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O direito positivo do Estado:

Problema ou solução?

01/11/2001 às 01:00
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A análise minuciosa do conteúdo histórico do direito positivo estatal comprova com clareza, que, desde as sociedades primitivas dos povos mais antigos da civilização humana, até a realidade da justiça positiva da era contemporânea, cultuou-se o direito, como a instituição social mais homogênea e mais adequada à solução, ao controle, ao equilíbrio e à ordem das relações humanas, na sociedade política.

Em princípio, nem o jurista nem o homem jurídico, o cidadão, podem contestar a questão pontual da validade aplicadora do direito positivo estatal numa sociedade política. O poder jurídico legitimador, que o Estado exerce para o conhecimento legítimo das relações do direito, concorre para a consolidação ideológica do sistema político e para a ordenação interna de um pensamento científico de justiça positiva.

Os conflitos de interesses, na sociedade política, são intensos, porque complexa é a interação das relações jurídicas; conseqüentemente, faz-se necessária, num sistema positivo de normas, a ação direta do Estado erga omnes, pela via da justiça pública, para atender a solução dos litígios e restaurar a ordem imposta pelo direito positivo estatal.

Numa ordem positiva, existe a pressuposição de que o mais singelo dos direitos humanos deverá obter a positividade do sistema constitucional; a nenhum cidadão, que participa da distribuição da justiça material do direito, deverá ser negado o direito legítimo que lhe cabe ou a ele pertence por força de princípios fundamentais reconhecidos na ordem positiva.

Em nenhum momento histórico, deixou-se de reconhecer a perspectiva antropológica da construção do direito, na sociedade. O homem nunca abandonou a idéia de que é um ser de natureza biológica e ontológica, incompleto, que, sozinho, não poderá completar as suas deficiências naturais à sociabilidade. O princípio da sociabilidade nasce no homem, porque, somente ele, no reino inteligente da natureza, é capaz de sentir, dentro do seu corpo, a voz limitadora e controladora da razão. A razão humana é o centro do qual emana todo o poder natural, capaz de ordenar e coordenar os movimentos da vida corporal.

O corpo, sem o poder da razão, viveria, como vivem os animais irracionais, mas não conviveria com equilíbrio e com qualidade de vida. A razão nos faz diferentes no mundo da vida, porque somente o homem pensa a lógica da construção normativa da sua sobrevivência com os outros. O homem, ser individual, deixa de ser indivíduo, e se torna um ser social, no momento em que reconhece nos outros os limites do seu próprio poder de razão. O ser humano foi priorizado pela razão para conviver na sociedade; por conseqüência, cabe a ele, construir os complementos da realidade social.

A realidade social é um fenômeno humano tipicamente racional. O homem, para viver bem e conviver melhor necessita construir a sua sociedade com lógica, com ordem e com justiça. A lógica é produto do poder da razão; a ordem é a colocação das coisas nos seus devidos lugares; a justiça é o espaço adequado e compartilhado que todo ser humano pensa ocupar, na sociedade. Sem lógica, sem ordem e sem justiça, as sociedades humanas seriam meros ajustamentos de seres irracionais. As sociedades dos homens precisam, portanto, ser organizadas e aperfeiçoadas pela lógica da razão pura e prática.

O poder da razão nos diz o que é lógico construir; o poder da razão nos faz compreender que as coisas, os bens do mundo da vida, necessitam ser ordenados; o poder da razão nos anima a acreditar que a justiça, para ser boa, deve ser distribuída nos bens com prudência e compartilhada com parcimônia e com eqüidade. Os poderes da razão humana e da razão social são diferentes, mas conexos com o princípio da legitimidade, essência da lógica, da ordem e da justiça de que são dotados todos os homens na sociedade.

Os poderes da razão humana e da razão social são diferentes, mas conexos com o princípio da legitimidade da lógica, da ordem e da justiça de que são dotados os homens que vivem na sociedade.

Historicamente, nas reflexões filosóficas da humanidade, a construção da realidade social defrontou-se com dois valores exponenciais: o poder constituinte e normativo da razão humana e o poder constituinte e normativo da sociedade.

O poder da razão humana é originário, essência da própria natureza do homem; ora, é o homem que constitui os seu direitos, de qualquer espécie, para que sejam regras normativas de vida. O poder da sociedade é derivado, porquanto a sociedade reconhece deveres e normatiza direitos, de qualquer espécie, para que cada indivíduo saiba os limites legítimos onde começa e termina o seu poder jurídico.

Conclui-se que os poderes da razão humana e da razão social são diferentes, mas conexos com o princípio da legitimidade, essência da lógica, da ordem e da justiça de que são dotados os homens que vivem na sociedade.

Os poderes da razão humana e da razão social sempre acompanharam a trajetória histórica da construção normativa de qualquer tipo de realidade social. Nunca existiu nem existirá sociedade humana em que não estejam presentes os interesses e os fins que a razão humana e a razão social resolveram criar e optar por eles como os mais adequados à convivência material e cultural.

Situação semelhante efetiva-se com os interesses e os fins da construção da realidade jurídica. Ora, a realidade jurídica, como experiência normativa construída na sociedade, também, possui a sua lógica, a sua ordem e a sua justiça. A história do direito comprova que a realidade jurídica, como objeto do direito, é processo histórico de interesses e fins específicos da natureza humana; somente o homem é capaz de usar a legitimidade do poder de sua razão para construir valores e normatizar a lógica, a ordem e a justiça dos seus direitos na sociedade, em forma de princípios e regras.

O direito é, para o homem, uma realidade ontológica e axiológica simultânea que o próprio poder da razão impõe, como imperativo categórico; o direito é uma realidade de ser e de dever-ser em que a lógica, a ordem e a justiça constituem valores de racionalidade, de ordenação normativa e de constitucionalidade do justo segundo a natureza das coisas. O direito é uma realidade válida e eficaz para a vida social dos homens, porque expressa o poder legítimo, constituinte e normativo do ser humano, o seu criador.

O direito, porém, não é somente razão ou lógica formal; é, também, ordem substancial, porque regula bens com sentido de atributividade; atribui a todos justiça, porque concretiza na coisa material a posse compartilhada e a distribuição do bem valioso de que precisam. A construção do direito resulta de uma relação lógica criada pelo poder da razão; de uma relação ontológica, que vincula bens; e de uma relação axiológica, que obriga pessoas ao cumprimento do dever-ser da justiça material que foi ordenada, de forma racional.

Na sua essência criadora, o direito é uma realidade normativa, que depende exclusivamente do ajuste constituinte do poder racional do homem no confronto das suas exigências materiais, do corpo, com o equilíbrio instável das suas relações na vida social. O ajuste do poder da razão individual com o poder da razão social concretiza-se na norma que regula o controle, o equilíbrio, o destino e a justiça da distribuição de bens entre pessoas igualmente carentes.

A norma que disciplina a divisão de bens denomina-se de norma jurídica, de direito. A norma de direito traça os limites de uma relação de bens entre pessoas, uma relação jurídica, que vincula entre si, de forma atributiva, o poder da razão individual com o poder da razão social. A atributividade do vínculo recíproco gera o cumprimento do direito e do dever impostos sob pena de sanção, conseqüência do descumprimento voluntário, de sua violação.

O direito, construído pelo poder racional por força de uma razão social, apresenta-se, no mundo da vida, como uma realidade ontológica, de ser, e axiológica, de dever-ser, de conteúdo formal. Se o direito não tivesse uma forma de se exteriorizar, na sociedade, por meio de linguagem própria, não poderia ser conhecido e observado. Forma dat esse rei.

A justiça material do direito constitui tipo específico de justo humano, valor subjetivo superior, que somente é compreendido pela forma como se objetiva na ordem social. Diferentemente da realidade positiva, descrita nos dogmas racionalizadores da ciência juspositivista, o direito, como realidade histórica construída pela legitimidade do poder racional, caracteriza-se pela forma antidogmática pela qual se processa a justiça do seu conhecimento na dimensão pragmática da sociedade.

Os conceitos jurídicos, formalmente verbalizados pelo direito positivo estatal, presumem ser a ponte racionalizadora que une a relação jurídica da justiça material, formal e legitimamente construída pela razão individual e pela razão social do homem histórico, à formulação de uma justiça historicamente predeterminada que servirá de padrão científico do conhecimento do direito. A relação jurídica da justiça material que o poder da razão humana constrói constitui o referencial legítimo de que a razão social dispõe para fixar as normas do direito da sociedade.

Por meio do pensamento racional, cada ser humano decide os rumos de sua vida jurídica, na medida em que as exigências da distribuição dos bens vão sendo supridas e as pretensões normativas de justiça a eles pertinentes vão sendo decididas pela razão social. A normatividade do direito transforma-se, assim, em questão histórica de justiça material, que é objeto da regulação social e do imperativo de observância atribuível a todos os cidadãos.

Observa-se, com clareza, que os conceitos jurídicos recolhidos pelo direito positivo estatal cumprem, na ordem social, uma função científica e política, quando decidem formalmente a legitimidade histórica das normas jurídicas efetivamente criadas e observadas na sociedade. Será que as normas do direito positivo estatal trazem a solução para todos os problemas jurídicos? Ou não serão elas causa do surgimento de outros problemas hermenêuticos?

É preciso reconhecer que os conceitos jurídicos do direito positivo estatal, dentro dos limites genéricos de sua interpretação estrita, cumprem a tarefa política e científica de decidir formalmente os conflitos de interesses. O objetivo do legislador histórico, diante da normatividade da vida social consiste na positivação de normas jurídicas já criadas; cabe então, à razão estatal reconhecer a validade da justiça material construída no processo normativo da legitimidade das relações sociais.

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Aparentemente, parece não existir, no propósito imediato do poder estatal, o pensamento de ideologizar a justiça material do direito positivo; no entanto, torna-se clara a intenção política e finalista do Estado, quando impõe, com exclusividade, a metodologia genérica da interpretação dos conceitos dogmáticos para que se possa conhecer os direitos que a realidade social atribui a cada cidadão.

A ciência do direito positivo estatal possui a pretensão de universalidade, como se à generalidade de uma proposição jurídica pudesse ser dada a certeza da justiça em sua totalidade histórica.

Fica bem evidente que a historicidade positiva do direito estatal contém o justo com validade absoluta, e que, por sua vez, a justiça das decisões jurídicas da vida humana depende de um juízo genérico e relativo de valor historicamente diferente daquele que foi originariamente reconhecido.

O direito positivo opera uma total inversão de valores no processo hermenêutico; prioriza-se o dogmático e antecipa-se o conhecimento da legitimidade da justiça jurídica; paradoxalmente, atribui-se à positivação de uma idéia de justiça material a validade de um resultado histórico e universal, como se o dogma pudesse definir e mudar a ontologização do dever-ser; e, contrariamente, a experiência histórica da vida jurídica dependesse da axiologização do ser-direito dogmaticamente antecipado. O desencontro no reconhecimento entre o ser e o dever-ser do direito positivo e dogmático, e a justiça histórica e antidogmática da vida, fragiliza o processo hermenêutico do conhecimento do direito, numa clara e flagrante contradição com a justiça da legitimidade da experiência jurídica.

O fato de o direito positivo estatal reconhecer historicidade em sua própria justiça material, como padrão de metodologia dedutiva, reduziu à expressão jurídica mais simples o conhecimento axiológico da justiça que poderá vir a acontecer nas relações da vida social; com isso, a legitimidade do poder racional e da razão social resulta limitada aos problemas científicos e políticos da justiça histórica do direito positivo; o homem jurídico, o legislador e o aplicador são compelidos a defender a justiça histórica da interpretação dos dogmas da ciência positiva dos direitos; deixa, por outro lado, de defrontar-se com a hermenêutica dos problemas históricos do direito, da justiça material in fieri que o homem constrói permanentemente.

O direito, como ciência positiva, constitui conhecimento válido, enquanto não ignorar nem violar a legitimidade histórico-cultural da justiça material; o processo da redução científica é útil se a realidade positiva servir de instrumento indutor à verdade jurídica, e não descartar a justiça da vida com a magia de um símbolo de dedução redutiva.

O reconhecimento da ciência do direito positivo estatal não significa heresia científica, nas sociedades políticas contemporâneas; o que não se pode admitir, em detrimento do princípio da universalidade do saber jurídico, é que a cientificidade positiva continue sendo a fonte prioritária que reproduz dogmaticamente o conhecimento da justiça material da experiência jurídica. Mais relevante para a solução dos problemas jurídicos não deve ser a interpretação inflexível do referencial teórico da justiça do direito positivo estatal, mas a certeza histórica da justiça material que o ser humano vive nas relações jurídicas.

A ciência do direito positivo estatal possui a pretensão de universalidade, como se à generalidade de uma proposição jurídica pudesse ser dada a certeza de conhecer os resultados da vida jurídica em sua totalidade histórica. A realidade positiva dos conceitos jurídicos exprimem o pensamento científico e político de uma determinada justiça histórica e a vontade ideológica do Estado que tem fins próprios a cumprir; não é nem será a realidade ideológica da justiça material do direito construído pela totalidade das relações jurídicas.

É evidente que a pretensão universalista do direito positivo estatal, como indicador redutivo, constitui um problema epistemológico para todas aquelas realidades de justiça material que não se subsumem à dedução do modelo da cientificidade descritiva; ora, porque são valores legítimos de justiça material, não podem ser excluídos, mesmo que contrariem os dogmas do sistema do direito positivo. A descrição histórica da ciência positiva é adequada, enquanto realidade científica e dogmática; inadequada, porém, enquanto realidade problematizadora em conflito hermenêutico com qualquer experiência histórica da vida jurídica.

O pensamento da justiça material, que reflete a ciência ideológica do direito positivo estatal, somente servirá ao processo do conhecimento jurídico, quando a legitimidade da justiça da ideologia social não vier a contrariar o juízo de valor da justiça do direito estatal. Ora, não é cabível que o princípio da legitimidade valha para a ideologia do sistema científico e político, e não valha para a legitimidade do princípio de justiça da ideologia histórica; o princípio da autoridade positivista esquece-se de que relações jurídicas legítimas, em sua originalidade criadora, são aquelas que, num sistema jurídico, não ofendem a essência hermenêutica do princípio de justiça.

Se a descrição histórica da justiça material é fundamental à construção do conhecimento científico da realidade positiva estatal, com muito mais razão, será imprescindível ao conhecimento da justiça material a historicidade da experiência jurídica, razão de ser da própria existência ideológica de legitimidade inerente aos conceitos regulados pelo direito positivo. A ideologia dos conceitos históricos da justiça do direito positivo estatal visa a expressar o consenso legítimo de justiça da convivência jurídica, uma vez que símbolos históricos não decidem a justiça de todos os problemas da vida social.

A aparente oposição ou contrariedade que existe entre o conhecimento da justiça histórica do direito positivo estatal e a historicidade da experiência da vida jurídica, em essência, não se pode contestar; o problema reside no fato de que os dois momentos históricos do conhecimento ideológico da justiça material são objetivamente diferentes; a referência científica da interpretação dogmática pode ou não coincidir com a interpretação pragmática, ou mesmo, revelar-se antagônica, omissa ou inexistente em relação aos valores do justo humano.

Conclui-se que muito mais relevante para a solução dos problemas jurídicos não é a interpretação inflexível do referencial teórico da justiça do direito positivo estatal, mas a certeza histórica do conhecimento da justiça material que o ser humano vive nas relações jurídicas. O conhecimento histórico da justiça do direito positivo estatal somente terá legitimidade e validade quando a experiência do justo humano for respeitada e não contrariar a historicidade da justiça construída por cada cidadão.

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Sobre o autor
Benedito Hespanha

professor da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fund, coordenador do Núcleo de atividades complementares e monografia, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino de Buenos Aires

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HESPANHA, Benedito. O direito positivo do Estado:: Problema ou solução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2451. Acesso em: 20 abr. 2024.

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