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A possibilidade de renúncia ao julgamento pelo tribunal do júri no Brasil

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CAPÍTULO 3 - A RENÚNCIA AO JULGAMENTO PELO JÚRI

3.1 A renúncia no mundo

Buscou-se demonstrar, até o presente momento, que o sentido da inclusão do Tribunal do Júri no artigo 5º da Constituição foi de conferir, principalmente, um Tribunal mais humanitário ao réu, um benefício. Todavia, nem sempre é vantajoso ser julgado pelo Tribunal Popular. Visando suprimir tal defeito, é imperioso buscar alguma solução jurídica para essa questão.

Neste intuito, entendemos que a melhor solução é a renúncia ao julgamento pelo Tribunal do Júri, por opção do réu, cujo advogado deverá, através de seus conhecimentos técnicos e experiência jurídica, eleger o juiz para a causa, de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto.

Cumpre destacar que, segundo aponta a doutrina, os direitos e garantias fundamentais são irrenunciáveis, sendo mais correto falar em não exercício dos mesmos. Entretanto, utilizaremos o termo renúncia em sua conotação usual, por ser de mais fácil assimilação ou entendimento.

Diversos países que adotam o Tribunal Popular acatam a possibilidade de renúncia, bem como outras formas de tentar garantir um julgamento justo. Aras (2010) aponta no direito americano (um dos que mais utiliza o Tribunal do Júri) os principais mecanismos para essa tentativa de equilíbrio.

O primeiro deles é investigação preliminar que é feita, para tentar descobrir se os jurados possuem algum preconceito sobre o caso em questão, o que possibilita as recusas motivadas, diferente do que ocorre no Brasil, onde cada uma das partes possui três recusas imotivadas. Ademais, o direito americano comporta a determinação de sigilo absoluto em relação ao processo.

O método mais eficaz, no entanto, é a livre recusa do acusado em ser julgado por um Conselho Popular. Trata-se do waiver of jury trial — permitida em razão do trial by jury ser um direito previsto na Constituição norte-americana. Explica-se, com o complemento da lição de Forti (2009), que é dado ao acusado o direito de se declarar culpado ou inocente, geralmente, através das plea bargains ou plea agreements.

Costuma-se então a realização de julgamento por um juiz togado (bench trial) quando o acusado se declara culpado, enquanto que o julgamento pelo júri geralmente ocorre quando se declara inocente. Em razão de cada estado americano possuir legislação diferente, alguns não permitem a renúncia em certos casos, como Luisiana, que veda a opção em caso de crime punido com pena de morte, e Nova Iorque, em caso de homicídio doloso qualificado.

Nos demais países cujo ordenamento jurídico baseia-se na common law, em que o Tribunal de Júri possui forte tradição, as possibilidades de renúncia são recentes, e não são previstos como um direito do acusado, mas como opção da promotoria. Na Irlanda, tal opção é possível a partir do Terrorism Act, de 2000, em caso de acusação de terrorismo.

Já na Inglaterra e no País de Gales, onde a previsão do júri remota à Magna Carta de 1215, e cujos últimos julgamentos se deram sem júri em 1641, pela Star Chamber (tribunal de exceção usado para perseguição política), a Criminal Justice Act introduziu em 2003 duas possibilidades de renúncia: para crimes financeiros (Crown Court) e quando há ameaças a jurados e risco de manipulação (júri tampering), sempre para promotoria.

Em Portugal, por fim, é previsto na Constituição que tanto a acusação quanto a defesa podem requerer um julgamento por um colegiado de juízes em casos de crime de terrorismo e de criminalidade altamente organizada.

Neste sentido, pode-se apontar que o direito alienígena guarda certa coerência quanto à possibilidade de renúncia. Nos países em que o júri é um direito do acusado, é permitido dispor deste direito, ao passo em que nos países onde o Tribunal do Júri simplesmente compõe o Poder Judiciário, não se garante ao acusado tal prerrogativa.

3.2 A renúncia no Brasil

Cabe aqui retomar a discussão acerca da atribuição da qualidade de direito fundamental do Tribunal do Júri no Brasil. Como já exposto em capítulo anterior, Nucci (2010) defende que o Tribunal do Júri somente é uma garantia ao devido processo legal, posto que é o rito do Júri o procedimento adotado pela Constituição Federal para processar acusados de cometimento de crimes dolosos contra a vida; ou mesmo um direito da sociedade, de participar ativamente do Poder Judiciário.

Em sentido oposto, defendemos que a previsão no artigo 5º da Constituição tem por objetivo alçar o Tribunal do Júri como direito fundamental do acusado de ser julgado por um Tribunal Popular, visto que, como aponta Oliveira (2009) e Lopes Júnior (2009), os direitos fundamentais constituem-se em proteções ao indivíduo em face do Poder Estatal.

Posto isso, há quem entenda que, pelo simples fato de constituir um direito do réu, a renúncia a tal direito já é permitida pela Constituição, e somente não se aplica no Brasil atualmente por falha interpretativa. Esse erro ocorre em virtude da ausência de abordagem mais profunda da característica do Tribunal do Júri como direito ou garantia fundamental, tanto pela doutrina como pela jurisprudência.

Forti (2009) propõe que o artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição seja reinterpretado, para possibilitar ao réu optar pelo júri. Também parte do pressuposto de que o Tribunal do Júri pode, dependendo do caso concreto, ser favorável ou prejudicial ao réu. Argumenta que tal interpretação é a que melhor que se pode extrair do caráter de direito fundamental:

Como visto, o texto da legislação infraconstitucional e a jurisprudência minimizam a importância do Tribunal do Júri como garantia. O problema maior, a nosso ver, foi diagnosticado por ROBERTO KANT DE LIMA, que denuncia como, no Brasil, o Júri não é tratado como direito subjetivo, como opção do acusado, mas sim como instituição judiciária obrigatória (isto é, como mera regra de competência). (...) A conseqüência dessa garantia é bastante clara: se o júri é uma instituição reconhecida como garantia individual, o acusado tem o direito de não optar por ele, sob pena de isto constituir uma obrigação ao invés de assegurar um direito. O Tribunal do Júri, portanto, só poderá cumprir seu papel de "garantia fundamental" se ao réu for concedido o direito de optar, na fase inicial do processo (após o que se dará a preclusão da oportunidade de escolha), entre a submissão da denúncia à apreciação de um Juiz togado e o julgamento pelo Júri. As garantias que o atual estágio evolutivo do nosso Direito faz decorrer da atuação independente e fundamentada da Magistratura de carreira só podem ceder espaço ao julgamento não fundamentado realizado por leigos se contar com a concordância expressa do réu. Se assim não for, o Júri não será verdadeiramente uma garantia individual fundamental, mas, como bem notou ROBERTO KANT DE LIMA, uma mera regra de competência jurisdicional. E, pelas mesmas razões, se o réu desejar - e manifestar oportunamente esse seu desejo, sob pena de preclusão - ser julgado pelo Júri, a previsão do foro por prerrogativa de função não pode se impor em detrimento daquilo que a Constituição prevê como garantia do indivíduo. (grifos não constantes no original)

Ao final de seu artigo, Forti (2009) aduz que não há nada na Constituição ou nas leis vigentes que contrariem a conclusão a que chegou, a renúncia é um direito de aplicabilidade imediata, não necessitando de alteração legislativa para o seu exercício.

Neste mesmo sentido é o posicionamento de Ribeiro (1998), em artigo intitulado como “Júri: um direito ou uma imposição?”:

—O acusado de crime doloso contra a vida tem a alternativa de ser julgado por um juiz togado, em vez de jurados? A resposta, pela prática atual, só pode ser não. O júri, na leitura feita pela doutrina e pela jurisprudência atualizadas, é obrigatório e se restringe ao julgamento de crimes dolosos contra a vida. Essa resposta não é fiel ao texto constitucional. Em primeiro lugar, o júri na Constituição Federal, é direito e garantia do indivíduo; não é órgão do Poder Judiciário; está inserido no art. 5º, e não no artigo 92. A propósito, em praticamente todas as Constituições estaduais, o júri foi inserido no título do Poder Judiciário, como órgão deste Poder. Mantiveram na íntegra os textos anteriores à Constituição Federal de 1988, sem perceber a reforma da lei sem alterar seu texto. Não notaram que uma idéia velha passou a exigir espírito novo.(...) Se o júri no Brasil é um direito garantido, se é um direito individual por classificação constitucional, não pode ser impositivo; não pode ser obrigatório. A nova doutrina dos direitos e garantias individuais contempla a renúncia a eles. (...) A Constituição Federal autoriza, como regra geral, o julgamento dos acusados pelo Poder Judiciário. A garantia individual é o direito de opção pelo julgamento popular. (...) A consequência desta garantia é bastante clara: se o júri é uma instituição reconhecida como garantia individual, o acusado tem o direito de não optar por ele, sob pena de isto constituir uma obrigação ao invés de assegurar um direito. (grifos não constantes no original)

Não obstante tomemos como correta toda a fundamentação apresentada, não podemos concordar com a conclusão a que chegaram os articulistas. A possibilidade de renúncia não é tão simples assim, a ponto de uma nova interpretação do texto constitucional possibilitá-la, imediatamente.

Trata-se, a nosso ver, de um esforço interpretativo, visto que as redações atuais dos textos da Constituição e do Código de Processo Penal não permitem a renúncia. O primeiro ponto a ser analisado é a força normativa que possui este último em relação ao Tribunal do Júri.

Dispõe a Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, que é reconhecida a instituição do júri, com a instituição que lhe der a lei, assegurados a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos, e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra vida.

Trata-se, em razão do no trecho “com a instituição que lhe der a lei”, de uma norma constitucional de eficácia limitada, como aponta a doutrina. Patente então é a intenção do constituinte em dotar o legislador infraconstitucional de poderes para regulamentar o Tribunal do Júri.

As normas constitucionais de eficácia limitada possuem aplicabilidade mediata ou indireta, ou seja, é imprescindível para que possam efetivamente entrar em vigor a sua regulamentação por uma norma infraconstitucional. Daí se depreende que o campo de atuação do legislador é amplo, sendo-lhe permitido dispor de toda a estrutura que terá o Tribunal Popular.

Desta forma, o Código de Processo Penal é a lei que complementa a Constituição Federal, responsável pela regulamentação do Tribunal do Júri. Prevê, no Livro II (Processos em Espécie), Título I (Do Processo Comum), Capítulo II (Do Procedimento Relativo Aos Processo de Competência do Tribunal do Júri), do artigo 406 ao 497 as normas de organização da instituição do Tribunal do Júri.

Cumpre ressaltar que, embora as normas de eficácia limitada não possuam força para, por si só, fazer valer seu mandamento, elas produzem um “mínimo de efeito, ou ao menos o efeito de vincular o legislador infraconstitucional aos seus vetores”, conforme explica Lenza (2011). Aduz ainda que:

Nesse sentido José Afonso da Silva, em sede conclusiva, observa que referidas normas têm, ao menos, eficácia jurídica imediata, direta e vinculante já que: a) estabelecem um dever para o legislador ordinário; b) condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem.

É assim que, atendendo ao estabelecido pela Carta Magna, o Código de Processo Penal protege a competência do Tribunal do Júri, como se vê nos artigos 74 e 78, e respectivos parágrafos, como exemplo:

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Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.

§ 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.

Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:

I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri;

Por tal razão, de plano está descartada a hipótese de renúncia atualmente, por imposição legal do julgamento pelo Conselho Popular. Afinal, a norma vigente é, até que se prove o contrário, compatível com a Constituição Federal. Sendo ainda a norma que regulamenta o procedimento do Tribunal do Júri, é incabível ser desconsiderada, sob a simples alegação de que fere um direito constitucional.

De início, em razão do entendimento predominante na atualidade ser no sentido de obrigatoriedade de julgamento pelo Tribunal do Júri, nos casos de crimes dolosos contra a vida. O Código de Processo Penal, que estrutura tal julgamento, reforça esta competência, prevendo os crimes que alcança e determinando que esta competência prevaleça, quando em detrimento com as demais.

Posta assim a questão, no mínimo uma reforma legal seria necessária para possibilitar a renúncia. Mas não é só. Entendemos que o próprio texto constitucional, na forma em que está redigido atualmente, não permite a renúncia.

3.3 O Tribunal do Júri como cláusula pétrea

3.3.1 A Previsão do Tribunal do Júri como direito fundamental

A bem da verdade, a redação do inciso XXXVIII não foi das mais felizes, já que não cumpriu esclarecer de forma satisfatória o motivo pelo qual a instituição do júri foi prevista dentre os direitos e garantias fundamentais. Não chega a ser absurda a hipótese de somente constar no rol de direitos e garantias fundamentais por tradição, já que Constituições anteriores assim o fizeram.

Do mesmo modo que também não é absurda a hipótese de constar no rol de direitos e garantias fundamentais para torná-lo cláusula pétrea, por força do artigo 60, §4º, IV, da Constituição, e assim tornar impossível a extinção do Tribunal do Júri, enquanto viger a nossa Carta Magna.

Como já exposto, assim ocorreu na Constituição de 1891, pioneira em prever o a instituição do Júri no capítulo destinado à declaração dos direitos dos cidadãos brasileiros, transferência motivada pela defesa do instituto por Rui Barbosa, que queria preservá-lo em nosso ordenamento jurídico, segundo Nucci (2010).

Outra crítica a ser feita em relação à redação do inciso XXXVIII é relacionada à percepção que esta norma provoca, de que o Tribunal do Júri foi previsto como um fim em si mesmo. O texto constitucional dispõe, claramente, que é assegurada à instituição do júri a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida.

Destarte, este é um dos problemas provocados pela previsão de uma norma de organização judiciária como um direito fundamental. Ao passo que todos os órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário recebem, como entes abstratos, uma competência, a qual evidentemente será exercida por seus membros, ao Tribunal do Júri mais parece que a sua competência é um direito.

Afinal, o inciso XXXVIII dispõe que a competência lhe é assegurada, como se um direito fosse, e um direito imutável, por ser cláusula pétrea. É o sentido que uma interpretação gramatical aponta, como se ao Tribunal do Júri fosse garantido o direito de existência e de irredutibilidade de competência.

Inobstante a tudo isso, desde os motivos pelos quais o Tribunal Popular foi inserido no artigo 5º, até as incongruências que isso pode causar, o fato é que o Tribunal do Júri atualmente é um direito fundamental, em seu sentido material, e não apenas formal, como defende Nucci (2010). Neste sentido aponta Ricardo Brás[4], ao discorrer acerca da interpretação das normas constitucionais:

Com todo o respeito ao Mestre Ferreira Filho entendo que essa visão, na atualidade, não é a mais adequada, vez que há diferenças entre: (a) mens legislatoris = vontade do legislador; e (b) mens legis= vontade da lei.

Deve-se prestigiar a vontade e o espírito da lei, no nosso caso específico a Constituição, ou seja, a mens legis.

Nesse sentido, esclarece Dirley Cunha Junior[5] que não é finalidade da interpretação jurídica elucidar a vontade do legislador (a mens legislatoris). A interpretação não pode ser reconduzida a uma atividade de reconstrução do pensamento do legislador. O que se interpreta é o texto à luz do caso ao qual ele vai ser aplicado e concretizado; logo, o que se busca na interpretação é construir o sentido do texto da norma em relação à sua realidade (a mens legis), que, ao fim de seu processo de positivação, adquire vida própria e autônoma, separando-se do legislador.

Ou seja, é característica da norma se desvincular da pretensão original do legislador, embora esta não seja ignorada, como se observa nas interpretações histórica e teleológica. Segundo Nascimento (2003), a interpretação teleológica busca identificar a finalidade que o legislador quis dar à norma.

No entanto, esse tipo de interpretação, também conhecido por interpretação sociológica, deve ser observado com restrição. Para Friede (2000), deve ser feita em último lugar, pois existe o risco de o intérprete acabar se confundindo com o legislador, criando normas onde não existem, ou deturpando os seus verdadeiros significados.

De qualquer forma, por todos os motivos que já foram expostos, o Tribunal do Júri é, primordialmente, um direito fundamental do réu. E assim sendo, o texto constitucional se mostra contraditório, pois ao mesmo tempo em que prevê um direito, o torna uma obrigação. Partindo deste pressuposto, resta analisar agora de que forma seria possível a reforma do inciso XXXVIII, sem atentar contra o mandamento do art. 60, artigo 60, § 4º, IV.

Mezzomo (2003) que defende, por sua vez, a supressão total do Tribunal do Júri, aponta uma solução inusitada. Para ele, a Constituição, em razão da qualidade inaugural, autônoma e ilimitada juridicamente do poder constituinte originário, “só pode ser jurídica à luz de um direito natural, e que materializa em um ‘poder de fato’ que a legitima”.

E, pela moderna concepção do Estado Democrático de Direito, herança do liberalismo, o poder fundante da Constituição é o povo, a soberania popular. Tal poder não encontra qualquer limitação, como se pode verificar, inclusive, no parágrafo único do artigo 1º da Constituição: “Todo poder emana do povo”.

Constrói então o pensamento silogístico, baseado no brocardo jurídico cui licet quod est plus, licet utique quod est minus, ou seja, se o povo possui soberania popular para promulgar uma nova Constituição, rompendo completamente a eficácia da anterior, possui então o poder de alterar qualquer dispositivo constitucional. Expõe, in verbis:

Se a soberania popular pode o mais, que é renegar uma ordem constitucional inteira substituindo-a, como se fez na CF/88, pode o menos que é alterar um dispositivo sem que se lhe possa opor o art. 60 § 4º da CF. Um movimento dessa espécie opera espontaneamente no que diz respeito à iniciativa, que prescinde de qualquer previsão legal mesmo porque à Constituição fenece poder para comandar um poder que lhe é antecedente e superior.

E assim, para Mezzomo a vontade popular, poderia ser conferida através de um plebiscito, e caso ficasse comprovado o descontento da maioria com a instituição, seria possível a sua supressão do ou alteração do texto do inciso XXXVIII do art. 5º.

Entretanto, conforme lecionam Mendes, Coelho e Branco (2008), ao discorrerem sobre as limitações materiais impostas ao poder reformador constitucional, a saber, as cláusulas pétreas, explicam que estas se fundamentam na necessidade de preservar a identidade básica da Constituição, mesmo que as reformas sejam necessárias. E aduz:

Esses limites, é claro, não têm força para impedir alterações do texto por meios revolucionários, mas, se, com desrespeito a essas cláusulas pétreas, impõe-se a mudança da Constituição, ao menos se retira do procedimento “a máscara da legalidade”.

Destarte, não há amparo constitucional para a supressão total de algum direito ou garantia fundamental. Ainda que não se discorde da força do poder popular, ou de qualquer outra atividade revolucionária para alterar a Constituição, tal alteração estará rompendo com a atual, e não encontrará nela respaldo.

Pelo contrário, atenta contra o próprio conceito de Constituição como norma fundamental e legitimadora do ordenamento jurídico. Deve a Constituição ter força normativa suficiente para se preservar válida e em conformidade com seu próprio texto enquanto vigente.

A Constituição Federal de 1988 é apontada pelos doutrinadores ora como rígida, ou seja, com procedimento de alteração mais dificultoso em relação ao da legislação de hierarquia inferior, ora como super-rígida, por possuir cláusulas pétreas. Tais cláusulas se justificam como normas que mantém a unidade constitucional, ou um núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário.

Não pode, desta forma, legitimar uma alteração substancial em seu corpo, qual seja, a supressão de um direito fundamental, enquanto que prevê expressamente no sentido contrário. Mendes, Coelho e Branco (2008), ao discorrerem sobre as três correntes acerca da validade da cláusula pétrea, defendem a sua imprescindibilidade, afirmando que “eliminar a cláusula pétrea já é enfraquecer os princípios básicos do projeto do constituinte originário garantidos por ela”.

Pelo exposto, entendendo que a retirada do Tribunal do Júri, pelo meio que fosse, acabaria por retirar toda a força normativa da Constituição Federal de 1988, estabelecendo-se assim nova ordem constitucional; e como já defendido anteriormente, os eventuais prejuízos trazidos pelo Tribunal Popular não possuem o condão de clamar por uma nova Constituição, não há como se aceitar a retirada do inciso XXXVIII por plebiscito.

3.3.2 A mutabilidade das cláusulas pétreas

Superada então esta hipótese, é mister destacar que a competência do Tribunal do Júri não é absoluta. Os institutos do desaforamento e do foro especial por prerrogativa de função apontam nesse sentido, conforme já exposto anteriormente. O entendimento doutrinário e jurisprudencial não oferecem qualquer resistência à essa mitigação da competência. Nesse sentido:

A competência do Tribunal do Júri não é absoluta. Afasta-a a própria CF, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, a competência de tribunais – arts. 29,  VIII; 96, III; 108, I,  a; 105,  I,  a; e 102, I,  b e c. (HC 70.581, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 21-9-1993, Segunda Turma, DJ de 29-10-1993.)

O réu, na qualidade de detentor do mandato de parlamentar federal, detém prerrogativa de foro perante o STF, onde deve ser julgado pela imputação da prática de crime doloso contra a vida. A norma contida no art. 5º, XXXVIII, da CF, que garante a instituição do júri, cede diante do disposto no art. 102, I, b, da Lei Maior, definidor da competência do STF, dada a especialidade deste último. Os crimes dolosos contra a vida estão abarcados pelo conceito de crimes comuns. Precedentes da Corte. A renúncia do réu produz plenos efeitos no plano processual, o que implica a declinação da competência do STF para o juízo criminal de primeiro grau. Ausente o abuso de direito que os votos vencidos vislumbraram no ato. Autos encaminhados ao juízo atualmente competente. (AP 333, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 5-12-2007, Plenário, DJE de 11-4-2008.) (grifos não constantes no original)

Assim sendo, também vale lembrar a Súmula 721, segundo a qual a competência constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro especial previsto em Constituição Estadual.

Nesta esteira é que entendemos que uma emenda constitucional teria força suficiente para permitir a renúncia ao julgamento pelo júri, tendo em vista que não há hierarquia entre as normas constitucionais, e somente a própria Constituição Federal pode prever limitações a si mesma.

Um possível impasse surgiria, entretanto, em razão da existência ou não do caráter de imutabilidade das cláusulas pétreas. Preliminarmente, interessante se faz notar o texto do art. 60, § 4º, IV: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais”.

É de se considerar que a proibição visa impedir deliberação acerca de emenda que venha tentar abolir algum direito ou garantia fundamental; não se proíbe, como se depreende do texto constitucional, a reforma do texto constitucional, mas tão somente a supressão dos direitos e garantias.

Nesse sentido aponta Lenza (2011), ao defender a possibilidade da redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos:

Esse tema foi enfrentado neste estudo no item 19.9.15 e concluímos ser perfeitamente possível a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, já que o texto apenas não admite a proposta de emenda (PEC) que tenda a abolir o direito e garantia individual. Isso não significa, como já interpretou o STF, que a matéria não possa ser modificada. O que não se admite é reforma que tenda a abolir, repita-se, dentro de um parâmetro de razoabilidade.

Reduzindo de 18 para 16 anos o direito à inimputabilidade, visto como garantia fundamental, ele não deixará de existir, e eventual modificação encontrará, inclusive, coerência com a responsabilidade política de poder exercer a capacidade eleitoral ativa (direito de eleger) a partir de 16 anos. (grifos não constantes no original)

É nesta esteira que defendemos que entendemos que uma emenda constitucional seria a solução jurídica hábil a modificar o inciso XXXVIII, de forma a melhor discorrer sobre a matéria, e tornando mais claro o caráter de direito fundamental da norma.

Muito embora o entendimento parte considerável da doutrina seja pela imutabilidade total das cláusulas pétreas, é claro o texto constitucional quando utiliza as palavras “tendentes a abolir”. Defendem os doutrinadores que possibilitar a reforma dos dispositivos constitucionais petrificados seria, de certa forma, abolir parcialmente seu mandamento.

Tal ponto de vista, entretanto, não se coaduna com a finalidade das cláusulas pétreas. É certo que novos direitos e garantias fundamentais podem ser criados, e desta forma, também receberão a proteção do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Neste sentido, Marmelstein (2008):

Nada impede, portanto, que novos direitos sejam acrescentados ao rol de direitos fundamentais através da emenda à Constituição. Pode-se mencionar, por exemplo, o direito à rápida duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII) e o direito à moradia (art. 6º). Eles não estavam no rol originário na Constituição de 88, tendo sido acrescentados, respectivamente, pela Emenda Constitucional 45/2004 e pela Emenda Constitucional 26/2000. Mesmo assim, uma vez incluídos no texto por emenda constitucional, eles se tornam também cláusulas pétreas. Vale ressaltar que o mesmo raciocínio se aplica aos tratados internacionais de direitos humanos que sejam incorporados ao direito brasileiro com força de emenda constitucional, observando o quorum do art. 5º, §3º, da CF/88. Nesse caso, o tratado internacional de direitos humanos também se tornará cláusula pétrea, não podendo mais ser abolido de forma arbitrária.

Por este prisma deve então ser analisada a possibilidade de modificação dos dispositivos petrificados, quando se almeja ampliar o direito nele contido, ou modificá-lo para melhor atender a sua finalidade, como ora é defendido.

O colendo Supremo Tribunal Federal já se manifestou acerca da mutabilidade das cláusulas pétreas, mormente no que tange aos demais incisos do § 4º do artigo 60. Foi o que ocorreu no julgamento do Mandado de Segurança de nº 23.074-3, do Distrito Federal, cujo relator foi o ínclito ministro Sepúlveda Pertence:

EMENTA: Emenda constitucional: limitações materiais (cláusulas pétreas); controle jurisdicional preventivo (excepcionalidade); a proposta de reforma previdenciária (PEC 33-I), a forma federativa de Estado (CF, art. 60, § 1º) e os direitos adquiridos (CF, art. 60, § 4º, IV, c/c art. 5º, 36): alcance das cláusulas invocadas: razões do indeferimento da liminar. (...)

Duas são as “cláusulas pétreas” que os impetrantes pretendem ameaçadas pela proposta: a que representa a “forma federativa de Estado” (CF, art. 60, § 4º, I) e a que, vedando proposições tendentes a abolir os “direitos e garantias individuais”, protege os direitos adquiridos. (...)

Reitero de logo que a meu ver as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. Convém não olvidar que, no ponto, uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado. Nesta linha, faz pouco, ao votar na ADIn 1.749, pude acentuar:

Na ADIn 98, a propósito do princípio da separação e independência dos poderes, permiti-me algumas digressões para mostrar que tais princípios constitucionais, quando consagrados na Constituição Federal e impostos à observância dos Estados, ou mesmo transformados em cláusula pétrea, não são conceitos abstratos: o conteúdo positivo deles há de ser extraído da versão concreta da separação de poderes ou da Federação acolhida na Constituição mesma.

Isso não significa, a meu ver, que, no dimensionamento de tal cláusula de intangibilidade, se tenham petrificados todos os pormenores constitucionais relativos à Federação, de tal modo que qualquer alteração deles, como na distribuição de renda ou dos encargos a cada um dos entes federativos, significasse violação ao limite material do poder constitucional.

Por isso, na espécie, afigura-se exagerado afirmar, como quer a impetração, que, na PEC 33-I, a redação proposta para o art. 40 CF tenda a abolir a “forma federativa de Estado”. (...) (MS 23047 MC, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 11/02/1998, DJ 14-11-2003 PP-00014 EMENT VOL-02132-13 PP-02552). (grifos não constantes no original)

Destarte, o acórdão do Pretório Excelso discorre brilhantemente sobre a não imutabilidade das cláusulas pétreas, informado que o fim almejado do artigo 60, § 4º é a proteção do núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais, e que o “engessamento” constitucional mais funciona como um atrativo às rupturas revolucionárias ou aos golpes de Estado, já que tornam a Carta Magna um texto insensível às mudanças sociais.

Em outra oportunidade, como no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 2.024-2, também do Distrito Federal, não foi outro o entendimento, senão o de possibilidade de modificação de cláusula pétrea, desde que não tenda a abolir as normas protegidas:

Ação direta de inconstitucionalidade: seu cabimento – sedimentado na jurisprudência do Tribunal – para questionar a compatibilidade de emenda constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição ao poder constituinte derivado: precedentes. Previdência social (CF, art. 40, § 13, cf. EC 20/1998): submissão dos ocupantes exclusivamente de cargos em comissão, assim como os de outro cargo temporário ou de emprego público ao regime geral da previdência social: argüição de inconstitucionalidade do preceito por tendente a abolir a ‘forma federativa do Estado’ (CF, art. 60, § 4º, I): improcedência. A ‘forma federativa de Estado’ – elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. À vista do modelo ainda acentuadamente centralizado do federalismo adotado pela versão originária da Constituição de 1988, o preceito questionado da EC 20/1998 nem tende a aboli-lo, nem sequer a afetá-lo. (...)

A matéria da disposição discutida é previdenciária e, por sua natureza, comporta norma geral de âmbito nacional de validade, que à União se facultava editar, sem prejuízo da legislação estadual suplementar ou plena, na falta de lei federal (CF 88, arts. 24, XII, e 40, § 2º): se já o podia ter feito a lei federal, com base nos preceitos recordados do texto constitucional originário, obviamente não afeta ou, menos ainda, tende a abolir a autonomia dos Estados-membros que assim agora tenha prescrito diretamente a norma constitucional sobrevinda. (ADI 2.024, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 3-5-2007, Plenário, DJ de 22-6-2007.)

Sendo assim, constatado não haver óbice, pela visão do Supremo Tribunal Federal, órgão incumbido da defesa constitucional, à modificação de cláusulas pétreas, também não deve haver óbice à modificação do inciso XXXVIII.

Vale ratificar que tal supressão encontra ampara tanto na jurisprudência quanto na doutrina, embora não seja unânime nesta última. Mais uma vez, é interessante destacar o posicionamento de Marmelstein (2008), que brilhantemente discorreu sobre a mutabilidade das cláusulas pétreas, corroborando com a tese de que as necessárias mudanças coíbem, inclusive, as drásticas rupturas com a ordem constitucional vigente:

Na verdade, é preciso reconhecer que a Constituição de 1988 pode sim ser melhorada, inclusive naquilo que foi considerado como cláusula pétrea. No entanto, aparentemente, já existem mecanismos capazes de possibilitar esse aperfeiçoamento do texto constitucional, antes de se partir para soluções mais drásticas de ruptura institucional. A reforma constitucional, através de emendas à Constituição, e a própria mutação constitucional, através da interpretação evolutiva do texto, são exemplos disso.

Conforme já se disse, a emenda constitucional pode modificar até mesmo as normas da Constituição que sejam consideradas como cláusulas pétreas, desde que fique demonstrado que a mudança não trará prejuízos para o regime geral de proteção à dignidade da pessoa humana, à limitação do poder ou aos princípios elementares da democracia. Ou seja, o que não se pode aceitar é uma mudança constitucional que destrua os valores básicos consagrados pelo constituinte originário. No mais, se houver uma demonstração concreta de que a mudança favorecerá o desenvolvimento humano, expandindo a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a democracia, certamente ela será bem-vinda.

Desta forma, superada a impossibilidade de alteração no inciso XXXVIII, apresentamos uma proposta simplista de texto constitucional que poderia pacificar a questão:

XXXVIII - é assegurado ao réu o julgamento por um conselho de sentença popular, nas hipóteses de incidência e conforme a organização que lhe der a lei.

Parágrafo Único: a lei assegurará, na organização do Tribunal do Júri:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

O texto proposto tem como objetivo primordial destacar o caráter de direito fundamental do réu, ou seja, o direito de ser julgado por um conselho popular. No mais, mantém as características do Tribunal do Júri, e a competência mínima deste para julgamento de crimes dolosos contra a vida.

Por conseguinte, incumbirá à legislação ordinária regulamentar a hipótese de renúncia, ou como já exposto, o não exercício do direito assegurado pelo inciso XXXVIII. Evidentemente, tal reforma deverá ser precedida de estudo minucioso, a fim de evitar possíveis nulidades advindas de tal faculdade.

Como exemplo, deverá ser regulado o momento em que o patrono do réu deverá optar pelo juízo da causa, a preclusão para tal opção, e até mesmo a possibilidade modificação na opção em caso de condenação pelo Tribunal Popular, provimento de apelo fundamentado em decisão contrário às provas dos autos, e a designação de novo julgamento.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Paulo Victor Oliveira. A possibilidade de renúncia ao julgamento pelo tribunal do júri no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3612, 22 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24474. Acesso em: 19 abr. 2024.

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