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O crime organizado transnacional e suas consequências socioeconômicas

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Características das Organizações Criminosas

Segundo Ziegler[20], uma organização criminosa se caracteriza por ser uma organização econômica, nos moldes de uma organização capitalista, estruturada sob o supedâneo da maximização dos lucros e controle vertical da produtividade, assemelhando-se a qualquer outra empresa multinacional, comercial ou bancária, legal.

A Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil estabelece, como essenciais, dez características do crime organizado, que são:

i. Planejamento empresarial;

ii.  Antijuridicidade;

iii.  Diversidade de área de atuação;

iv.   Estabilidade de seus integrantes;

v. Cadeia de comando;

vi.  Pluralidade de agentes;

vii. Compartimentação[21];

viii.  Códigos de honra;

ix.   Controle Territorial;

x.   Fins lucrativos

Mingardi[22] enumera quinze características, que singularizam as organizações criminosas. São elas:

i.   Prática de atividades ilícitas;

ii. Atividade clandestina;

iii.    Hierarquia organizacional;

iv. Previsão de lucros;

v.  Divisão do trabalho;

vi.  Uso da violência.

vii.  Simbiose com o Estado;

viii. Mercadorias ilícitas;

ix. Planejamento empresarial;

x. Uso da intimidação;

xi.   Venda de serviços ilícitos;

xii. Relações clientelistas;

xiii.  Presença da lei do silêncio;

xiv. Monopólio da violência;

xv. Controle territorial.

Para Gomes[23], as características marcantes da máfia transnacional, são:

Hierarquia estrutural, planejamento empresarial, claro objetivo de lucros, uso de meios tecnológicos avançados, recrutamento de pessoas, divisão funcional de atividades, conexão estrutural ou funcional com o poder público e/ou com o poder político, oferta de prestações sociais, divisão territorial das atividades, alto poder de intimidação, alta capacidade para fraude, conexão local, regional, nacional ou internacional com outras organizações etc.

Por se tratar de uma “empresa” de caráter multinacional – que, cada vez mais, vem se tornando uma corporação transnacional ou uma companhia global – uma organização criminosa, também se beneficiou, sobremaneira, tanto da revolução tecnológica que culminou com a criação e expansão das telecomunicações – em especial, da Internet – bem como da expansão do capitalismo em escala global. Ziegler[24] deixa claro:

Para o crime organizado, a Internet é um presente do céu. [...] Os cartéis criminosos de todo mundo têm ao seu dispor informações de alto nível. A Internet representa um equipamento auxiliar precioso para a maioria das comunicações entre diferentes cartéis criminosos, especialmente os que se associam em joint-ventures internacionais. Suas comunicações são protegidas por programas de criptografia praticamente impenetráveis. Fortemente marcados pela racionalidade americana, os novos chefões surgidos no pós-guerra não se vinculam mais – em primeiro lugar – ao controle da população ou da terra. [...] Os senhores do crime e seus cúmplices prosperam naturalmente nos “principados” que enveredaram pela modernização acelerada, desfrutando de uma inserção rápida no mercado mundial.

Importantíssima é a lição de Fernandes&Fernandes[25] ao inferirem que é

inquestionável, por outro lado, que, hoje, a atuação do crime organizado é praticamente universal. A interligação da economia mundial permitiu ao crime organizado a globalização de suas “atividades”, mormente após a queda do comunismo soviético e da dissolução das fronteiras da Europa por conseqüência da formação da comunidade econômica européia. Com isto a Máfia, seja siciliana ou sua co-irmã norte-americana, tende a crescer ainda mais [...]

Neste flanco, as organizações criminosas tendem a ser apátridas e exercer as suas atividades, através de “filiais” em vários locais do globo, simultaneamente, sem nenhuma relevância quanto à disposição geográfica dos Estados onde atuam, bastando, para tanto, que o mercado seja “promissor”. Tomemos como exemplo a Máfia Siciliana que atua na Rússia, França, Holanda, Inglaterra e Alemanha. Além disso, as máfias tendem a firmar “alianças” entre si cujo objetivo é a dominação, cada vez maior, de mercados ao longo do globo terrestre, tornando praticamente impossível a defesa interna dos Estados contra as suas atividades[26].

Outro traço particularizante de uma organização criminosa é a forma com que estas se organizam internamente: há uma hierarquia meticulosamente organizada, na qual os seus participantes desenvolvem atividades de acordo com suas aptidões, todas convergentes para a maximização dos lucros e controle vertical da produtividade, o que é feito tanto de forma lícita como ilícita. Utilizam-se, para tanto, de um complexo planejamento empresarial mediante a divisão de tarefas[27], e de tecnologia de ponta, de forma que uma organização criminosa pode ser comparada com as mais complexas e avançadas empresas multinacionais lícitas da atualidade.

Galbraith[28] nos ensina que a essência do sucesso de uma organização criminosa encontra-se na divisão do trabalho, totalmente vinculado e submisso aos objetivos da empresa. Esta sujeição dos indivíduos aos desígnios da máfia sugere a existência de um código de honra[29] que envolve o auxílio mútuo entre os membros, a submissão absoluta aos ordenamentos superiores e, ainda, a Omertá, ou lei do silêncio, que impõe a qualquer membro da organização o sigilo absoluto de suas atividades, tal qual é exigido das empresas legais o sigilo profissional ou industrial, com a diferença que, naqueles casos, a penalidade é capital.

Faria Costa apud Franco[30], dá mais detalhes sobre essa complexa estrutura interna das organizações criminosas dizendo:

[...] A teia criminosa que se tece para que se consiga um fluxo criminoso que possa desencadear lucros fabulosos não é uma programação artesanal, mas antes um projeto racionalmente elaborado que passa, sobretudo, por três grupos, de certo modo independentes, mas que, é evidente, têm também pontes ou conexões. Fundamentalmente, os diferentes três grupos assumem-se funcionalmente da seguinte maneira: o grupo central ou nuclear tem como finalidade principal levar a cabo o aprovisionamento, o transporte e a distribuição de bens ilegais. [...] Um outro grupo tem como propósito servir de proteção institucional de toda rede ou teia. É a tentativa de chamar à organização, de forma mais sutil e direta, a política, a justiça e a economia, as quais, através do estatuto de seus representantes, permitem criar bolsas ou espaços onde a atuação política se torna possível. Finalmente, surge um terceiro grupo que tem como fim primeiro estabelecer a lavagem de todo o dinheiro legalmente conseguido. Operam-se, por conseguinte, ligações com instituições bancárias, com cassinos e, ainda, com outras sociedades legalmente constituídas. É o grupo que funciona como placa giratória entre o mundo criminoso e o normal e comum viver cotidiano.

Assim, as organizações criminosas trabalham, habilmente, em dois mundos paralelos: o das atividades legais e ilegais, usando, para tanto, dos serviços e vantagens do sistema bancário[31] que não questionam a origem do capital e reciclam seus lucros ilegais, tornando-os legais, para, novamente, em uma cadeia interminável, aplicá-los tanto em atividades lícitas como ilícitas, sendo estas últimas o seu foco principal.

Dados trazidos pelo Instituto Brasileiro Giovani Falcone[32], são esclarecedores acerca dos paraísos fiscais ao dizerem que,

evidentemente, existem os paraísos fiscais continentais, conhecidos como centros on-shore. O estado norte-americano de Delaware é um desses paraísos fiscais e se destaca pela sua famosa lei protetiva: Delaware Corporation Law. Por intermédio dela, as pessoas jurídicas deitam e rolam em isenções e movimentações milionários, sempre cobertas pelo sigilo bancário. Para muitos juristas, um sigilo semelhante ao do confissionário, pois, numa relação contratual, o segredo do banqueiro é igual ao do padre e do médico. O Canadá possui áreas atraentes para lavadores de dinheiro, como demonstra o patrimônio de Alfonso Caruana, um dos dez maiores traficantes internacionais de drogas ilícitas do século XX. Existem, ainda, os conhecidos paraísos de Liechtenstein, Luxemburgo, San Marino, Panamá, além dos portos abertos para grandes, sigilosos e rentáveis armazenamentos de grana, como Gibraltar. [...] Para os interessados no “branqueamento” de capitais de origem duvidosa, os centros off-shore são mais atrativos. E isso deve-se à escassa fiscalização da atividade bancária, -- muitas vezes sem registros de operações precendentes ao depósito--, do obstáculo à cooperação internacional, salvo casos de narcotráfico, da possibilidade de se manter patrimônio despersonalizado. No Panamá, o correntista identifica-se usando fantasias virtuais: Mickey, Tio Patinhas, etc.

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Fernandes e Fernandes[33] deixam claro que as atividades ilícitas das organizações criminosas envolvem, especialmente, o tráfico de drogas, a exploração do jogo, o contrabando e a exploração do lenocínio, tráfico de órgãos e seres humanos e, ainda, a lavagem de dinheiro.

Uma característica diversa que também singulariza uma organização criminosa é sua organização paramilitar.

Para conseguir atingir seus objetivos, a máfia transnacional recorre ao exercício da violência através de unidades independentes, especialmente equipadas e treinadas para esta finalidade, que compreendem a segurança física dos operadores da organização, a manutenção da ordem interna, contra eventuais traidores ou suspeitos e, ainda, eliminação sistemática dos concorrentes do setor econômico em questão e de demais indivíduos – em especial autoridades policiais, judiciais e políticas – que venham a causar qualquer interferência no curso de suas atividades[34].

Neste sentido,

uma das principais razões dos lucros não raro astronômicos acumulados pelos cartéis reside no fato de que eles desfrutam de uma posição monopolística no setor que operam. Monopólio obtido pela violência freqüentemente mais brutal[35].

Interessante se faz destacar que a violência exercida pelos cartéis da criminalidade econômica organizada transnacional é, ainda, o principal fator de promoção – de ascensão hierárquica – entre os indivíduos do grupo, de forma que, para Ziegler[36], a organização privilegia aqueles que possuem a melhor astúcia, inteligência, autocontrole e, sobretudo, brutalidade e sangue-frio na realização das ordens exaradas pelos seus superiores.

E exemplifica:

Tomemos o caso de Giovani Brusca, conhecido como “o Porco”, sucessor de Totò Riina à frente da comissão da Cosa Nostra. [...] Brusca é um matador talentoso. Ele deve sua rápida ascensão ao topo a alguns atos de violência particularmente bem-sucedidos. O dia 23 de maio de 1992 é um dia belíssimo: três automóveis blindados, transportando o juiz Giovanne Falcone, sua mulher e seus guarda-costas percorrem a 160km/hora a rodovia Messina – Palermo, ao longo do litoral. Numa colina ao lado de uma ponte, Brusca e seus cúmplices observam. De repente, os dedos de Brusca puxam uma alavanca: lá embaixo, na estrada, uma formidável explosão projeta o comboio nos ares, fazendo em pedaços Falcone, sua mulher e três jovens policiais. Dois meses depois, o colega, amigo e sucessor de Falcone, o procurador Borsellino – carro blindado, guardas – visita sua mãe em Palermo. Seu comboio é lançado aos ares por uma bomba, acionada por Brusca. Tampouco desta vez há sobreviventes. No atentado contra Falcone, um cúmplice ajudara Brusca: Santino Di Matteo. Detido, Santino decide colaborar com a polícia. O Porco, depois de mandar seqüestrar o filho de Santino, Guiseppe, de 11 anos, estrangula-o com as próprias mãos e atira o corpo num banho de ácido. Em maio de 1993, em Agrigento, o papa João Paulo II condena inequivocadamente a criminalidade organizada, seus assassinatos, a Cosa Nostra. Em represália, Brusca ordena o atentado a bomba contra a basílica de São João de Latrão, em Roma, um dos monumentos cristãos mais antigos do mundo ocidental. Esses atos de “bravura” valem ao Porco uma carreira fulminante: aos 29 anos de idade, ele chega ao comando da Cosa Nostra[37].

Uma organização criminosa possui, ainda, a particularidade de atuar paralelamente ao Estado. O abade Sieyès espantar-se-ia com tal constatação e, talvez, classificasse a Máfia como o novo “terceiro estado”.

As máfias transnacionais atuam através de regras e dispositivos que contrariam as ordens jurídicas nas quais se inserem ignorando as disposições jurídicas do ordenamento jurídico estatal de onde se encontram, antes, elas próprias criam e definem sua “Constituição”, suas leis, seus princípios. É um ordenamento ilicitamente constituído dentro do próprio Estado, atuando em simbiose com este[38]. Para o consectário destes objetivos, as Máfias infiltram seus integrantes dentro de órgãos das instituições estatais, que, através da intimidação e da prática do suborno, aliciam as autoridades públicas para colaborar com suas atividades. E grande parte de seu êxito provém, justamente, disto: o poderio econômico, financeiro e militar que as organizações criminosas translocais possuem, são constantemente usados como mecanismos para a corrupção dos agentes públicos, que têm a opção de colaborar, voluntariamente, em um regime de parceria com a máfia, ou colaborar através de ameaça, de intimidação[39].

Hassemer[40], professor de Direito Penal da universidade de Frankfurt, diz que a criminalidade econômica organizada é caracterizada pela sua capacidade de aterrorizar, entorpecer e, eventualmente, perverter o aparelho judiciário e o aparelho político. Para ele, somente as organizações criminosas são suficientemente poderosas para infiltrar-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, criando um contra-poder capaz de neutralizar quaisquer comandos legais estabelecidos em um ordenamento jurídico.

Para os senhores do crime organizado, o Estado de Direito não passa de um mero “parceiro” de negócios, que, em nenhum momento, pode impor qualquer norma, lei, ou sanção que seja contrária às atividades mafiosas, sob pena de pagar um preço alto por isso[41].

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Sobre o autor
Antonio Carlos Iranlei Toscano Moura Domingues

Professor da Universidade Federal da Paraíba, da Escola Superior da Magistratura da Paraíba e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da UNIPE e Fesmip. Especialista em Direito Penal e Criminologia e Mestre em Direito Penal Econômico. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGUES, Antonio Carlos Iranlei Toscano Moura. O crime organizado transnacional e suas consequências socioeconômicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24538. Acesso em: 19 abr. 2024.

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