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A possibilidade de renúncia ao julgamento pelo tribunal do júri no Brasil

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CAPÍTULO 2 - QUANDO O TRIBUNAL POPULAR SE TORNA INJUSTO

2.1 Os crimes midiáticos

Apresentados os argumentos em favor da manutenção do Tribunal do Júri, é necessário também apontar os contrários, pois não há verdade absoluta. Na verdade, é de bom senso apontar o Tribunal Popular como ora justo e ora reprovável. Ainda que se entenda como fundamental a sua manutenção, também se defende a sua mitigação em casos que não há possibilidade de prevalecer a justiça.

Acontecimentos recentes tem dado espaço a um debate acerca da parcialidade do Tribunal do Júri, principalmente no que diz respeito aos crimes que tem ganhado destaque na mídia. Vladimir Aras (2010), a exemplo, defende que o julgamento popular se torna injusto nestes crimes, dos quais dispomos de inúmeros exemplos recentes: os casos Suzane von Richthoffen, Isabella Nardoni, Elisa Samúdio e João Hélio, apenas para citar.

Tais episódios foram divulgados tão massivamente pela imprensa que seria impossível imaginar um corpo de jurados que não estivesse influenciado ou com opinião já formada. Destaque-se um trecho introdutório do artigo que este membro do Parquet publicou na revista Custus Legis, demonstrando o seu inconformismo com o Tribunal do Júri:

“Porém, curiosamente, a plenitude da defesa, imprescindível ao fair trial, corre o risco de lesada pela própria instituição do júri, na medida em que juízes leigos podem, em algumas circunstâncias, deixar-se influenciar pelo calor dos eventos e pelo clamor das ruas, em prejuízo de um julgamento justo. Em tal cenário, o julgamento do réu pelos pares leigos pode levar a decisões injustas, animadas pela paixão e não pelas provas dos autos.

Por isto não há como negar que, em casos criminais midiáticos, há perceptível e importante tensão entre o direito fundamental ao devido processo legal e a um fair trial e a instituição do júri, com suas idiossincrasias”.

O caso Isabela Nardoni é emblemático neste ponto, tal foi a comoção popular, que pode ser verificada na aglomeração de pessoas em frente à porta do Tribunal onde ocorria o julgamento. A população enfurecida chegou a agredir o advogado do casal em julgamento, chamando-o de “defensor de assassino” e de outras palavras de baixo calão.

Tal comportamento é inaceitável em um estado democrático de direito, onde reinam os princípios da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório e o do devido processo legal. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória, alcançada por processos judiciais nos quais se assegura o contraditório e a plenitude de defesa, através de um devido processo legal, ditam os princípios.

O Conselho de Sentença formou-se de integrantes deste mesmo povo, revoltado com o acontecimento após dois anos de intensa acusação pelos canais midiáticos. Ademais, vê-se que o povo em geral pouco compreende o significado de um julgamento, onde é essencial a defesa dos acusados para que se torne justo.

Mais pareceu que o julgamento foi mero formalismo a ser cumprido para posterior aplicação da pena. Neste caso, nem mesmo um desaforamento seria capaz de atenuar este prévio julgamento, entendendo Vladimir Aras (2010) que este instituto é paliativo, sem força suficiente para compensar a influência da mídia, dispondo com acerto:

Contudo, num caso como o de Isabella Nardoni dificilmente o desaforamento resolveria o problema do viés condenatório do tribunal, evitando a formação de um júri viciado. As reportagens publicadas ao longo de dois anos pela imprensa foram massacrantes. A difusão massiva de dados do processo foi proporcional ao mal causado à inocente menina. Seria muito difícil encontrar em qualquer comarca do Estado de São Paulo, mesmo a mais longínqua, um ambiente razoavelmente “neutro”, no qual pudessem ser selecionados sete jurados para julgar a causa com verdadeira isenção de ânimo, ou sem ideias preconcebidas.

De igual forma, este entendimento pode ser aplicado a diversos outros casos, sendo mister que se busque novos mecanismos que tornem ainda mais justo o Tribunal Popular.

2.2 A convicção religiosa nos julgamentos

Verifica-se, outrossim, que os outros crimes com menos repercussão também são julgados pelo Tribunal do Júri, como o aborto. Recorrente é a discussão na sociedade quanto à moralidade do aborto, tendo em vista a divergência quanto à moralidade da conduta da abortante.

Se, por um lado, defende-se que a legalização do aborto é questão de saúde pública, e que a normatização do procedimento somente traria benefícios à gestante, posto que não precisaria buscar meios clandestinos de realizar seu intento, por outro os representantes religiosos atacam incessantemente qualquer representante político que iniciam algum debate sobre o tema, incitando desta forma todos os seus seguidores a fazer o mesmo.

Enfim, à parte do posicionamento provocado pelo fanatismo religioso no tão necessário debate social prévio à atividade legislativa, uma situação que merece melhor análise, pois desde já se verificam prejuízos, é o pré-julgamento de um corpo de jurados, no caso de um crime de aborto, quando este é composto por membros de uma comunidade bastante religiosa, ocasião em que o julgamento se torna mera formalidade para condenação.

O que se dizer então a respeito então, do induzimento, da instigação, e do auxílio ao suicídio, quando se verifica que toda a sociedade ainda discute acerca do assunto? Aponta Delmanto (2010):

A criminalização do auxílio ao suicídio, presente não só no Brasil, como também na França, no Canadá e em outros países, tem gerando polêmica quando a pessoa é portadora de doença terminal, estando lúcida ao desejar por fim ao sofrimento que o destino lhe impôs, mediante a sua própria morte, mas de forma indolor, com o auxílio de médicos.

Continua o doutrinador destacando os desdobramentos jurídicos do auxílio ao suicídio pelo mundo:

Na França, embora a eutanásia não esteja legalizada, em 1993 o Senado votou uma lei reconhecendo a título excepcional a “morte doce”. No Canadá, um portador de esclerose lateral amiotrófica entrou com uma ação visando que a Suprema Corte julgasse inconstitucional o crime de auxílio ao suicídio, alegando ter ele a liberdade e a autonomia para dispor da própria vida, não podendo o Estado impor a ele, em estado terminal, uma morte dolorosa e atroz, um atentado à sua dignidade”. (...) Todavia, em outros países, com fundamento na dignidade da pessoa que se encontra em estado terminal, tanto o “suicídio assistido” quanto a eutanásia têm sido aceitos. Lembramos a Holanda (Lei 14 de abril de 1994, desde que com autorização judicial) e sobretudo a Suíça (onde a prática tem sido freqüente)”.

Se tal assunto é polêmico a ponto de não se ter uma corrente forte dentre os estudiosos do direito, se a própria lei não conseguiu regulamentar de forma satisfatória as diversas modalidades de suicídio, não se pode esperar que o Tribunal Popular consiga ser justo, já que composto por pessoas que não se debruçaram em uma análise minuciosa e necessária sobre o tema.

Como esperar que um Conselho de Sentença formado por jurados fervorosamente religiosos, de religião que condene como pecado imperdoável o aborto, exista a possibilidade de absolvição dos réus?

2.3 A defesa pela extinção do Tribunal do Júri

Nesse ponto, defendem os críticos do júri que os magistrados togados, ainda que já superada a ideia de imparcialidade total em um julgamento, poderiam de forma menos relutante acatar argumentos técnicos, tais como excludentes de culpabilidade, ainda que estas se fundamentem em argumentos subjetivos.

Mendes, Coelho e Branco (2008), em um contexto diferente do ora tratado, embrenham-se em uma explicação acerca do papel do magistrado como hermeneuta, ou seja, o de conformar as normas constitucionais e legais com o mundo fático e o contexto atual da sociedade:

Sob essa perspectiva, pode-se dizer que a constante adequação das normas aos fatos — um trabalho essencialmente entregue à clarividência dos intérpretes-aplicadores — apresenta-se como requisito indispensável à própria efetividade do direito, o qual só funciona enquanto se mantém sintonizado com a realidade social, muito embora essa adequação não deva comprometer a autonomia dos modelos normativos e a sua pretensão de conformar, juridicamente, a sociedade segundo pautas axiológicas quanto possível independentes.

Mais adiante, aduziram:

Mesmo assim, para que o direito possa operar efetivamente e dar a cada um o que é seu, é necessário que os seus aplicadores funcionem como instâncias redutoras do descompasso entre os problemas sociais e as respectivas soluções legislativas, uma tarefa que apenas eles estão funcionalmente habilitados a desempenhar.

O que se pretende demonstrar que é que a atividade de julgar é bastante complexa, envolvendo, além de inúmeros outros fatores, um delicado equilíbrio na relação entre os órgãos do Poder Estatal, o Judiciário e o Legislativo, atuando o Judiciário como instância final na “elaboração” da lei, ou seja, aplicar a lei significa também participar do processo legislativo.

Sendo então a atividade judicante, por vezes apontada como o poder-dever estatal de dizer o direito, de tal importância e complexidade, talvez o mais correto seria restringir a aplicação do direito àqueles que receberam formação jurídica, ou, nas palavras dos autores, a quem está funcionalmente habilitados a desempenhar a tarefa judicante.

Forti (2009), baseando-se em argumentos utilizados por Mezzomo (2003), expõe os motivos pelos quais crê ser injustificada, nos dias atuais, a manutenção do Tribunal do Júri no Brasil. Apresenta um panorama completo que sintetiza todas as críticas lançadas sobre o Tribunal popular, pelo que vale a pena expô-los em sua completude.

Para ele, o Poder Judiciário, quando estruturado no Estado Democrático de Direito, possui uma Magistratura independente, autônoma e isenta, e protegida por uma série de garantias. Ademais, atua a magistratura de forma pública, sujeita à fiscalização ampla da sociedade. Neste sentido, defende que não se justifica mais o julgamento por jurados, sendo questionado, inclusive, se já se justificou em algum momento neste.

Tais garantias processuais asseguram a imparcialidade do juiz togado. Este exerce a atividade de julgar profissionalmente, tendo assim melhores condições de avaliar não só os autos e o caso trazido a julgamento, mas também com mais consciência da importância da própria função de julgar.

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Já os jurados leigos, neste ponto de vista, possuem menos recursos para julgar com imparcialidade, podendo sofrer pressão das famílias dos acusados, ou dos meios de intimidação de que dispõem grupos criminosos.

Por conseguinte, o jurado leigo irá exercer uma função nova e desconhecida, desacostumado como o linguajar jurídico e com termos técnicos, levando-o a julgar pelo que já conhecia do caso através da mídia ou de outras fontes não oficiais, ou mesmo se baseado em provas que não analisa satisfatoriamente, valorando-as apressada e desatentamente, após longas e cansativas sessões — isto quando não julga impulsionado por interesses próprios.

A ausência de conhecimentos técnicos do jurado, continua argumentando, não se justifica pelo fato deste somente se pronunciar em relação aos fatos e, nas suas palavras, “o julgamento pelo ‘homem médio' é a razão de ser do Juiz: primeiro, porque haverá necessidade de exercício constante de apreciação intelectiva das provas, valorando-as”.

No mais, a quesitação envolverá conceitos jurídicos, tais como violenta emoção, provocação injusta, torpeza, motivo fútil, traição, que por mais que possam ser compreendidos superficialmente pelos jurados, não poderão ser objeto de "apreciação acurada e serena dentro de cada caso, tarefa essa incompatível com o turbilhão da plenária".

O que explica tais discrepâncias, para os articulistas, é o fato de os jurados terem contato pela primeira vez com uma atividade a que não estão acostumados, restando perplexos quando encaram a complexidade das questões apresentadas, expondo, em seguida, talvez a maior e mais contundente crítica ao Tribunal do Júri, ou seja, de que este é um teatro. Alegam neste sentido:

Os argumentos valem menos pela sua solidez e conclusividade do que pela forma teatral com que são expostos, de modo que a capacidade cênica dos "atores" lhes conferem mais probabilidade de êxito quanto ao convencimento dos julgadores leigos que propriamente a solidez de seus argumentos. Isso faz com que os "atores" mais experientes tenham mais probabilidade de êxito, e é inegável que, principalmente em cidades do interior ou no julgamento de réus que não têm condições de contratar advogados experientes, a habilidade dos Promotores majora o risco de condenações sem provas suficientes. Diante de um Juiz técnico, por outro lado, Promotor e Advogado agem de forma técnica, argumentativa, e não teatralizada, o que faz com que o foco do julgamento esteja no "racional", e não no "emocional".

Como último argumento suscitado, aduzem que o contraditório e a ampla defesa refletem na imposição constitucional da fundamentação da sentença, pois esta é que permite se fazer uma correlação lógica da decisão com o conteúdo do processo. Prossegue:

De nada adianta garantirmos a participação ativa e profícua do réu e uma defesa técnica altamente competente cujo resultado, baseado em um substrato probatório sólido e conclusivo, indique uma absolvição, se os jurados não estão obrigados a permanecerem adstritos aos autos e à lógica ou, dir-se-ia, à justiça. Os jurados, dispensados que estão, pelo sigilo das votações, de fundamentar, julgam com base na íntima convicção não motivada, e, ao prescindir da necessária correlação entre a atividade processual das partes e o resultado do julgamento, cujos reais motivos se desconhecem, faz cair por terra qualquer possibilidade de fiscalização da sociedade acerca dos 'porquês' e, portanto, do acerto ou desacerto do julgado.

Posta desta maneira a questão, não há como negar que os críticos possuem argumentos plausíveis e bem fundamentados. Se há motivos para se exaltar o Tribunal do Júri como uma bela manifestação democrática da vontade popular, estes também existem no sentido contrário, chegando-se a uma questão que a primeira vista parece intransponível: sopesando-se os prós e contras, há motivos para a manutenção do Tribunal Popular?

Na verdade, defendemos que esta análise está fora de questão. Afinal, o Tribunal do Júri possui previsão constitucional no rol de direitos e garantias fundamentais, sendo, por força do art. 60, § 4º, da Constituição, uma cláusula pétrea. Ou seja, é impossível suprimir totalmente o Tribunal do Júri em nossa ordem constitucional.

Assim, para a efetiva retirada do Tribunal do Júri no nosso ordenamento jurídico, seria necessária a elaboração de uma nova Carta Magna, hipótese completamente descartável em nosso atual contexto político. A manutenção do Tribunal do Júri não se tornou insustentável, a ponto de clamar por tal solução drástica.

A Constituição Federal de 1988 ainda é bastante aclamada, pelo avanço que trouxe à sociedade brasileira e ao direito pátrio. Ademais, o Tribunal do Júri, longe de trazer prejuízo suficiente à sociedade que demande uma nova Constituição, possui muitos aspectos positivos em seu favor. O debate deve então prosseguir em outro sentido.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Paulo Victor Oliveira. A possibilidade de renúncia ao julgamento pelo tribunal do júri no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3612, 22 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24474. Acesso em: 23 nov. 2024.

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