efetivo da violência, nem em sua interiorização, pois há um outro elemento que se deve levar em consideração: os mecanismos do medo, isto é, o medo como fenômeno político.

Com efeito, a lei detém um papel importante na organização da repressão, à qual não se limita: é igualmente eficaz nos dispositivos de criação do consentimento. A lei materializa a ideologia dominante que aí intervém mesmo que não esgote as razões do consentimento. A lei-regra, por meio de sua discursividade e textura, oculta as realidades político-econômicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas realidades para a cena política por meio de um mecanismo próprio de ocultação-inversão. Traduz assim a representação imaginária da sociedade e do poder da classe dominante. A lei é, sob esse aspecto, e paralelamente a seu lugar no dispositivo repressivo, um dos fatores importantes da organização do consentimento das classes dominadas, embora a legitimidade não identifique nem se limite à legalidade.

Contudo, o Estado não detém o monopólio da violência física ou simbólica na edição e aplicação da lei, pois freqüentemente ele age transgredindo a lei que edita, desviando-se da lei ou agindo contra a própria lei. O próprio Estado autoriza o não respeito à lei, justificando como razão de Estado. Isto significa que a legalidade é compensada por apêndices de ilegalidade, e que a ilegalidade do Estado está sempre inscrita na legalidade que instituiu. Todo sistema jurídico inclui a legalidade, assim como comporta, como já foi afirmado anteriormente, vazios e brancos, lacunas que não são simples descuidos causados pela operação ideológica de ocultação que sustenta o direito, porém dispositivos expressamente previstos, brechas para permitir ir além da lei, sem falar das violações puras e simples que o Estado faz de sua lei, que embora pareçam transgressões selvagens, pois não foram previstas na lei, assim mesmo fazem parte do funcionamento estrutural do Estado (Poulantzas:1980).

Na realidade, a ação do Estado sempre ultrapassa a lei, pois o Estado pode, dentro de certos limites, modificar sua própria lei.

O Estado também tem um papel específico na organização das relações ideológicas e da ideologia dominante, mediante o emprego da sua estrutura jurídica.

Ressalte-se, ainda, que a ideologia dominante invade os aparelhos de Estado, que têm por função elaborar e reproduzir esta ideologia. Sendo que a ideologia dominante intervém na organização dos aparelhos aos quais compete, principalmente, o exercício da violência legítima, inclusive no Judiciário.

Face ao exposto, não há como separar o emprego da força pelo Estado, sem que não exista uma estrutura legal que forneça os suportes para ação da violência legítima.

Desse modo, a lei concede total controle ao Estado autoritário das atividades subversivas ou revolucionárias, dotando os aparelhos repressivos de poderes praticamente ilimitados sobre a população em geral.

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Sobre o autor
Nilson Borges Filho

professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES FILHO, Nilson. O Direito da Razão ou a Razão do Direito?: Um breve histórico constitucional brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2445. Acesso em: 22 dez. 2024.

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