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Direito à propriedade e conflito social:

A Vila Irmã Dulce como estudo de caso

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II: O conflito das leis e o social:

o caso da vila irmã Dulce

            1. O Direito Social: origem e processo de legalização da Vila Irmã Dulce sob o ponto de vista da imprensa escrita.

            A Vila Irmã Dulce surgiu do mesmo processo do qual nasceram inúmeras outras ocupações urbanas no Brasil ao longo das últimas décadas: fome, desemprego e baixo padrão de qualidade de vida.

            Segundo dados estatísticos (LIRA, Ricardo César Pereira.p.825.), 45% da população mundial vive em centros urbanos (2,6 bilhões de pessoas), 250 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada, 400 milhões não conhecem esgoto ou saneamento básico, 600 milhões de pessoa moram em casas em situação de risco e outras 500 milhões não têm moradia. Estamos adentrando o 3º milênio e em 96 já se anunciava que no próximo século metade da população mundial (2,9 bilhões de habitantes) estará concentrada nas cidades.

            A falta de moradia, um problema que abala o atual mundo capitalista da concentração de riquezas, se manifestou na forma de ocupações urbanas em Teresina na década de 1970, se solidificou nos anos 80 e já possui forças suficientes para pressionar e enfrentar a justiça e o poder executivo nos dias de hoje. O exemplo mais claro disso é a Vila Irmã Dulce.

            Segundo o Censo das Vilas e Favelas de Teresina (Censo 96 – Vilas e Favelas. Teresina, 1996.) e os topógrafos e assistentes sociais da Secretaria Municipal de Habitação e Urbanismo, o município tem hoje mais de 160 vilas e favelas. O déficit habitacional no município, segundo a Federação de Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí - FAMCC, era de 30 mil famílias em 1998.

            A ocupação da Vila Irmã Dulce aconteceu no dia 03 de junho de 1998, ao lado do Residencial Esplanada, na zona sul de Teresina. A área de 50 hectares abriga 7 mil famílias (Sem-teto. Especial. p.3.) em barracos feitos em lotes de 10 por 20 metros. Há crianças, mulheres grávidas, casais recém-casados, jovens desempregados, recém-nascidos e idosos, todos unidos pela miséria, pelo desemprego, lutando por uma moradia que o Poder Público Municipal não vislumbra lhes proporcionar.

            A Vila Irmã Dulce foi planejada pela FAMCC, com o apoio de sindicatos, movimentos sociais, ong’s e partidos políticos de esquerda atuantes na cidade de Teresina. Durante quatro meses foram feitos cadastros, em todas as zonas da cidade, de pessoas que pagavam aluguel, moravam de favor com pais, parentes ou amigos, dividiam quartos entre várias famílias ou estavam nas ruas. Nesse mesmo período a FAMCC promoveu quatro reuniões por zonas: norte, sul, leste e sudeste, discutindo com as comunidades a situação de pobreza em que se encontravam, a conjuntura da cidade e a ilegalidade, ou legalidade, da atitude que eles estavam prestes a tomar. Os futuros moradores da ocupação do Esplanada discutiram seus direitos e deveres como pessoas inseridas nesta triste realidade e se armaram daquilo que sempre os afastava da sociedade e colocava na marginalização: a lei e a discussão política.

            Dentro dessa discussão política, foram incluídas conversas a respeito dos direitos e das obrigações daqueles que estavam participando da organização da Vila Irmã Dulce, dos seus moradores e de alguns conceitos essenciais ao pleno desenvolvimento daquela ocupação. A própria diferenciação entre os conceitos de ocupação e invasão, por exemplo, foram elementos essenciais para que se caracterizasse a legalidade da Vila. Ocupar significa estar de posse de área que não esteja sendo adequadamente utilizada, não utilizada, não edificada ou subutilizada. Invadir significa tomar algo que estava sendo adequadamente utilizado por seu dono. A Vila Irmã Dulce ocupou uma área que nem sequer muros ou cercas possuía, não havia aproveitamento do local, o dono apenas aguardava a valorização da área, o que se caracteriza claramente como especulação imobiliária. Os moradores da Vila estavam cientes da sua condição de ocupantes.

            Entre Fevereiro e Maio de 1998, e até o dia da ocupação, as famílias se organizaram da melhor maneira possível para acelerar o processo de ocupação da área. No começo, foram organizados grupos de 50 famílias por zona, para manter em espaços próximos as vizinhanças de origem. Essa medida ajudaria a manter os laços de amizade, a confiança mútua, e, como conseqüência, uma maior resistência diante das dificuldades surgidas e, portanto, como um importante fator de coesão para a luta da manutenção do espaço ocupado. Dessa forma, evitariam o surgimento e a proliferação de casos de violência. Em seguida ocorreram sorteios para a entrega dos lotes. No dia da ocupação, madrugada de 02 para 03 de junho de 1998, iniciou-se o desmatamento da área, feito em conjunto, sem ser determinado ainda quais os lotes correspondentes a cada família. Posteriormente uma equipe da coordenação da ocupação, auxiliado pelos próprios moradores, promoveu a divisão da área em pequenos lotes de 10 por 20 metros. Os ocupantes foram trazendo suas coisas, improvisando suas moradias e dormindo a relento para vigiar seus lares.

            Além do trabalho de conscientização das pessoas quanto aos seus direitos, a FAMCC estruturou uma coordenação para a vila, estabelecendo um vínculo direto entre seus moradores – que compunham a coordenação – e aquilo pelo qual lutavam: a desapropriação da área já ocupada. Essa coordenação, até hoje, passados um ano e sete meses desde a ocupação da área em 03/06/98, se reúne semanalmente a fim de manter vigilância para impedir a especulação e a ação de aproveitadores, manter a amizade entre os moradores, reivindicar e orientar os novos caminhos a serem traçados pela Vila.

            Ao longo de todo o processo de organização da segunda maior ocupação de área urbana no Nordeste, a primeira fica em São Luís – MA, com quinze mil famílias (FAMCC expulsa especuladores no loteamento.p.11.), foram organizadas muitas passeatas, audiências com autoridades, ocupações de prédios públicos, documentos e dias de protesto com o objetivo de se pressionar o Poder Público, o que inclui juizes, secretários, o governador, o prefeito e outras autoridades. Como exemplo podemos citar um manifesto realizado no dia 08 de junho de 1998 – 05 dias após a ocupação – em que mais de 300 moradores se concentraram no fórum para impedir que a Justiça concedesse a liminar de reintegração de posse. Essa manifestação levou o juiz da 2ª Vara Cível, José Ramos Dias Filho, ao local da ocupação, além do vice-governador, Osmar Araújo. (Sem-teto realizam manifesto para evitar despejo.p.3.)

            Pela primeira vez na história das ocupações, um juiz visita a área em questão. Após a vistoria, será realizada uma audiência para ouvir as partes interessadas no problema (Autoridades visitam sem-teto.p.3.), afirmou Francisco Sales, diretor de Habitação da Federação das Associações de Moradores e Conselhos Comunitários. De acordo com os jornais o juiz José Ramos Dias Filho se sensibilizou e acabou suspendendo a execução do despejo e o processo foi suspenso. (Sem terem onde cair mortos,... p.3.)

            A área ocupada pela Vila Irmã Dulce era destinada à construção da segunda etapa do Residencial Esplanada. Pertencia à Construtora CIPREMO, à THE Construção Ltda. e a uma pessoa física: o empresário Júlio Soares Nascimento.

            Os três reclamantes entraram com pedido de reintegração de posse do terreno na justiça, como já foi dito anteriormente, em ação conjunta. No dia 09 de junho o juiz da 2ª Vara Cível, José Ramos, visitou a área e posteriormente acabou suspendendo o despejo. No entanto, a visita e a ação do juiz não foram suficientes porque os donos do terreno entraram com uma outra ação, que, sendo julgada pelo juiz da 3ª Vara Cível, Antonio Perez, resultou em uma rápida ordem de despejo. Os ocupantes resistiram na área, construíram cercas ao redor, mas a polícia não apareceu na área para cumprir a ordem de despejo, e se apareceu, não teve coragem de entrar na Vila.

            No dia 17 de Junho, o governador do Estado visitou o local, e, como exemplo claro apenas de discurso demagógico e na tentativa de se promover frente a ocupação tão grandiosa, fez promessas, mas não deu garantias.

            A Prefeitura, em audiência reivindicada pelos sem-teto, afirmou no dia 25 de junho de 1998 que não iria desapropriar a área (PMT não vai desapropriar terreno.p.1.). A proposta seria cadastrar as famílias em um projeto que pretende atender a 8 mil famílias, e que propõem resolver o problema da moradia através do programa de mutirão habitacional. No entanto, até meados de 1998 (Prefeitura garante casas para sem-teto.p.11), o programa Minha Casa – projeto de construção de casas no sistema de melhoria habitacional – só havia cadastrado 2.000 famílias e atendido 1.100.

            Ao longo de muitos protestos, e expondo a sua situação de pobreza e marginalização ao município de Teresina, a Vila Irmã Dulce alcançou algumas vitórias. Dentre elas estão o apoio do Ministério Público na pessoa da promotora Dr.ª Leida Diniz(8), a construção de uma escola(9), a instalação de algumas torneiras em pontos específicos da vila, além de outras conquistas.

            Antes da Prefeitura assumir o compromisso, diante do Ministério Público, de construir uma escola na Vila, foram realizadas inúmeros protestos de reivindicação. A comunidade construiu um galpão que serviria de escola, cerca de dez pessoas da própria comunidade se prontificaram a colaborar como professores, e receberam algumas orientações de professores da Universidade Federal do Piauí – UFPI (Galpão servirá de Escola na Vila Irmã Dulce.p.11). A escola foi inaugurada no dia 28 de Outubro de 1998, onde foram atendidos 250 alunos, durante 3 meses (Vila Irmã Dulce inaugura Escola Alternativa.p.9). A escola se chamou Escola Alternativa 03 de Junho e se propunha a não se comportar como as escolas tradicionais, mas a incluir em suas disciplinas aulas de religião, formação política e convívio social.

            Atualmente, estima-se que moram na Vila Irmã Dulce, depois de 1 ano e meio de ocupação, mais de 7 mil famílias. Após um longo período de tensão, em que a polícia ameaçava cumprir as ordens de despejo, os moradores tentavam combater a especulação e, ao mesmo tempo, construir suas casas de taipa. Os coordenadores tentavam manter a amizade das pessoas e a unidade do conjunto, e a prefeitura não se manifestava, ou se manifestava contra. Os ocupantes conseguiram a promessa de desapropriação da área após um ano e meio de resistência. A Secretaria de Habitação e Urbanismo anunciou, em novembro de 1999, que desapropriaria 80% da Vila.

            Apesar de todas as dificuldades encontradas, e, principalmente, a recepção negativa, que a opinião pública dá aos sem-teto(10), os ocupantes da Vila Irmã Dulce provaram que a luta por moradia e dignidade se faz urgente nos dias de hoje. Atualmente, aguardam a efetivação do anúncio de que seria desapropriada 80% da área. Enquanto isso, continuam reivindicando seus direitos e encontrando resultados positivos com muita organização. No mês de Janeiro de 2000, por exemplo. As Centrais Elétricas do Piauí S.A - CEPISA, anunciaram a substituição das "gambiarras" que levam energia elétrica à Vila por fiação adequada. Os moradores se comprometeram a fiscalizar a obra para evitar desvio do dinheiro público ou atraso no seu cumprimento.

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            A Vila Irmã Dulce, calcada na organização e reivindicação de direitos pelas vias legais, deu uma lição de coragem ao Estado Liberal capitalista. Em tempo recorde sanou, de certa forma o problema, e exigiu trabalho e soluções das autoridades responsáveis. Hoje, lutam contra o desemprego e a fome, que muitas vezes pode os compelir a vender suas moradias tão sonhadas.

            2. O Direito Institucional: a evolução do processo na Justiça

            Após visualizarmos, no capítulo anterior, a Vila Irmã Dulce sob o ponto de vista social, sua origem e processo de evolução, faz-se necessária uma análise dos processos judiciais a ela referentes.

            Logo após a ocupação, os proprietários da área ocupada – THE Construções Ltda., Construtora CIPREMO Ltda. e o Sr. Júlio Soares do Nascimento – entraram, em ação conjunta, com pedido de reintegração de posse da área, representados pelos seus advogados Drs. Francisco Miguel Soares A. Filho e Edvaldo Oliveira Lobão, perante a 2 ª Vara Cível de Teresina em 05 de Junho de 1998.(11)

            Os advogados da FAMCC, Zacarias Barbosa da Silva e Ana Lúcia Gonçalves Sousa, em apoio à ocupação, fizeram a requisição de uma audiência de justificação de posse e inspeção judicial, a fim de que o juiz conhecesse a área antes de apreciar o pedido de liminar. O juiz, Dr. José Ramos Dias Filho, visitou a área e, por conseguinte, optou pela audiência de justificação de posse antes da apreciação do pedido de liminar.

            Utilizando-se de medidas processuais(12) e contrariando até mesmo o exercício ético da advocacia, os proprietários formularam um pedido de desistência da ação de reintegração de posse que estava na 2ª Vara Cível e ingressaram com ação idêntica que foi distribuída para a 3ª Vara Cível de Teresina, antes mesmo de transitado em julgado o 1º processo.

            O novo processo(13), agora distribuído à 3ª Vara Cível de Teresina em 10 de junho de 1998, logra êxito não alcançado na primeira ação, pois o juiz concedeu liminar inaudita altera pars(14), apesar de já ter sido apreciado e não atendido pelo julgador da 2ª Vara Cível. Os autores – proprietários da área ocupada – terminaram por induzir o Dr. Antonio Perez – 3ª Vara Cível – ao erro, pois julgou novamente algo que já havia sido apreciado em juízo, contrariando frontalmente o princípio da economia processual e da segurança na obtenção da prestação jurisdicional.

            Os advogados dos moradores da vila, recorreram ao Código de Processo Civil, art. 267, V, alegando que o 2º processo, na 3ª Vara Cível, deveria ter sido extinto pelo juiz, porque havia sido cometida a LITISPENDÊNCIA, ou seja, a reprodução de ação já em curso, de processo que ainda não havia transitado em julgado.

            Código de Processo Civil, art. 267:

            "Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:

            V. quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou de coisa julgada;"

            Assim se posiciona Moacyr Amaral Santos: Há litispendência, quando se repete ação que está em curso; (...). Acolhendo qualquer dessas alegações, o juiz decretará a extinção do processo, condenando o autor nas custas e honorários de advogado.(SANTOS, Moacyr Amaral.p.104.)

            O Agravo de Instrumento, dirigido ao Tribunal de Justiça do Estado do Piauí pelos advogados dos moradores não questionou somente a LITISPENDÊNCIA – fato mais grave do processo – mas também a ausência de identificação dos réus, o não atendimento aos requisitos indicados no art. 927 do Código de Processo Civil, pois os proprietários não comprovaram a posse anterior sobre a área em litígio, pois, a propriedade encontrava-se abandonada, e, finalmente, o mérito da ação de reintegração de posse, pois esta não existia já que a propriedade violava a norma constitucional que fixa a necessidade do cumprimento da função social da propriedade, sem o qual o direito perde a razão de existir.

            O relator do processo nº 98.000755-0, de 18 de junho de 1998, Des. Brandão de Carvalho, assim se posiciona em relação ao Agravo de Instrumento:

            Resta evidenciado que os autores/recorridos usaram de meio ardiloso para evitar o enfrentamento da audiência de posse. É oportuno ressaltar que posse é fato, não sendo razoável que se conceda liminar em ação dessa natureza quando os autores comprovaram apenas a propriedade. Por outro lado, é induvidoso que o cumprimento da medida agravada resultará em prejuízos de difícil reparação para aqueles que estão diretamente na posse do imóvel, que, diga-se, são inúmeras famílias.

            Assim sendo, concedo efeito ao presente instrumental, para estancar a efetivação da liminar deferida pelo magistrado monocrático.

            A liminar do juiz da 3ª Vara Cível, Dr. Antonio Perez – que concedia, de imediato, a reintegração pleiteada pelos proprietários, sendo inclusive requisitado reforço policial pra efetivação da medida deferida – foi caçada pelo Tribunal de Justiça e o processo de reintegração de posse seguiu para decisão de mérito, posteriormente.

            Meses depois, o Banco do Estado do Piauí – BEP – ingressou com Ação de Reintegração de Posse, reivindicando 30.00.00 há. de uma parte da área ocupada pela Vila Irmã Dulce. A ação(15) foi distribuída à 3ª Vara Cível de Teresina e o juiz concedeu a liminar reintegratória. Os advogados dos moradores ingressaram com Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí e o Des. Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho – o mesmo do processo anterior – concedeu novamente o efeito suspensivo ao despacho agravado.

            Nota-se que o processo judicial, em relação ao que está escrito nos jornais, ocorreu de maneira um pouco diferente. Os nossos maiores meios de comunicação escrita omitem, por exemplo, as "artimanhas" processuais das quais se utilizaram os advogados dos ditos donos do local ocupado a fim de evitar que a lei fosse cumprida. Além de ofenderem o Princípio da Justiça e da Segurança Jurídica, prejudicaram a sociedade e a própria administração pública, pois mantinham uma área que além de não cumprir a sua função social e servir de depósito de lixo para os moradores adjacentes – não havia sequer uma cerca no local -, ainda estava inadimplente e irregular com a tributação do município.

            No entretanto, apesar de algumas falhas e, ou, omissões, os jornais serviram para apresentar a realidade de pobreza, marginalização e desigualdade em que vivemos hoje, e mostrar à sociedade a legalidade existente dentro do processo de ocupação daquela área, e os encaminhamentos favoráveis da justiça a esse respeito.

            Espera-se, de fato, que, anunciada recentemente a desapropriação, não ocorram fatos semelhantes aos de Recife – PE, em que Joaquim de Arruda Falcão afirma que os processos, quando chegam a ser julgados, são suspensos ou arquivados porque não interessa aos poderes públicos continuar o julgamento. É um abandono assumido por todas as partes envolvidas no conflito. Para Joaquim de Arruda Falcão, o Judiciário hoje é o local onde se buscam tanto decisões incertas toleráveis, quanto não-decisões. ( FALCÃO, Joaquim de Arruda.p.91)

            Após o anúncio de desapropriação feito pela Prefeitura, espera-se que o executivo cumpra a sua parte. Vale lembrar, que, se o Poder Judiciário Piauiense decidiu a favor dos moradores da Vila Irmã Dulce foi a custa de muitas manifestações, organização frente à Justiça e apoio da sociedade civil organizada, na forma dos Movimentos Sociais, ONG’s, sindicatos e partidos políticos.

            3. As possibilidades teóricas da lei e os limites da sua utilização concreta no caso da Vila Irmã Dulce

            No capítulo anterior e nos itens anteriores deste estudo foram discutidos o Direito à Propriedade no sentido normativo, na Constituição e no Código Civil, e no sentido prático do conflito social – a observação do caso da Vila Irmã Dulce. A partir da comparação entre essas duas realidades, podemos, nesse momento, circunscrever o horizonte das possibilidades teóricas da lei e os limites que foram encontrados para que a lei fosse aplicada ao caso da Vila Irmã Dulce.

            A utilização concreta da lei encontrou os seguintes obstáculos sociais: a desigual distribuição de renda expressa na miséria, pobreza e desemprego; a omissão do Poder Público municipal, que não cumpre suas funções; a corrupção do Estado, que fere princípios constitucionais fundamentais; a passividade do judiciário – inerte na sua condição e moroso em suas decisões -; e, por fim, a própria lei, por ser constituída atendendo a determinados interesses, abrindo possibilidades das mais diversas de se burlar a Justiça. A seguir esclarecemos mais profundamente cada um desses obstáculos encontrados.

            O termo exclusão social associa dois aspectos do conflito social: o aspecto econômico, devido à extrema desigualdade de acesso aos bens da vida em sociedade, e o aspecto político, que consiste na negação prática de cidadania ao grupo excluído. A desigualdade social, em sua essência, direciona-se para a real negação da cidadania, o que significa, no que se refere aos conflitos de propriedade urbana e no acesso à moradia, que, no Brasil atual, é negado àquele que é marginalizado economicamente o direito de constituir um lar e tudo mais que ele possa representar. É negada a sua cidadania.

            Os dados estatísticos não negam essa realidade: no Brasil, a renda dos 10% mais ricos eqüivale a quase 30 vezes a dos 40% mais pobres, o número de pobres no Brasil atinge 42 milhões de pessoas, ou seja, 30% de uma população total de 147 milhões (SANTOS, Roberto A. Oliveira.p.685) enquanto isso o déficit habitacional só faz crescer, em Teresina já alcança 30 mil famílias (FAMCC).

            Analisando a questão do desemprego no Brasil, os dados, se não são piores, são, no mínimo, equivalentes: em abril de 1996 a taxa de desemprego atingiu 15,9% somente na grande São Paulo, de acordo com o DIEESE, em apenas cinco regiões metropolitanas, mais de 2 milhões de pessoas estão desempregadas, um total maior que a população de muitos países (SANTOS, Roberto A. Oliveira.p.685).

            Em relação à Vila Irmã Dulce, esses índices crescem: de acordo com a presidente da Federação de Associações de Moradores e Conselhos Comunitários, Lucineide Barros Medeiros, 96% das pessoas acampadas estão desempregadas (PMT não vai desapropriar terreno.p.1.) (16)

            Um levantamento estatístico sobre a Vila Irmã Dulce apresenta a sua população constituída, em sua maioria, de famílias recém-formadas: jovens mães e casais, retrato claro de que a vila não é composta apenas por pessoas oriundas do interior do estado, mas por jovens sem renda própria e que não tem mais espaço no mercado de trabalho, seja pela precária educação formal que receberam, seja pela falta de empregos (Sem-teto. Especial.p.1.).

            O Poder Público Municipal é omisso diante de suas funções: não promove a criação de novos empregos, ferindo o art. 3 º da Constituição Federal; não desapropria áreas que não estejam cumprindo a sua função social, violentando o art. 5º, XXIII; não garante o acesso à propriedade – o que poderia ser feito com a desapropriação com fins sociais (art. 182, caput) e a construção de moradias populares -, indo contra o art. 5º, caput, e o art. 5º, XXII; e, não apresenta um plano diretor para o município desde 1988. As iniciativas adotadas chegam a tornarem-se insignificantes, por não atenderam a verdadeira demanda das necessidades do Município de Teresina.

            Desde 1988, quando foi sistematizado o 2º Plano Estrutural de Teresina - 2º PET, o município de Teresina não tem plano diretor, o que existe de mais parecido com isso é o Plano de Gestão do Município, realizado pelo próprio poder executivo, a cada gestão da Prefeitura Municipal. Além disso, desde 1997, a Prefeitura Municipal utiliza-se da sistematização do Orçamento Participativo, para planejar as contas de Teresina para o ano seguinte. Dessa forma, o último Plano Diretor de Teresina foi o 2º PET, de 1988, que foi formulado pela Câmara Municipal e aprovado pelo Prefeito à época.

            A atuação da Prefeitura de Teresina é bastante parecida com as "adaptações" que o Estado Liberal vem apresentando, na tentativa disfarçada de tentar ser conceituado como um Estado Democrático de Direito. O Poder Executivo Municipal não age como agente transformador, mas em programas de melhoria habitacional, que podem até melhorar a qualidade de vida das pessoas, mas que não solucionam o problema do déficit habitacional na cidade.

            No caso da Vila Irmã Dulce, por exemplo, o Executivo Municipal aguardou a explosão do conflito, deixou os moradores a mercê dos seus próprios problemas, e, só após um ano da ocupação resolveu desapropriar a área, reflexo puro de medidas unicamente políticas, dado o grande contigente de famílias que ali se aglomeravam.

            Com a desculpa de que se desapropriasse imediatamente a área, estaria estimulando as "invasões", a Prefeitura negou o pedido de desapropriação (PMT não vai desapropriar terreno.p.1.), não construiu uma escola no local (Vila Irmã Dulce inaugura Escola.p.8.) e tentou justificar a sua atitude omissa. Quando, na verdade, pela lei, deveria ter desapropriado a área e removido todas estas famílias para lá, bem antes do evento da ocupação ter sido pensado pelos Movimentos Sociais, ou, no mínimo, ter imposto tributações altas ao proprietário e o obrigado a murar e manter a preservação do local. No entanto, o poder Executivo Municipal, desde a década de 1980, espera que as ocupações ocorram, o que torna a área supervalorizada, para promover a desapropriação, facilitam mais ainda a concentração de riquezas, pois o proprietário obtém lucros exorbitantes com a especulação imobiliária.

            Hoje, o único programa é o "Programa Minha Casa", em que a Prefeitura só pretende atender 2.000 pessoas e já atendeu 1.100. Vale lembrar que só a Vila Irmã Dulce tem hoje mais de 7 mil famílias, e que, segundo o último censo das vilas e favelas de Teresina, de 1996, as famílias sem-teto correspondiam ao equivalente a 25.775 famílias, ou 94.617 habitantes (Censo 96 – Vilas e Favelas. Teresina, 1996.). Novos dados da Federação de Associações de Moradores e Conselhos Comunitários (FAMCC) e da Federação de Associações de Moradores do Piauí (FAMEPI), elevam este número para 34.075 famílias.

            Com relação à corrupção do Estado Brasileiro, é necessário que seja lembrado apenas a possibilidade de se mover uma Ação de Inconstitucionalidade por Omissão contra o Poder Público Municipal, Estadual ou Federal, alicerçada em todas as normas Constitucionais que aqui foram citadas e que não são adequadamente cumpridas pelos poderes competentes. Caberia ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados, à Mesa da Assembléia Legislativa, ao Governador de Estado, ao Procurador- Geral da República, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, às confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional, mover as ações de inconstitucionalidade por omissão, justificando-se na defesa de seus próprios interesses e, ou, na defesa dos interesses do próprio povo brasileiro. Porque isso não ocorre? Falta de interesse político; comprometimentos entre os competentes para mover esta ação e o Poder Público atingido; a existência de cargos comissionados, o que significa que os indicados para os cargos dificilmente moveriam uma ação deste tipo contra aquele que os indicou; falta de organização das entidades de classe e, até mesmo, desconhecimento. Acrescenta-se ainda que a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão apresenta-se como um instrumento jurídico que não corresponde às expectativas, pois não possui acolhida em nossa cultura jurídica.

            O Poder Judiciário, na espera de ser acionado para se manifestar, não se manifesta. O art. 126 da Constituição Federal, por exemplo, afirma que sempre que necessária à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente ao local do litígio. No caso da Vila Irmã Dulce, apesar da imprensa colocar como fato excepcional, e não como algo que estava na lei, o juiz fez uma vistoria na área. Mas essa vistoria se deu por requisição dos advogados dos moradores e não por pura e simples iniciativa do juiz. Além disso, quando o juiz da 3º vara deferiu o pedido de reintegração de posse e expediu o mandado de despejo, não justificou a sua atitude com fundamentação, apenas assinou e encaminhou o processo, o que nos mostra o descompromisso do Poder Judiciário com a sociedade e a própria Justiça.

            O Ministério Público deve provocar o Poder Judiciário, o que, muitas vezes não ocorre, ou só acontece sob muitas pressões dos movimentos sociais. Em Teresina, e no caso da ocupação estudada, ele se manifestou duas vezes: a primeira, depois de longas pressões dos Movimentos Sociais, quando obrigou a Prefeitura Municipal a construir uma escola na área, e a segunda, por iniciativas individuais de apoio à ocupação, na pessoa da promotora Dr.ª Leida Diniz.

            O fato de existirem leis que defendem elementos diferenciados – por um lado a defesa incondicional da propriedade e do seu uso, gozo e usufruto pelo seu dono, no Código Civil, e por outro a garantia do acesso à propriedade mediante a atuação do Estado (art. 3º) e a desapropriação das áreas que não cumpram adequadamente a sua função social – permite aos advogados das partes que se embasem em idéias diferenciadas para defender seus interesses, e aos juizes a possibilidade de optar entre o individual e o coletivo.

            Do conflito normativo inerente ao Direito, surge então o conflito social, pois Estado, Poder Judiciário e Sociedade têm um comportamento omisso diante dos fatos e justifica "legalmente" a sua omissão. O povo então se questiona se a lei de fato funciona, chegando a um questionamento sobre justiça social e sobre a própria estrutura do Estado. O legislador, imbuído no Estado Liberal, apenas adaptou a lei para disfarçar as desigualdades sociais. A lei criada para defender o povo não funciona, por que as desigualdades econômicas incorrem, necessariamente em marginalização social, e só o centro do poder tem acesso e influência sobre as decisões mais importantes.

            Esses são, portanto, os obstáculos encontrados. Mas, o povo, a exemplo do caso da Vila Irmã Dulce, tem como se organizar e ganhar força, e, com o apoio dos Movimentos Sociais, vai lutando e alcançando seus objetivos, e se manifestando por uma moradia digna, a favor da pessoa humana e da vida.

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Sobre a autora
Inga Michele Ferreira Carvalho

acadêmica de Direito na Universidade Federal do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Inga Michele Ferreira. Direito à propriedade e conflito social:: A Vila Irmã Dulce como estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2448. Acesso em: 23 nov. 2024.

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