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Processo administrativo tributário: da possibilidade de questionamento judicial das decisões contrárias à Fazenda Pública

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27/05/2013 às 14:41

Resumo:


  • O processo administrativo tributário federal permite a revisão judicial de decisões definitivas contrárias ao Fisco, mas esta possibilidade é controversa e tem gerado debates no âmbito doutrinário e jurisprudencial.

  • Existe uma corrente doutrinária que defende a admissibilidade da revisão judicial por parte da Fazenda Nacional, com base em princípios como isonomia e acesso à justiça, enquanto outra corrente argumenta pela coisa julgada administrativa e vinculação da Administração às suas decisões finais.

  • A jurisprudência tende a seguir a corrente que considera a decisão administrativa final vinculante para a Administração, ressalvando a possibilidade de controle interno para anulação de atos viciados, sem recorrer ao Poder Judiciário para revisão do mérito administrativo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4 DEFINITIVIDADE DAS Decisões no âmbito administrativo tributário e a possibilidade de revisão

4.1 Decisões definitivas e seus efeitos

A definitividade da decisão significa que esta não mais poderá ser objeto de alteração pelos meios e recursos próprios previstos na esfera administrativa. O artigo 42 do Decreto 70.235/72 relaciona as situações em que a decisão administrativa torna-se definitiva.

Em primeira instância, tornam-se definitivas as decisões proferidas pelas Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento sem que tenha sido interposto recurso voluntário no prazo estabelecido (trinta dias). Também são definitivas as decisões pronunciadas pelas DRJ na parte que não for objeto de recurso voluntário, ou seja, quando o impugnante concorde parcialmente com o acórdão. Nesse caso, deve o processo ser apartado para cobrança do crédito tributário mantido nesta circunstância. Outrossim, a decisão que cancelar crédito tributário em valor inferior ao limite de alçada previsto para recurso de ofício, será da mesma forma definitiva, nos termos da Portaria MF nº 3/2008.

Quanto a não apresentação de recurso voluntário é importante notar que, ocorrendo a sua interposição extemporânea, o processo ainda assim deve ser remetido ao CARF para o julgamento da perempção, nos termos do artigo 35 do Decreto 70.235/1972.

No que concerne à segunda instância, são definitivas as decisões das quais não caiba recurso especial ou, se cabível, quando decorrido o prazo de quinze dias sem sua interposição. Frise-se que não cabe recurso especial de decisão de Câmaras do CARF que aplicarem súmula de jurisprudência do próprio Conselho ou da Câmara Superior, bem como do acórdão que decidir por anular a decisão de primeira instância.

Por último, são definitivas, na esfera administrativa, as decisões de instância especial proferidas pelas turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais de que não sejam cabíveis ou não sejam interpostos embargos de declaração.

Os efeitos da definitividade da decisão são opostos aos produzidos pela impugnação. De fato, a exigibilidade do crédito tributário, ora suspensa, volta a vigorar, possibilitando a sua cobrança e o prazo prescricional para propositura da ação de execução, por parte da Fazenda Pública, passa a fluir, pois o crédito tributário encontra-se definitivo, nos termos do artigo 174 do CTN.

A decisão definitiva contrária ao sujeito passivo será cumprida no prazo estipulado para cobrança amigável (trinta dias). Se descumprida, o crédito tributário respectivo deve ser encaminhado à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ativa e cobrança judicial. 

Tendo sido depositado o montante integral para suspender a exigibilidade do crédito tributário, o depósito efetuado deve ser convertido em renda da União, salvo se for comprovada a propositura de ação judicial, conforme reza o § 1º do artigo 43 do Decreto 70.235/72.

De outra parte, as decisões irreformáveis favoráveis ao sujeito passivo extinguem o crédito tributário, caso não possam mais ser objeto de ação anulatória, consoante o inciso IX, do artigo 156, do CTN. Em decorrência, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo dos encargos decorrentes do contencioso. Isso deve ser feito, como determina a norma, de ofício, sem necessidade de qualquer requerimento do sujeito passivo, remetendo-se o processo ao arquivo, nos termos do artigo 45 do Decreto 70.235/1972.

4.2 O contexto e o teor do Parecer/PGFN/CRJ nº 1.087/2004 e da Portaria PGFN nº 820/2004

Finalizado o contencioso fiscal na esfera administrativa e tendo sido mantido o crédito tributário, é pacífico o entendimento de que, amparado no princípio constitucional do amplo acesso à Justiça, o sujeito passivo pode dele se socorrer irrestritamente.

Questão polêmica reside na possibilidade de a outra parte contendedora, isto é, o Fisco, ter o mesmo direito de recorrer ao Poder Judiciário visando anular decisão administrativa que lhe foi contrária. O Parecer/PGFN/CRJ nº 1.087, de 19 de julho de 2004, concluindo favoravelmente a essa alternativa, reacendeu a discussão sobre o tema.

A emissão do precitado ato motivou-se pela preclusão administrativa, para a Fazenda Pública, de recorrer de decisão proferida pelo Conselho de Contribuintes, atual CARF, em processo de vultosa importância, envolvendo Fundo de Previdência Privada (entidade fechada e sem fins lucrativos).

A instituição obteve sentença favorável proferida em mandado de segurança impetrado para afastar a incidência de imposto de renda retido na fonte sobre os rendimentos de suas aplicações financeiras, sob o argumento que estava amparada pela imunidade prevista na alínea “c” do inciso III do artigo 19 da Constituição da República de 1967, com a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Assim, o estabelecimento bancário no qual eram feitas as aplicações financeiras ficou impedido de efetuar, na qualidade de responsável tributário, a retenção na fonte do imposto devido.

Com o advento da nova ordem constitucional (CF/1988) a Secretaria da Receita Federal lavrou Auto de Infração contra o mencionado Fundo, referente ao imposto de renda do período de janeiro de 1995 a dezembro de 1997, considerando que a atual Constituição concedeu imunidade tributária apenas às instituições de assistência social, não englobando às de previdência privada complementar. Ademais, no entender do Fisco, a segurança anteriormente concedida impedia a retenção do imposto pelo responsável tributário, contudo não obstaculizava a cobrança direta do contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária.

A autuação foi impugnada e após confirmação do lançamento em primeira instância, o recurso foi julgado pelo Primeiro Conselho de Contribuintes (Acórdão 104-18.373, de 16 de outubro de 2001), ocasião em que foi acolhida a preliminar suscitada pelo relator de que quando a lei elege substituto tributário, o contribuinte originário perde a condição de sujeito passivo. A exigência tributária foi cancelada por ilegitimidade passiva e, conforme entendimento da Procuradoria, em face da unanimidade de votos, essa decisão não comportava recurso para a Câmara Superior de Recursos Fiscais, restando definitiva na esfera administrativa.

Por envolver crédito tributário de elevada monta a PGFN, de forma inovadora e com fulcro nos artigos 19 e 20 do Decreto-lei nº 200/1967, interpôs Recurso Hierárquico junto ao Ministro da Fazenda requerendo a supervisão ministerial dos atos administrativos, o qual foi admitido e determinado seu processamento.

Desta feita, o impugnante ingressou em Juízo com Mandado de Segurança, junto ao Superior Tribunal de Justiça, requerendo o trancamento do recurso hierárquico por ausência de previsão legal, bem como preclusão para questionamento da decisão do Conselho de Contribuintes. O STJ concedeu a segurança, entendendo que o controle externo dos atos administrativos, judicial ou ministerial, só pode ser realizado em casos de flagrante ilegalidade ou nulidade da decisão, tendo assim decidindo:

EMENTA: ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES - DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA.

I - A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal.

II - O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei.

III – As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo “dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, Art. 45).

IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo o beneficiário da decisão recorrida. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Mandado de Segurança n. 8.810-DF, 2003)

Contra o veredicto acórdão a Fazenda Pública opôs embargos de declaração, os quais foram rejeitados, e posteriormente interpôs Recurso Extraordinário - RE ao Supremo Tribunal Federal, o qual não foi admitido pelo tribunal a quo. Ante essa inadmissão, foi interposto agravo de instrumento, tendo sido distribuído ao Ministro Carlos Britto que lhe deu provimento e o converteu no RE nº 535.077, sendo que este recurso aguarda julgamento desde 16 de novembro de 2006.

No intuito de tentar contornar essa situação desfavorável ao Fisco foi que o indigitado parecer exsurgiu, com o escopo de legitimar a propositura de ação judicial para anular a decisão administrativa irrecorrível. Através de despacho do Ministro de Estado da Fazenda o Parecer/PGFN/CRJ nº 1.087/2004 foi aprovado, tendo concluído:

VI

CONCLUSÃO

40. Assim posta a questão, em síntese, respondendo de modo objetivo, os itens 1, 2 e 3, respectivamente, da consulta, pode-se concluir que:

1) existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato.

2) podem ser intentadas: ação de conhecimento, mandado de segurança, ação civil pública ou ação popular.

3) a ação de rito ordinário e o mandado de segurança podem ser propostos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua Unidade do foro da ação; a ação civil pública pode ser proposta pelo órgão competente; já a ação popular somente pode ser proposta por cidadão, nos termos da Constituição Federal. (grifo nosso) (BRASIL, 2004)

Devido às críticas dirigidas ao assinalado parecer, a PGFN resolveu editar a Portaria nº 820, de 25 de outubro de 2004, disciplinando a submissão de decisões dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais à apreciação do Poder Judiciário, da qual se transcreve o artigo 2º:

Art. 2º As decisões dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais podem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário desde que expressa ou implicitamente afastem a aplicabilidade de leis ou decretos e, cumulativa ou alternativamente:

I - versem sobre valores superiores a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais);

II - cuidem de matéria cuja relevância temática recomende a sua apreciação na esfera judicial; e

III - possam causar grave lesão ao patrimônio público.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente a decisões proferidas dentro do prazo de cinco anos, contados da data da respectiva publicação no Diário Oficial da União. (grifo nosso) (BRASIL, 2004)

Como se observa, alguns critérios adotados, tais como “relevância temática” e “grave lesão ao patrimônio público” estão permeados de subjetividade e dão azo a variadas interpretações em sede doutrinária e jurisprudencial.

Em que pese existir regulamentação na seara administrativa no sentido de que a Fazenda Nacional pode ingressar com ações judiciais para obter do Poder Judiciário a declaração de que um determinado crédito de natureza tributária é exigível, não obstante decisão final do contencioso tributário administrativo em direção oposta, não se tem notícia da utilização desse instrumento por seus Procuradores. Hodiernamente, com RE nº 535.077 aguardando apreciação no STF, em especial quanto à aplicação do recurso hierárquico sobre o aspecto do mérito do ato administrativo, a Administração Fazendária suspendeu, até que sobrevenha decisão final, os efeitos do Parecer PGFN nº 1.087/2004 e da Portaria PGFN nº 820/2004, por intermédio da Nota PGFN/PGA nº 74, de 06 de fevereiro de 2007.

4.3 Posição doutrinária

4.3.1 Argumentos da corrente doutrinária favorável

Compõem o pensamento doutrinário favorável à revisão judicial de decisão administrativamente irretratável, dentre outros, Antonio Jose da Costa, Yoshiaki Ichihara, Edvaldo Brito, Francisco de Assis Alves, Helenilson Cunha Pontes, José Augusto Delgado, Moisés Akselrad, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, Rubens Gomes de Sousa, e Aurélio Pitanga Seixas Filho.

Na visão de Costa (2002) compartilhada por Ichihara (2002), pelo fato de o Estado se submeter às próprias normas que edita e às decisões judiciais, tem direito à jurisdição, desde que presentes os pressupostos de lesão ou ameaça a direito, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Carta da República de 1988. Acrescentam que, em atenção ao princípio da segurança jurídica, faz-se necessário observar determinados requisitos especificados em lei, a exemplo das hipóteses em que é permitida a revisão do lançamento tributário preconizadas no artigo 149 do CTN, in verbis:

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

I - quando a lei assim o determine;

II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária;

III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;

IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;

V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte;

VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária;

VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;

VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;

IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.

Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública. (BRASIL, 1966)

Para Edvaldo Brito (1999), negar à Administração acesso ao Judiciário para questionar decisões tomadas por seus órgãos coletivos resulta em ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o sujeito passivo não comparece ao contencioso administrativo tributário como um subordinado, mas como uma parte contendedora que também possui prerrogativas. Ressalta, ainda, que os órgãos julgadores administrativos não emitem atos jurisdicionais, tendo em vista o sistema de jurisdição adotado em nosso país:

A jurisdição única implica em que toda e qualquer lesão ou ameaça de direito somente pode ser reparada com a apreciação do Poder Judiciário que para essa função não pode ser excluído, nem por lei.

[...] o acesso ao Judiciário, como direito público subjetivo de ação, também,

não poderia ser impedido à administração, apesar de ser tentadora a interpretação no sentido de que o disposto no inciso XXXV do art. 5° da Constituição seria um direito fundamental do administrado e não da administração. Contudo, se prevalecesse essa interpretação, ela estaria em desacordo com o próprio sistema constitucional implantado entre nós que privilegia um princípio, o da isonomia, que se põe acima de todos os outros [...] (BRITO, 1999, p. 114-115)

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Alves (2002) assevera que uma decisão só se torna definitiva se proferida pelo Poder Judiciário, sendo esta condição basilar do Estado de Direito. Ademais, invoca o princípio da igualdade para garantir também ao Fisco as garantias constitucionais de acesso ao Judiciário, ampla defesa e do devido processo legal. Em suas palavras, enfatiza:

Isto significa que toda decisão definitiva sobre uma controvérsia só pode ser exercida pelo Poder Judiciário. Esse princípio está consagrado na Constituição federal que, enfaticamente, determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV).

Com a impugnação da exigência tributária instaura-se a fase litigiosa, bilateral, do processo administrativo fiscal. Assim sendo, no nosso entender, se a decisão administrativa for contrária à Fazenda Pública, será perfeitamente admissível a esta socorrer-se do Judiciário para, desse Poder, obter a palavra final sobre o caso decidido em via administrativa. Assim permite a Lei Maior. (ALVES, 2002, p. 463)

Pontes (2002) pondera que a matéria a ser objeto de questionamento judicial já deve ter sido amplamente discutida e estar pacificada, a ponto de fazer jurisprudência no âmbito do STJ ou do STF. Acrescenta ser igualmente plausível requerer judicialmente a anulação de decisão com vício de dolo, má-fé ou fraude. Nesse ínterim, dessume o autor:

Contudo, o interesse de agir à propositura de tal ação judicial somente surge com a definição da interpretação judicial sobre a matéria discutida. Antes de tal momento, não possui a Administração Pública o interesse jurídico a discutir no Poder Judiciário a validade de uma manifestação dela mesma emanada.

Outra hipótese que entendemos conferir à Administração Pública o interesse a pleitear judicialmente a anulação de decisão administrativa a ela contrária, pode ocorrer nas situações em que haja evidência de que tal decisão tenha sido proferida com dolo, má-fé ou fraude pelo agente que a proferiu. Enfim, a Administração poderá pleitear a anulação de decisão administrativa a ela contrária quando conseguir demonstrar vícios na formulação da mesma. (PONTES, 2002, p. 615)

Na ótica de Delgado (2002) somente a sentença judicial transitada em julgado é imutável. Ele partilha da idéia que é possível a retratação em Juízo quando a decisão está eivada de ilegalidade ou viciada por dolo, fraude, erro, simulação ou coação. Além disso, considera que os agentes públicos atuam em nome do Estado, mas não se confundem com o ente público, de maneira que este não pode ficar refém de decisões quando tomadas com abuso de poder, desvios de finalidade ou até mesmo imotivadas.

Akselrad (2002) explica que os princípios da isonomia, ampla defesa e o contraditório, somados ao princípio do livre acesso ao Judiciário permitem a proposição de anulação da decisão final administrativa pelo Poder Público. Contudo, em atenção ao princípio da moralidade administrativa, esse direito deve ficar circunscrito às situações que ensejem ilegitimidade, nulidade ou inconstitucionalidade do acórdão. Chama a atenção, por fim, para o fato de que o crédito tributário questionado não deve estar prescrito.

Saraiva Filho (2002) acredita que se houver total independência e desvinculação entre os órgãos julgadores administrativos e as chefias dos órgãos políticos, com a impossibilidade ou falta de previsão legal de recurso hierárquico ou avocação, é admissível que a Fazenda Nacional ingressasse em Juízo contra decisão que extinguiu o crédito tributário. Essa autonomia do tribunal administrativo em relação às autoridades do Poder Executivo, no caso Presidente da República ou Ministro de Estado, propiciaria maior isenção à decisão, a qual restaria desprovida de subordinação de vontades.

Entendendo que as decisões administrativas não poderiam fazer coisa julgada, Rubens Gomes de Sousa citado por Seixas Filho (1998) propôs que o Estado pudesse requerer em Juízo a anulação de pronunciamento da autoridade administrativa, quando este fosse revogatório ou modificativo do lançamento tributário, em prejuízo do Erário. Objetivava eliminar a possibilidade de recurso hierárquico ao Ministro da Fazenda, pois esse instrumento abalava a confiança do contribuinte. Segundo o seu pensamento, se a finalidade do processo é fazer prevalecer a lei, quer se trate de processo administrativo ou judicial, o órgão que deve pronunciar-se em última instância é o Poder Judiciário. Portanto, dizia ser incompatível com o sistema brasileiro atribuir um efeito de coisa julgada substancial à decisão administrativa.

Analisando a questão sob outro prisma, Seixas Filho (1998) aponta que a decisão proferida pelo tribunal administrativo não representa a vontade da Administração Pública, a qual denomina de Administração Ativa. Embora admita ser, a priori, um contra-senso, a Administração ajuizar uma ação para anular uma decisão administrativa, entende admissível esta ação porque a Administração Ativa não é titular da decisão final proferida no procedimento administrativo fiscal litigioso, a qual incumbe à Administração Judicante. Esta, por sua vez, tendo composição paritária, na qual metade dos julgadores não são servidores públicos, não pode representar a Administração Pública. Frise-se que o citado autor é contrário a existência dessa Administração Judicante, pois considera que a definição e utilização de regras processuais levam à obtenção de uma verdade formal, afastando a autoridade administrativa o seu objetivo maior, vale dizer, a prevalência da verdade material. O precitado professor conclui pela possibilidade de a Administração Ativa utilizar os instrumentos jurisdicionais cabíveis para corrigir erro de manifestação da Administração Judicante.

Em suma, o arcabouço teórico adepto à prerrogativa de a Administração Pública propor em Juízo anulação de decisão final, irrecorrível na esfera administrativa, funda-se nos seguintes enunciados:

Ø   o ente público também é titular de Direitos Fundamentais insculpidos no Texto Maior, tais como isonomia, amplo acesso ao Judiciário, devido processo legal, ampla defesa e contraditório;

Ø  pelo princípio da igualdade das partes, o particular comparece ao contencioso administrativo tributário como litigante e não como subordinado, dispondo de instrumentos processuais para influir no convencimento do colegiado;

Ø  o Estado Democrático de Direito pressupõe o controle judicial dos atos administrativos, sem que isso implique em ofensa ao princípio da separação dos Poderes;

Ø   as decisões definitivas na esfera administrativa não produzem efeito de coisa julgada, haja vista o sistema de jurisdição única adotado em nosso país, segundo o qual toda e qualquer ameaça ou lesão ao Direito pode ser apreciada pelo Poder Judiciário;

Ø   o Estado, se existente ameaça ou lesão a direito, dispõe da faculdade da prestação jurisdicional, pelo fato de, assim como os administrados, se submeter às leis e às decisões judiciais;

Ø  os agentes públicos, conquanto assumam compromissos legais para atuar em nome do Estado, não se confundem com este. Portando, o Poder Público não está obrigado a aceitar decisões proferidas com desvio de finalidade, abuso de poder ou imotivadas, podendo corrigi-las, quando possível, por ação própria, senão via Judiciário;

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Ø  os órgãos julgadores administrativos (Administração Judicante) têm composição paritária, vale dizer, são integrados por representantes do Fisco e dos contribuintes, impossibilitando que a decisão deles emanada seja representativa da vontade do Poder Público (Administração Ativa);

4.3.2 Argumentos da corrente doutrinária contrária

A corrente atualmente prevalecente defende posição no sentido de que a decisão administrativa final em matéria tributária é definitiva para a Administração Pública, quando oposta aos interesses do Fisco, considerando incabível postulação ao Poder Judiciário visando a desconstituí-las. Integram esse grupo Fábio Fanucchi, Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins, José Eduardo Soares de Melo, Kiyoshi Hadara, Marco Aurélio Greco, Maria Beatriz Martinez, Maria Teresa de Carcomo Lobo, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Plínio José Marafon, Ricardo Lobo Torres, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Schubert de Farias Machado, Vittorio Cassone e Ricardo Mariz de Oliveira, dentre outros.

Fanucchi (1975) infere que, sob pena de se negar validade à existência do contencioso administrativo, tem efeito definitivo a decisão final quando desfavoreça a Fazenda, inexistindo condição de apelo desta ao Judiciário. Ressalva, todavia, que o efeito dessa decisão é apenas entre partes, podendo, por providências de terceiro, em defesa da coletividade, serem anuladas decisões errôneas contrárias aos interesses do Erário e às determinações legais.

Machado (2002) firma sua compreensão em três premissas: 1ª) a finalidade essencial do Direito e o direito à jurisdição; 2ª) unicidade da Administração Pública; 3ª) a prática do Direito. Na primeira proposição adverte que as garantias constitucionais, dente elas o direito à jurisdição, existem para proteger o particular contra o arbítrio de quem exerce o Poder estatal, o qual é institucional e infinitamente maior que o poder do cidadão. No segundo ponto considera que os órgãos julgadores administrativos não exercerem função jurisdicional e, ao emitirem suas decisões, manifestam a vontade do próprio Estado. Por último, enfatiza que é papel do Direto buscar o equilíbrio na relação dos indivíduos com o Estado, implicando em prejuízo para a coletividade admitir que as decisões dos órgãos de julgamento contra a Fazenda não a obrigue definitivamente, dada a inutilidade que revestiria tais órgãos.

Martins (2002) alerta para a insegurança jurídica que se instauraria caso os processos julgados pelos órgãos colegiados fazendários pudessem ser contestados judicialmente, independentemente da parte vencedora, fato tal que geraria discussões intermináveis. O doutrinador também revela que a Fazenda faz papel de parte e juiz no contencioso tributário administrativo, notadamente em primeira instância, significando dependência da atividade julgadora. Por fim, justifica a impossibilidade de reconstituição judicial do crédito tributário, quando o mesmo já fora desconstituído administrativamente, como também de sua revisão pelo juiz, invocando para tanto os artigos 142 e 145 do CTN:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

[...]

Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:

I - impugnação do sujeito passivo;

II - recurso de ofício;

III - iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no artigo 149. (BRASIL, 1966)

Melo (2002) relativiza o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, na medida em que não podem ser dadas prerrogativas à Administração que tenham fins meramente arrecadatórios e ocasionem desrespeito aos administrados. Além disso, enxerga na propositura de ação judicial pelo Poder Público para desconstituir decisão administrativa tributária irreformável, violação ao princípio da moralidade e deslealdade para com o contribuinte, com a implicação subsequente:

A ação judicial representaria a falência do processo administrativo, que passaria a constituir uma mera fantasia de garantia constitucional do contribuinte, na medida em que, por razões de mera conveniência financeira, a Fazenda viria a ignorá-lo se e quando entendesse oportuno. (MELO, 2002, p. 308)

A esse propósito, Hadara (2002) aduz que atenta contra a moralidade administrativa a não submissão, por parte da Fazenda Pública, às decisões tomadas por seus órgãos julgadores, nos quais atua como parte e juiz concomitantemente. Igualmente constata a desnecessidade de se manter uma estrutura de contencioso tributário, se todas as decisões pudessem ser levadas à apreciação do Poder Judiciário, não se justificando o considerável emprego de tempo e recursos. Advoga a existência da coisa julgada administrativa, a qual obriga à Administração aos seus termos, ressalvando a faculdade que ela possui de anular seus próprios atos, nos casos de vícios do processo, no exercício de seu controle interno.

Greco (2002) destaca a impossibilidade processual de a mesma pessoa jurídica configurar como autora e ré na ação judicial. Sobre a Administração anular seus próprios atos, faz a mesma reserva já esposada anteriormente, caso a decisão contenha vício de ilegalidade, amparado na Súmula 473 do STF:

A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. (BRASIL, 1969)

Outro aspecto importante, levantado por Martinez (2005), refere-se ao controle do ato administrativo. Para a estudiosa, o controle exercido pelo Poder Judiciário restringe-se aos aspectos da legalidade e legitimidade, sendo-lhe defeso avançar sobre a questão do mérito, sob pena de incorrer em afronta ao princípio da independência entre os Poderes. A autora demonstra, ainda, preocupação com a insegurança jurídica que se instauraria caso fosse possível contestar judicialmente decisão de mérito proferida pelos Conselhos de Contribuintes, pois, no seu entender, o sujeito passivo estaria amparado pelo direito adquirido quando tal deliberação o desonerasse do pagamento de tributos. Essa situação de instabilidade seria agravada diante dos conflitos de teses tributárias existentes entre o Poder Judiciário e os órgãos de julgamento da Administração Fazendária, especialmente quando são favoráveis aos contribuintes no âmbito administrativo e apresentam entendimento divergente no âmbito judicial.

Sobre constituir ou não em coisa julgada a decisão definitiva da esfera administrativa, Lobo (2002) posiciona-se:

A decisão definitiva da Administração judicante, se não constitui coisa julgada material, dada a possibilidade de sua revisão judicial, garantia constitucional conferida ao contribuinte, configura, todavia, coisa julgada formal, no sentido da sua imutabilidade para a Administração dado o caráter vinculante da decisão administrativa. (LOBO, 2002, p. 252)

Assim, a doutrinadora em destaque afirma que a insuscetibilidade de revisão judicial decorre da obrigação funcional para a Administração em respeitar e executar resoluções definitivas oriundas de sua própria estrutura. 

Rodrigues (2002) afasta a possibilidade de anulação judicial de decisão administrativa contrária à Fazenda, a seu pedido, baseando-se no princípio constitucional da segurança jurídica, direito pleno a ser preservado em um Estado Democrático. Fundamenta-se, para tanto, no caput do artigo 5º da Magna Carta, o qual garante aos brasileiros e estrangeiros aqui residentes direito à segurança, devendo esta ser concebida com amplitude, ou seja, estabilidade das relações jurídicas, econômicas, políticas e sociais. A especialista relembra que a atividade de lançamento é vinculada e obrigatória, conferindo à relação Fisco - sujeito passivo caráter de imposição tributária. Destarte, o acórdão que torna sem efeito a exigência do tributo representaria ato de reconhecimento da autoridade de que houve alguma imperfeição no lançamento, gerando direito subjetivo para o contribuinte. Este benefício, concernente a fatos geradores já ocorridos, seria irrevogável, encontrando resguardo no artigo 146 do CTN:

Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. (BRASIL, 1966)

Marafon (2002, p. 282) reputa que o processo administrativo tributário brasileiro é “desigual, parcial e sujeito ponderáveis influências contra o contribuinte”, porquanto é controlado e submetido ao Poder Executivo. Adiciona à sua argumentação a impossibilidade de se atribuir ao Poder Judiciário a atividade de lançar tributo (pois nisso é que resultaria se ocorresse anulação judicial de decisão administrativa que extinguiu o crédito tributário), dada que essa competência é privativa da autoridade administrativa (artigo 142, CTN).

Destacam-se da lição de Torres (2002), dentre outros motivos que relaciona para demonstrar a inviabilidade de a Fazenda Pública ir a Juízo pedir anulação de decisão administrativa a ela adversa, as alegações de ausência de expressa previsão legal para interposição desse tipo de ação e de prejuízo ao princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. Para o especialista, a ação de invalidade de atos administrativos a ser proposta pela Fazenda não está compreendida no direito genérico de ação, tornando-se imprescindível, nesse particular, a positivação da necessidade de se recorrer ao Judiciário, pois se trata de exceção ao princípio da autotutela administrativa. Por outro lado, a ação anulatória seria impetrada pelo Poder Público diretamente junto a um Tribunal, o que suprimiria o julgamento em primeira instância judicial, momento em que são colhidas as provas processuais, considerado por ele um dos pontos fracos do processo administrativo fiscal.

De forma sucinta, Coêlho (2002) defende que não existe no Direito brasileiro ação anulatória de ato formalmente válido praticado pela Administração, por falta de interesse de agir, em outras palavras, o poder Público não poderia ir a Juízo contra ato próprio.

Machado (2001) rebate a tese de que a deliberação emitida pelo colegiado administrativo não representa a vontade da Administração, comprovando com as razões expostas abaixo:

Primeiro, a lei não divide a Administração em Ativa e Judicante. A Administração é una. O Conselho de Contribuintes integra organicamente a Administração. A decisão desse colegiado é, sobretudo, uma decisão da Administração.

Segundo, os membros do Conselho de Contribuintes são regularmente nomeados e empossados no cargo e ficam sujeitos ao regime jurídico do funcionalismo público, inclusive para fins penais. Nada os distingue entre si.

Terceiro, existe uma falsa paridade na formação dos Conselhos. Além da metade dos membros desses colegiados, a Administração detém a presidência dos mesmos, a quem cabe o voto de desempate.

Quarto, a participação de pessoas indicadas pelos contribuintes não retira a legitimidade desses colegiados decidirem pela Administração. Aqui invocamos nosso testemunho pessoal. Muitas vezes presenciamos os representantes dos contribuintes votando pela integral manutenção das exigências fiscais, em sentido contrário ao voto dos representantes da Fazenda, que decidiam pela extinção do crédito tributário. Essa realidade pode ser facilmente constatada por qualquer um que freqüentemente as seções de julgamento do Conselho de Contribuintes. (sic)

Quinto, a pluralidade de vontades está presente em toda a Administração, sendo comum até mesmo a discordância pública entre Ministros de Estado. É exatamente por isso que a lei fixa a competência para a prática dos atos administrativos. No caso em exame, a competência para decidir sobre a legalidade do lançamento tributário está legalmente reservada ao Conselho de Contribuintes e não ao Ministro da Fazenda. (MACHADO, 2001, p. 17)

Cassone (2002) confia que a lesão ou ameaça a direito inscritas no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição são suportadas somente pelos contribuintes, tendo em vista a sistemática da imposição tributária, não sendo cabível ao Estado (impositor) procurar o Judiciário para anular decisão que beneficie o impugnante.

Outra questão importante nessa matéria refere-se à propositura de ação civil pública, espécie mencionada no Parecer/PGFN/CRJ nº 1.087/2004 para o questionamento das decisões dos Conselhos de Contribuintes. Oliveira (2002) pugna pela impossibilidade do seu manejo, haja vista que no processo administrativo os interesses são determinados e pertencentes a partes individualizadas, enquanto que o requisito para intentar esta espécie de ação é a proteção de interesses difusos e coletivos, como prevê o inciso III, do artigo 129, da CF/1988. Ademais, o professor não visualiza, mesmo que o Ministério Público discorde da decisão de mérito proferida, configuração de ato ilícito, visto que o livre convencimento do julgador é princípio inerente ao processo administrativo tributário. Por fim, afirma que a noção de patrimônio público e social não é formada apenas por valores pecuniários e materiais, estando o abrigo da segurança jurídica inserto neste conceito. 

Em linhas gerais, pode-se sintetizar a teorização da corrente adversa ao manejo de ação, por parte da Fazenda Pública, para nulificar decisão final de seus órgãos julgadores, contrária aos interesses do Erário, nos seguintes argumentos:

Ø  a proteção contra lesão ou ameaça a direito insculpida no inciso XXXV, artigo 5º, CF/1988 é direito fundamental assegurado somente aos cidadãos contra possíveis arbítrios cometidos pelo Poder Estatal, e não o reverso, porquanto o Estado prescinde dessa garantia para praticar seus atos;

Ø a Administração tem a seu dispor o poder da autotutela, segundo o qual pode revisar (anulando ou revogando) seus próprios atos, sendo o processo administrativo fiscal instrumento para que se exerça esse controle interno;

Ø decisão proferida em ultima instância administrativa consiste no ato final de acertamento do crédito tributário, tendo efeito de coisa julgada para a Administração, vinculando-a em todos os seus termos;

Ø  a decisão final administrativa favorável ao contribuinte gera para o mesmo direito adquirido. Revê-la causaria grave dano a um dos princípios medulares do Estado Democrático de Direito, qual seja, a segurança jurídica, responsável por garantir a estabilidade necessária à evolução da sociedade;

Ø pelo princípio da separação dos Poderes, o controle dos atos administrativos pelo Judiciário deve se ater aos aspectos da legalidade e legitimidade, não comportando juízo sobre o mérito (conveniência e oportunidade);

Ø significa uma violação ao princípio da moralidade administrativa, uma vez que retira a legitimidade do processo administrativo tributário, desprestigia os órgãos julgadores da Administração Fazendária, tornando injustificável o gasto elevado para manutenção dos mesmos, os quais estariam fadados a inutilidade;

Ø  o Código Tributário Nacional (art. 156, IX) elenca a decisão administrativa irreformável na órbita administrativa como uma das formas de extinção do crédito tributário, razão pela qual uma possível ação judicial não subsistiria por inexistência do objeto;

Ø o Poder Judiciário, ao decidir pelo restabelecimento de exigência anteriormente extinta no campo administrativo, estaria realizando o lançamento do crédito tributário, atividade privativa de autoridade administrativa (art. 142, CTN), para a qual não possui competência;

Ø  é um contra-senso a Administração ajuizar ação contra decisão administrativa que ela mesma proferiu, já que resultou de sua própria manifestação de vontade, configurando-se falta de interesse de agir. Ademais, é juridicamente impossível a mesma parte apresentar-se como autora e ré na ação judicial;

Ø  ausência de previsão legal expressa. Tal ação anulatória não está compreendida no direito genérico de ação, garantido a qualquer titular de bem jurídico, uma vez que se trata de excepcionalidade ao princípio da autotutela conferida à Administração.

4.4 A jurisprudência

Da pesquisa por julgados favoráveis ao questionamento, pela Fazenda Pública, de decisões finais administrativas contrárias aos seus interesses, nota-se a dificuldade em se encontrar precedentes nesse caminho, permitindo inferir que essa tese é minoritária na magistratura pátria. A título ilustrativo transcreve-se ementa de acórdão onde o magistrado recorreu ao princípio da jurisdição única para justificar o direito de ação anulatória pela Fazenda Nacional:

EMENTA: PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL – CONFISSÃO DA DÍVIDA – MULTA ANISTIADA, NA ESFERA ADMINISTRATIVA – INEXISTÊNCIA DE PRECLUSÃO, NA VIA JUDICIAL – PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO – POSSIBILIDADE JURÍDICA E PROCEDÊNCIA NA RECONVENÇÃO

1. Se a autora reconhece o débito que buscou anular, na ação principal, extingue-se o processo com julgamento do mérito, em seu desfavor.

2. Na força do princípio da inafastabilidade da jurisdição, afigura-se juridicamente possível ação reconvencional, proposta pela União Federal, (Fazenda Nacional) visando desconstituir decisão administrativa de Conselho de Contribuintes, que concedeu anistia, indevidamente, à multa aplicada à empresa demandante.

3. Apelação e remessa oficial (como se interposta fosse) desprovidas. Sentença confirmada, por seus próprios fundamentos. (grifo nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Apelação cível n. 95.01.05547-7/PA, 1995)

Na direção antagônica, tem-se um maior número de precedentes jurisprudenciais acolhendo a tese da coisa julgada administrativa, resultante de efeito vinculante para a Administração Pública de suas decisões finais.

Na órbita do contencioso administrativo tributário, os Conselhos de Contribuintes (atual CARF) e a Câmara Superior de Recursos Fiscais assim se manifestaram: 

EMENTA: NORMAS PROCESSUAIS- MATÉRIA TORNADA NÃO LITIGIOSA NO CURSO DA DISCUSSÃO – PRECLUSÃO – COISA JULGADA ADMINISTRATIVA – Precluem e, portanto, não podem ser objeto de reapreciação as matérias que no curso da discussão administrativa deixam de ser litigiosas em face do acolhimento definitivo de razões de impugnação, assim acarretando a chamada coisa julgada administrativa.

[...]

(Brasil, Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, Acórdão n. 01-03.074, 2000)

EMENTA: COISA JULGADA ADMINISTRATIVA. É defeso à autoridade julgadora reapreciar questão já decidida definitivamente em seara administrativa. Recurso voluntário a que se nega provimento. Publicado no D.O.U. nº 230 de 30/11/2007....Decisão: Por unanimidade de votos, REJEITAR a preliminar de nulidade do auto de infração e, no mérito, NEGAR provimento ao recurso. (grifo nosso) (Brasil, Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, Acórdão n. 103-23082, 2004)

EMENTA: IRPJ – DEFERIMENTO DE COMPENSAÇÃO EM OUTRO PROCESSO – RESPEITO À COISA JULGADA ADMINISTRATIVA – Uma vez decidida em outro processo administrativo a compensação de um tributo devido, não é possível, sem o devido processo legal, que se promova lançamento para exigir multa isolada do tributo cuja compensação foi reconhecida por autoridade administrativa competente. (Brasil, Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, Acórdão n. 108-08606, 2005)

Na esfera judicial, colacionam-se dos Tribunais Regionais Federais:

EMENTA: Tributário. Reapreciação de matéria deduzida em Processo Administrativo. Impossibilidade Face à Coisa Julgada Administrativa. Certidão Negativa de Débito. Direito Líquido e Certo.

1. Dos Documentos acostados aos autos, consta-se a reapreciação da matéria em processo administrativo, o que é vedado na via administrativa em prol da estabilidade das relações entre as partes, e em respeito à "coisa julgada administrativa".

2. Tendo a certidão negativa de débito sido negada em razão da conclusão obtida em processo administrativo reaberto, e diante de sua imodificabilidade na via administrativa, indiscutível resta o direito líquido e certo á referida certidão negativa de débito.

3. Remessa oficial improvida.

(grifo nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, REOMS n. 53787-97/CE, 1998)

EMENTA: Tributário e Administrativo. Conselho de Contribuintes. Coisa Julgada Administrativa.

1. Não pode a Administração cobrar crédito tributário cujo lançamento foi considerado nulo pelo Conselho de Contribuintes, sob pena de ofensa à coisa julgada administrativa. 2. Apelação e remessa oficial improvidas. (grifo nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região, AC/MS n. 96.04.1590-4/PR, 1999)

EMENTA: TRIBUTÁRIO. REVISÃO DE LANÇAMENTO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. COISA JULGADA. PRECLUSÃO. ERRO DE DIREITO.

- Transitada em julgado a decisão que, em processo administrativo, acatou a defesa do contribuinte e declarou a inexistência da obrigação, extingue-se o crédito (pretenso) tributário, nos termos do art. 156, IX do CTN;

- Somente em casos de erro de fato é possível a revisão do lançamento, nos termos do art. 149 do CTN, mediante a lavratura de outro lançamento, dando início a novo processo administrativo, sempre que não haja se consumada a decadência.

- Impossibilidade de aproveitamento do processo administrativo anterior já findo, com decisão transitada em julgado.

- Apelo provido

(grifo nosso) (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, AMS n. 73.262/CE, 2002)

Outrossim, a tendência dos Tribunais Superiores segue na esteira da existência de vinculação das decisões administrativas em relação ao Fisco, à semelhança da coisa julgada em matéria processual, bem como da limitação imposta pela preclusão administrativa.

EMENTA: Coisa julgada fiscal e direito subjetivo. A decisão proferida pela autoridade fiscal, embora de instância administrativa, tem, em relação ao Fisco, fôrça vinculatória, equivalente à da coisa julgada, principalmente quando gerou aquela decisão direito subjetivo para o contribuinte. Recurso extraordinário conhecido e provido. (sic) (grifo nosso) (Brasil, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 68.253-PR, 1969)

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. ATO ADMINISTRATIVO. PRECLUSÃO ADMINISTRATIVA.

I - O ato administrativo conta com a retratabilidade que poderá ser exercida enquanto dito ato não gerar direitos a outrem. Ocorrendo a existência de direitos, tais atos serão atingidos pela preclusão administrativa, tornando-se irretratáveis por parte da própria Administração.

II - É que, exercitando-se o poder de revisão de seus atos, a Administração tem que se ater aos limites assinalados na lei, sob pena de ferir direitos líquidos e certos do particular, o que configura ilegalidade e/ou abuso de poder.

III - Segurança concedida.

(grifo nosso) (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, MS n. 009/DF, 1989)

EMENTA: ADMINISTRATIVO – PRECLUSÃO – REGISTRO DE POSTO DE ABASTECIMENTO. O ato administrativo não pode ser modificado, ocorrida a preclusão, mesmo por autoridade hierarquicamente superior, quer por via recursal, quer por avocação. A modificação configura ilegalidade e dá surgimento a direito líquido e certo. Segurança concedida.

(grifo nosso) (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, MS n. 223/DF, 1990)

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CONSELHO DE CONTRIBUINTES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – RECURSO HIERÁRQUICO - SECRETÁRIO DE ESTADO DA FAZENDA DO ESTADO - EXPRESSA PREVISÃO LEGAL - LEGALIDADE - PRECEDENTES.

A previsão de recurso hierárquico para o Secretário de Estado da Fazenda quando a decisão do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro for prejudicial ao ente público não fere os princípios constitucionais da isonomia processual, da ampla defesa e do devido processo legal, porque é estabelecida por lei e, ao possibilitar a revisão de decisão desfavorável à Fazenda, consagra a supremacia do interesse público, mantido o contraditório. Nesse sentido, assevera Hely Lopes Meirelles que os recursos hierárquicos impróprios "são perfeitamente admissíveis, desde que estabelecidos em lei ou no regulamento da instituição, uma vez que tramitam sempre no âmbito do Executivo que cria e controla essa atividades. O que não se permite é o recurso de um Poder a outro, porque isto confundiria as funções e comprometeria a independência que a Constituição da República quer preservar".

Além disso, o contribuinte vencido na esfera administrativa sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário para que seja reexaminada a decisão administrativa. Já a Fazenda Pública não poderá se insurgir caso seu recurso hierárquico não prospere, uma vez que não é possível a Administração propor ação contra ato de um de seus órgãos. Recurso não provido.

(grifo nosso) (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 12.386-RJ, 2004)

EMENTA: TRIBUTÁRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. REVISÃO. PRECLUSÃO. SEGURANÇA JURÍDICA.

1. Em observância ao princípio da segurança jurídica, o administrado não pode ficar à mercê de posterior revisão de decisão definitiva em processo administrativo regulamente prolatada.

2. Recurso especial improvido.

(grifo nosso) (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 572358/CE, 2006)

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Sobre o autor
Daniel Sá da Silva

Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Daniel Sá. Processo administrativo tributário: da possibilidade de questionamento judicial das decisões contrárias à Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24536. Acesso em: 23 dez. 2024.

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