A Era pós-Revolução Industrial, caracterizada pela evolução científica, tecnológica, cibernética etc., aliada à nova fase de globalização, embora produtora de benefícios incalculáveis aos povos, trouxe, outrossim, prejuízos nefastos à sociedade, repercutindo implacavelmente no Direito.
Segundo Francis Rafael Beck,
Na medida em que as relações econômicas foram-se tornando mais complexas, conquistando o âmbito internacional e explorando tecnologia avançada, maior oportunidade surgiu para o recrudescimento das práticas ilícitas nesse campo de atuação. Como demonstra a vasta experiência criminológica obtida ao longo das últimas décadas, sempre que o sistema deixa de ocupar determinado espaço onde de uma atividade se possa obter lucro, tal espaço logo passa a ser ocupado pela delinqüência (2004, p. 41-42).
ConsoanteEugênio Raúl Zaffaroni,
corresponderá al pensamiento penal, criminológico y político criminal progresista de la globalización la tarea de esforzarse por detener el poder punitivo que quiera arrasar las culturas alternativas de excluídos y que seguramento no escatimará esfurzos por harcelo. Debe contarse con que este poder punitivo assumirá formas nuevas, pues el control penal en poco tiempo cambiará totalmente su fisionomía (2000, p.37-38).
Assim é que, ante a utilização de técnicas avançadas por parte de certos grupos, no atual contexto mundial, com o objetivo de aferir lucro através de prática de crimes que representam um atentado a bens jurídicos à coletividade, de maneira difusa, incrementou-se a figura do crime organizado, como sendo aquele perpetrado por uma organização criminosa. É a chamada macro criminalidade.
Existência do fenômeno da criminalidade organizada
A delimitação do que seja o fenômeno da criminalidade organizada não é tão simples como parece à primeira vista. Pelo contrário, a partir da década de 1980, muito se tem discutido acerca do fenômeno da criminalidade organizada, apresentando-se posições diversas e antagônicas sobre, dentre outros aspectos, a efetiva existência de organizações criminosas, a natureza ôntica de tais organizações, o tratamento legislativo e a política criminal dessa esfera da macrocriminalidade.
Assim é que, consoante GamilFöppel El Hireche (2005, p.01),
antes de se perquirir se há ou não um conceito de “crime organizado”, impõe-se analisar a matéria do ponto de vista da (in)existência. Com efeito, antes de se dar um conceito, é imprescindível que se faça uma análise ôntica, em busca da verdadeira essência de qualquer instituto.
Para este doutrinador, a verificação ou não da existência do crime organizado prescinde de previsões legais, sob o fundamento de que as leis não são aptas a criar algo inexistente, podendo apenas declarar o que existe na realidade dos fatos.
Na seqüência, consigna, de logo, o seu reconhecimento quanto à existência das quadrilhas ou bandos, enquanto manifesta com veemência o seu entendimento pela inexistência, na realidade dos fatos, do que se denominou de crime organizado. Vários são os argumentos utilizados: o tratamento legislativo aplicável aos crimes organizados como sendo uma manifestação do Direito Penal do Inimigo ou Terror; as críticas afetas ao Direito Penal pela moderna criminologia crítica; e a função simbólica do sistema penal. Ademais, defende Hireche que a tormentosa dificuldade em se encontrar um conceito unívoco de organização criminosa se deve, justamente, ao fato de que é impossível se conceituar algo inexistente (HIRECHE, 2005).
Analisando as organizações criminosas, sob o prisma da política criminal, assim afirma Hireche (2005, p.03):
ao contrário do que se poderia (puerilmente, registre-se) imaginar, existem, dois aspectos do Direito Penal: um declarado, qual seja, as missões e as funções que o Direito Penal objetiva. De outra parte, há um discurso escamoteado, surdo e silencioso, em que a pena e o Direito Penal são empregados em finalidades absolutamente diversas daquelas que são enunciadas: o Direito Penal, sobretudo no combate às tais organizações criminosas, passa a ser usado como barreira, como obstáculo à transformação, é dizer, como meio de manutenção e de conservação de certos valores que a classe dominante resolveu eleger como mais importantes, sempre, por óbvio, em benefício próprio.
Quanto ao Direito Penal do Inimigo, cabe consignar que, segundo Luiz Flávio Gomes (2004, p.01), Günter Jakobs, o criador desta teoria,
no seu mais recente livro (...) abandonou claramente sua postura descritiva do denominado Direito Penal do inimigo (...) passando a empenhar (desde 1999, mais inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora (p. 47) dessa linha de pensamento (2005, p.01).
Para GamilHireche, o Estado, com vista a proteger os interesses das classes dominantes, busca exterminar as classes menos favorecidas. Mas, para isso, misterse faz que se crie um inimigo, a ser combatido a qualquer custo, mesmo que em detrimento de direito fundamentais tão arduamente conquistados no decorrer da história. Para cada período histórico, o Estado, então constituído, cria os seus inimigos, utilizando-se do clamor público e do direito Penal.
Nos termos de GamilHireche,
O Direito Penal do Inimigo é, em verdade, o Direito de combate aos demônios. Isto é uma forma, como se verá, de manifestação do simbolismo jurídico-penal. Essencialmente, o discurso do Direito Penal do Inimigo é simbólico, apela para o imaginário das pessoas, para os seus medos e frustrações, para a necessidade de se resguardarem dos seus estranhos, dos diferentes. É necessário, pois, buscar, já que vai haver limitações aos direitos e garantias fundamentais, uma justificação, ainda que puramente simbólica (HERECHE, 2005, p.07)
Como características do Direito Penal do inimigo, aponta, Luiz Flávio Gomes (2004, a, p.02):
(a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o Direito penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade.
Sendo assim, haveria dois Direito Penais:
Um é o do cidadão, que deve ser respeitado e contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito penal do inimigo. Este deve ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como meio para intimidar outras pessoas. O Direito penal do cidadão é um Direito penal de todos; o Direito penal do inimigo é contra aqueles que atentam permanentemente contra o Estado: é coação física, até chegar à guerra. Cidadão é quem, mesmo depois do crime, oferece garantias de que se conduzirá como pessoa que atua com fidelidade ao Direito. Inimigo é quem não oferece essa garantia (GOMES, 2004, a, p.02).
Segue Hireche:
E quem escolhe os inimigos? Ora, quem escolhe os inimigos é, em última análise, aquele que tem o poder de segurança. No império romano, os demônios, os inimigos, os criminosos organizados eram os bárbaros; no feudalismo, os despossuídos de terra; nas grandes navegações, as nações que pretendiam competir com a Inglaterra; na fase da bipolaridade econômica mundial, eram os comunistas; mas recentemente, os inimigos maiores são os da máfia japonesa, colombiana e, mais recentemente, a criminalidade dos árabes (HIRECHE, 2005, p.26).
Sendo assim, para Hireche, as organizações criminosas seriam os novos inimigos criados pelo Estado hodierno.
Nesse sentido, para este segmento doutrinário, o “Poder Político”, tendo a mídia das massas a sua grande aliada, incutem nas pessoas a sensação de medo e de terror. O Estado, por sua vez, criou o inimigo intitulado “organizações criminosas” e, mediante a exclusão dos direitos fundamentais, como, v.g., o Regime Disciplinar Diferenciado, a proibição de apelar em liberdade, intenta realizar dois objetivos não-declarados e, puramente simbólicos, quais sejam, a manutenção do status quo e a resposta à sociedade, implicando certo alívio ao medo e à insegurança.
Acerca da seletividade do Direito Penal, assim se pronuncia GamilHireche, utilizando-se, como exemplos ilustrativos o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) e o Refis:
Se por um lado há RDD, por outro, aplica-se o Refis (1,2, ...) como extinção de punibilidade pelo pagamento para os crimes econômicos. Isto é uma evidência de seletividade, de segregação deliberada, em que o Direito Penal passa a ser utilizado como instrumento das classes diminantes para a consecução dos seus interesses. Devia-se, em verdade, a atenção do que seria a realidade dos fatos. Os verdadeiros responsáveis pelas ações dos bandos ou quadrilhas continuariam soltos, com a vantagem de colocar, na linha de frente daqueles que deveriam ser combatidos, meros testas-de-ferro (2005, p.35).
Identificados os argumentos centrais desse autor – todos eles de ordem criminológica, como sugere muito bem o título de sua obra –, é mister que se consigne as considerações que se seguem.
Primeiramente, não é objeto deste trabalho, de forma alguma, infirmar todas essas críticas apontadas por Hireche. A uma, porque a presente pesquisa se destina tão-somente à analise dos atos investigatórios previstos pela Lei 9.034/95, sob o enfoque eminentemente processual penal. Não é, de modo algum, objetivo deste trabalho o estudo das organizações criminosas, sob o enfoque criminológico. É por isso que entendemos que não devemos adentrar nesse tema que, por si só, poderia ser objeto de uma monografia que tão-somente tratasse sobre ele. A propósito, deve-se frisar que tão relevante análise político-criminal do fenômeno da criminalidade organizada cabe aos doutos da ciência da criminologia, que em muito contribui para o desenvolvimento científico do Direito Penal.
A duas, porque, data maximavenia, todos esses argumentos levantados por GamilHireche não serve para infirmar a existência da criminalidade organizada. A nosso sentir, o autor de utilizou, devidamente, dos estudos da criminologia (Direito Penal do Inimigo, Seletividade do Direito Penal, Função Simbólica do Direito Penal etc) para, alfim, interpretá-los em favor de seu entendimento – quase que isolado – pela inexistência das denominadas “organizações criminosas” na realidade dos fatos. Trata-se, pois, de uma conclusão interpretativa – respeitável claro – desse autor.
Não concluímos como Hireche. Comungamos com o entendimento majoritário da doutrina no sentido da existência da criminalidade organizada como um fenômeno social vivenciado em escala mundial. Senão, vejamos, para melhor esclarecer a questio, as posições de diversos autores nacionais e alienígenos.
Comecemos com a nossa grande mestra Ada Pellegrini Grinover. Conforme informa Francis Beck, Grinover
corrobora a gravidade da situação do crime organizado no Brasil – principalmente quanto ao narcotráfico, indústria dos seqüestros, exploração de menores e aos denominados crime de colarinho branco, com evidentes conexões internacionais e envolvimento de lavagem de dinheiro – ainda mais pelo fato de a polícia estar “completamente desarmada em face do poderio das organizações criminosas e de o Ministério público não dispor de meios operacionais suficientes para fazer face ao fenômeno. Problemas de corrupção tornam o quadro ainda mais dramático”.
Consoante HerreroHerrero,
adelinqüência organizada existiu sempre, da mesma forma que sempre existiu a atividade lícita organizada. Ambas em função da tendência do homem em planejar suas tarefas, sobretudo quando trabalha em grupo. O que ocorre é que, nas sociedades contemporânea, a delinqüência organizada em sentido específico, ou qualitativamente organizada (em oposição à deliquência de baixo grau de organização, inerente, de alguma forma, a qualquer classe de delinqüência coletiva ou associação delitiva), alcançou dimensões extremamente vastas (BECK, 2004, P. 56).
Mapelli Caffarena, por sua vez, é enfático e peremptório, concluindo que se tem, ainda,
o estabelecimento da diferenciação entre a criminalidade organizada e o que o autor denomina ‘fenômenos associativos’, na esfera criminal, cujos vestígios se perdem na história. Distinguindo as duas categorias, infere que, sem dúvida todas as investigações criminológicas coincidem em considerar a criminalidade organizada como um fenômeno característico da época atual (BECK, 2004, p.57).
Para Arbex Junior e JulioTognolli,
mais do que nunca, a sombra do crime organizado está presente em todas as atividades do homem comum, mesmo quando ele parece uma realidade longínqua, apenas perceptível no noticiário da televisão. Longe vai o tempo em que o ‘chefão’ assumia ares de Al Capone, cercado de capangas e fumando longos charutos cuja fumaça escrevia no ar as palavras ‘eu sou mau’. Ainda há gente assim, é claro, mas o mais provável é que os capôs das máfias atuais estejam nos escritórios dos grandes bancos e corporações, em cargos importantes dos governos, nas instituições acima de qualquer suspeita (BECK, 2004, p.63).
Segundo Marta Gomes de Liaño Fonseca-Herrero,
la alarmante dimensión, adquirida por el crimen organizado, se encuentra indisolublemente unida a la transformación experimentada por estos grupos criminales, la cual ha supesto una modificación de las que, hasta el momento, diversas disciplinas señalaron como características intrínsecas y conformadoras de una definición de criminalidad organizada (2004, p.30).
Enfáticas, outrossim, são as palavras de Antonio Carlos Lipinski:
na verdade, o conceito de Crime Organizado transnacional não é legal ou jurídico. Trata-se de um fenômeno social. A cada dia aumenta o número dos que se dedicam a essa atividade, que, para eles, não é incorreta ou ilegal, mas simplesmente uma forma de trabalhar: constitui para eles uma atividade profissional como as outras(2004, p.21).
Sobre o tema, Angiolo Pellegrini e Paulo José da Costa Jr. (1999) trazem, na obra “Criminalidade Organizada”, um estudo minucioso e aprofundado sobre a estrutura e o modus operandi de várias organizações criminosas, que, segundo ele, existem atualmente, como, por exemplo, a Casa Nostra Siciliana, a Ndrangheta, que nasceu na Calábria, a Camorra, a máfia da Campânia, a Sacra Corona Unita, a máfia pugliense, a Tríade (máfia chinesa), a Yakuza (máfia japonesa), as organizações criminais russas (máfia chechene, azerca, georgiana etc), a Casa Nostra Americana, dentre outros. Aponta, ainda, como principais atividades ilícitas da criminalidade organizada de tipo mafioso, o tráfico de estupefacientes, a extorsão, o tráfico de armas, a reciclagem de dinheiro, as fraudes comunitárias, a ilegalidade ambiental (ecomáfia), a usura, dentre outras.
Ademais, é interessante observar que, como mostra Angiolo Pellegrini e Paulo José da Costa Jr. (1999), tais organizações criminosas são, em quantidade, maiores nos paises desenvolvidos.
Segundo o Delegado da Polícia Federal e professor da Academia Nacional da Polícia Federal, Dr. Osvaldo Bastos Jr., algumas organizações criminosas internacionais atuam no Brasil, como, por exemplo, a União Corsa (francesa); Napolitana, Casa Nostra, Sacra Carrona (italianas); máfia russa etc.1.
Quanto à criminalidade organizada no Brasil, assim esclarece Eduardo Araújo da Silva (2003, p.25):
todavia, a prática contravencional do denominado ‘jogo do bicho’ (sorteio de prêmios a apostadores, mediante recolhimentos de apostas), iniciada no limar do século XX, é identificada como a primeira infração penal organizada no Brasil. A origem dessa contravenção penal é atribuída ao Barão de Drumond, que teria criado o inocente jogo de azar para arrecadar dinheiro com a finalidade de salvar os animais do Jardim Zoológico do Estado do Rio de janeiro. A idéia foi posteriormente popularizada e patrocinada por grupos organizados, que passaram a monopolizar o jogo, mediante a corrupção de policiais e políticos. Na década de 80, os praticantes dessa contravenção movimentavam cerca de US$ 500.000 por dia com as apostas, sendo 4% a 10% desse montante destinado aos banqueiros.
Em seguida, disserta sobre as “organizações mais recentes e violentas”, que surgiram nas penitenciárias do Rio de Janeiro, nas décadas de 70 a 80, como a “Falange Vermelha”, o “Comando Vermelho”, o “Terceiro Comando” e o “PCC – Primeiro Comando da Capital”.
No tocante ao PCC, é de verificar-se que os seus membros recebem cópias do estatuto dessa organização criminosa, no qual são determinadas as regras de conduta a serem seguida por cada integrante2 (MENDES, 2001).
Atenta, ainda, Silva, acerca da existência de outra modalidade de criminalidade organizada no Brasil.
Trata-se do desvio de vultosas quantias de dinheiro dos cofres públicos para as contas particulares abertas em paraísos fiscais localizados no exterior, envolvendo quase todos os escalões dos três Poderes do Estado... (SILVA, p.27).
Sob o prisma da sociologia, afirma Luiz Flávio Gomes:
De acordo com a opinião do sociólogo da USP já citado (Mingardi), entre nós os sinais mais perceptíveis da existência do crime organizado vêm de certas regiões ou áreas bem definidas do país. O rio de Janeiro, ele afirma, pela sua milagrosa topografia (ao lado de ser uma das mais belas cidades do mundo), é constantemente lembrado como local onde já existe crime organizado. A essa conclusão se chega, diz o professor da USP, porque lá se constata mais nitidamente um certo entrosamento entre o jogo do bicho, o tráfico de drogas e de armas e extorsão; o recrutamento dos “soldados” dessas atividades é mais localizado (favelas) e já é bastante evidente o “clientelismo”: os responsáveis pelas atividades ilícitas atuariam com certo apoio do poder público e desse modo o povo seria “cliente” não só do Estado, senão também dos próprios responsáveis pelo jogo, pelo tráfico etc.; existe, ademais, uma clara demarcação territorial na atividade de cada um, uma hierarquia, um planejamento, uma divisão de trabalho, o fim de lucro etc.
No âmbito prático, o chefe do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), do Ministério Público do Estado da Bahia, Dr. Paulo Gomes, expõe sua opinião (que mais parece um desabafo), ressaltando que a afirmação de que “porque o nosso legislador falhou inexistiria o crime organizado seria ‘forçar muito a barra’ no que se refere à defesa daquele pessoal que faz parte de organização criminosa” (GOMES, Paulo; 2007, p.02).
Ultrapassado o breve delineamento das argumentações em favor da existência do fenômeno da criminalidade organizada, passa-se às considerações gerais sobre as normas nacionais a elas aplicadas, com o objetivo precípuo de esclarecer que a análise criminológica das organizações criminosas não constitui o objeto deste trabalho.
Entendemos ser melhor a posição de Francis Rafael Beck (2004). Assim é que, malgrado parte da doutrina se incline a reconhecer que vários fatores – como, v.g., a globalização, o avanço extraordinário dos meios tecnológicos e de comunicação – propiciaram a disposição de um meio extremante favorável ao desenvolvimento da associação de sujeitos na formação ou desenvolvimento de grupos criminosos altamente sofisticados (organizações criminosas), que apresentam, dentre outras características (conforme se verá), um planejamento estrutural, hierárquico, a conexão, não rara, com membros da Administração Pública, o caráter transnacional, em alguns grupos, e, em regra, o emprego da lavagem de dinheiro, tal entendimento pela existência do fenômeno da criminalidade organizada, na realidade social, não legitima a criação de Direito Penal Emergencial, que venha a antecipar a tutela penal e a flexibilizar os direitos e as garantias da pessoa humana. Nesses termos, assim conclui Francis Beck:
Por fim, a ignorância e o medo exagerado do crime organizado, associados às já por demais conhecidas dificuldades no seu controle – dificuldades essas que, em última análise, são eminentemente estruturais – não podem servir de subterfúgio para uma reforma mais ampla do sistema penal, sobretudo se contaminada pelos ideais (irracionais) tendentes a uma antecipação da tutela penal e flexibilização das garantias dos cidadãos (2004, p. 168).
Nesse contexto, é de extrema relevância que se atente, claramente, que todas essas discussões de ordem criminológica destinam-se precipuamente, à crítica, muito bem esposada por Fancis Beck – vencedor do 8º Concurso IBCCRIM de Monografias –, quanto à flexibilização de direitos e garantias do réu, isto é, da tendência à fragilização dos direitos e garantias processuais, que buscam algumas leis especiais efetivar.
Assim, com muita razão critica a doutrina os abjetos arts. 5º (que prevê a identificação criminal compulsória); 6º (que prevê a delação premiada); 7º (que veda a liberdade provisória com ou sem fiança); 9º (que proíbe o réu apelar em liberdade) e 10 (que estabelece o regime inicial fechado por crimes decorrentes de organização criminosa), todos da Lei 9.034/95. É notória a veemente inconstitucionalidade de todos esses dispositivos, por ferirem de morte alguns dos princípios constitucionais mais relevantes – os arts 7º e 9º, verbi gratia, infringe o princípio da presunção da inocência (CARVALHO, 1997, p. 123).
Observe-se que não é a nossa intenção criticar a teoria da flexibilização dos direitos e garantias individuais processuais, muito pelo contrário, concordamos com as críticas da doutrina nesse sabor. Contudo, o que se deve ter em mente é que todas essas críticas não se dirigem à fase pré-processual, em que podem realizar, excepcionalmente, os atos investigatórios previstos no art. 2º, III, IV e V, da Lei 9.034/95. Atente-se, a propósito, que, em momento algum, GamilHireche, em sua “Análise Criminológica das Organizações Criminosas”, lançou suas críticas ao art. 2º (que é, justamente, o principal dispositivo legal que será objeto de análise deste trabalho). A única crítica que se relaciona com os atos investigatórios previstos pela Lei 9.034/95 é a dirigida ao art. 3º, da mesma Lei. A propósito, muito acertadamente tratou este autor sobre a quebra da imparcialidade do juiz e, por conseqüência, do sistema acusatório, propiciada por esse dispositivo legal. Nesse mesmo sentido, inclusive, é que faremos as nossas críticas ao art. 3º, em capítulo próprio, destinado à quebra dos sigilos bancário, fiscal, financeiro e eleitoral.
Outrossim, em momento algum, Francis Beck, ao tecer breve comentário sobre o dispositivo da Lei 9.034/95 que trata da fase pré-processual (art. 2º), posiciona-se no sentido da inconstitucionalidade do art. 2º, da mesma Lei. Diversamente, traz o autor, inclusive, as defesas de alguns doutrinadores, como LênioStreck e Geraldo Prado, não no sentido da inconstitucionalidade do art. 2º, mas sim no sentido da correta aplicabilidade deste dispositivo.
E nossa também é a preocupação com a adequada aplicação do art. 2º. Se por um lado, entendemos que a contemporaneidade exige, ou melhor, impõe novos instrumentos investigatórios e aperfeiçoamento de outros, com vistas a tornar mais eficaz a persecutio criminis, considerando ser esta persecução importantíssima para aplicação mais correta do Direito Penal, por outro, destinamo-nos, precipuamente, neste trabalho, justamente, à busca pelas devidas limitações legais e constitucionais, a fim de se restringir os excessos da investigação policial – tendo em vista que tais excessos podem implicar, necessariamente, na violação a direito fundamental tão relevante quanto o da intimidade (nos casos, v.g., de excesso na utilização da interceptação ambiental).